Revista Impressões Rebeldes

ALIANÇA EXPLOSIVA

Indígenas e negros escravizados causaram grande estardalhaço na Paraíba setecentista após se unirem em uma revolta contra a escravidão.

Indígenas potiguaras da Baía da Traição, município em que os nativos convocaram escravizados africanos a participarem de uma rebelião contra os senhores coloniais, no século XVIII. Crédito: Paraíba em foco.

Matheus Silveira Guimarães

Matheus Silveira Guimarães é doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e professor da Rede Municipal de Ensino de João Pessoa. Autor do livro Diáspora africana na Paraíba do Norte: trabalho, tráfico e sociabilidade na primeira metade do século XIX, João Pessoa: Editora do CCTA, 2018.

Era o dia 10 de setembro de 1734, quando o recém-empossado Capitão-Mor da Paraíba Pedro Monteiro de Macedo enviou uma carta ao rei dando informações sobre o que havia ocorrido ao norte da capitania, especificamente, na aldeia da Baía da Traição. Era um período muito turbulento da história da Paraíba, que vivia uma grande crise econômica e política, em meio a ameaças de ser anexada a sua vizinha, Pernambuco. O próprio Pedro Monteiro passaria dificuldades no decorrer de seus dez anos de governo, tendo conflitos constantes com as elites locais, que chegaram a solicitar a sua substituição. Antes de falecer, chegou a pedir para que deixassem em sua lápide: “Aqui jaz Pedro Monteiro de Macedo, que, por governar mal a Paraíba, quer que todos o pisem […]” (PINTO, 1977, p. 148).

Porém, no referido 10 de setembro, Pedro nada sabia sobre o futuro de conflitos que viveria. Algumas semanas após assumir o comando da capitania, deparou-se com um problema. Escreveu para o rei informando que na numerosa aldeia da Baía da Traição havia vários indígenas “atrevidos e orgulhosos” que tentaram “uma sublevação geral convidando não só para ela a Aldeia daquela capitania, mas ainda as mais distantes de Pernambuco”. De acordo com o relato do Capitão-Mor, tais indígenas se utilizaram das mais diversas armas, de pólvora e balas, além de flechas. Fechavam caminhos de contatos com os brancos e, à noite, faziam rondas pelas estradas ameaçando vários de morte e matando outros com venenos e feitiços. Tiveram como líderes o Sargento-Mor da aldeia e seus filhos, que pediam morte aos brancos (Arquivo Histórico Ultramarino_CU_014, Cx. 9, D. 769).

Essa sublevação não preocupou apenas o governo da Paraíba e de Pernambuco, mas também o do Rio Grande do Norte. Na carta do governador o rei fora informado que vinham sendo constantes os “roubos e insultos” feitos por esses índios na referida capitania. Mas talvez o que mais tenha assustado as elites poderosas da região foi o fato de que esses indígenas, segundo relatava o documento, além de terem se levantado em armas, tinham como objetivo se “assenhorearem das terras” e, para isso, também convocavam as pessoas negras escravizadas para matarem seus senhores e se unirem na luta. Ainda de acordo com a versão das autoridades régias, o estopim dessa revolta foi a morte de um Camarão (liderança indígena) na cadeia de Pernambuco, informação esta que não é aprofundada, nos impedindo de saber quem era essa personagem. Contudo, ao avaliarmos o caso com cuidado, percebemos que possivelmente havia outros elementos envolvidos.

As chamadas Guerras dos Bárbaros, nome dado a um conjunto de conflitos entre colonos e povos indígenas do interior da Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, já caminhavam para seu fim. Entretanto, as tensões não. A Paraíba contava nesse período com diversas aldeias no litoral e no sertão. Desde o final do século XVII, o processo de expansão colonial havia gerado conflitos armados, chegando até a assustar a Coroa com a violência desproporcional utilizada pelos colonos. Já no litoral, esse processo foi anterior, pois alguns aldeamentos já estavam relativamente estabelecidos desde o início do Seiscentos, quando os portugueses firmaram acordos com os potiguaras, povos indígenas que moravam na Paraíba no período da chegada das primeiras expedições portuguesas. Após décadas de guerras, estabeleceram um acordo em 1599. Em 1601, o número de potiguaras circulava em torno de catorze mil pessoas. Até a invasão holandesa, em 1634, a quantidade de aldeias era de seis, com cerca de mil e seiscentas pessoas (PINTO, 1977, p. 33; MACHADO, 1977, p.294; GONÇALVES, 2007).

 

Geografia da capitania da Paraíba em meados do século XVIII. A aldeia da Baía da Traição está localizada na parte superior direita. CARVALHO, Juliano Loureiro de. Formação da Mata Paraibana, 1750-1808. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo. Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, 2008, p.115.

 

A Baía da Traição era uma dessas aldeias. Situada ao norte, estrategicamente nas proximidades do rio Mamanguape, era uma região importante, possuindo um porto, que chegou a ser local de desembarque de africanos, e já havia sido palco de diversos conflitos entre indígenas e colonos. Desde o século XVI, os documentos das autoridades régias e os cronistas apontam essa Baía como central na conquista portuguesa da capitania e na guerra com os holandeses. As maiores aldeias dos potiguaras se encontravam nas proximidades entre os rios Mamanguape e Camaratuba, sendo um dos principais pontos de escambo com os europeus. Após terem sido expulsos do rio Paraíba, com as guerras contra os portugueses, os potiguara se concentraram ainda mais nessa região. Mais adiante, no decorrer do século XVII, os religiosos tentaram estabelecer um aldeamento para controlar tais indígenas (BAUMAN, 1991; GONÇALVES, 2007, p. 44).

É constante na documentação, principalmente no período de Pedro Monteiro (1734-1744) à frente da capitania, a preocupação em se construir um forte na Baía da Traição, onde “Todas as suas fichas foram jogadas nesse projeto e fez disso a obra de toda sua vida” (MENEZES, 2005, p. 334). Muito provavelmente, nos embates e disputas para a construção desta fortificação, foi utilizada a mão de obra indígena, assim como fora utilizada no caso da fortificação de Cabedelo que ficava na região mais ao sul, na foz do rio Paraíba.

Como já dissemos anteriormente, a capitania da Paraíba vivenciava grandes dificuldades econômicas. Uma das principais reclamações feitas pelos senhores estava no fato de terem dificuldades em comprar escravizados da África. Constantemente, eram solicitadas isenções para facilitar essa compra. Senhores de engenho e lavradores de cana chegaram a calcular a necessidade entre oitocentos e mil escravos. Para agravar ainda mais a situação, os poucos africanos que chegavam na capitania não conseguiam ser comprados por esses mesmos senhores, que não tinham poder aquisitivo para tal, tornando-se comum os africanos serem vendidos para a região de Minas Gerais.

A solução apresentada muitas vezes era, exatamente, buscar a utilização de mão de obra indígena concentrada nas aldeias. Essa ideia já havia sido sugerida em 1675, quando os senhores fizeram uma descrição das aldeias da Paraíba e de sua importância econômica, tendo em vista a dificuldade em se comprar escravizados de Angola e da Costa da Mina. Décadas depois, em 1716, o então capitão-mor da Paraíba informava que a situação dos engenhos era calamitosa e se não fosse o trabalho desses indígenas aldeados, o estado poderia ser pior para os senhores (AHU_CU_014, Cx. 1, D. 95, AHU_CU_014, Cx. 5, D. 360)

Mas não eram apenas disputas em torno do uso da mão de obra que geravam tensões. Alguns anos antes do levante, a Baía da Traição foi uma das aldeias envolvidas em conflitos de terra com religiosos. Alguns fugiram desta aldeia e criaram uma outra de nome “Gramácio”, no Rio Grande do Norte, que era propriedade do Convento de Nossa Senhora do Carmo. Não satisfeito com a situação, Padre Frei Pascoal de Santa Teresa, Procurador Geral dos conventos, pedia ao rei que esses indígenas saíssem das terras pertencentes ao convento e retornassem às suas aldeias de origem, pois estavam causando “notáveis desassossegos”. (AHU_CU_014, Cx. 6, D. 513)

Em poucas palavras, antes do levante na Baía da Traição, os indígenas já vinham de uma sequência de tensões com os colonos, buscando formas de resistência na região. Não sabemos ao certo o final desse levante. Como de costume, a documentação produzida pelas autoridades régias não traz detalhes sobre tais personagens, que também pouco sabemos. Porém, a intensidade da repressão fica bastante evidente. A sugestão dada por Pedro Monteiro de Macedo era que os líderes da revolta fossem “sumariamente sentenciados”, que tivessem suas cabeças colocadas nos locais onde tinham cometido “crimes”. Mas isso não parece ter sido suficiente para acabar com os conflitos nessa aldeia. Quatro anos depois, o mesmo Capitão-Mor continuou tendo problemas com a Baía da Traição. Em 1738, os missionários responsáveis por esta não cumpriam as ordens dadas por Pedro Monteiro, dificultando a utilização dos indígenas nos engenhos da capitania, fazendo-o enviar reclamação ao rei (PINTO, 1977, p. 141).

Apesar de não ter sido um tema discutido pela historiografia da Paraíba (essa revolta sequer é citada nos estudos sobre história do século XVIII), a possibilidade de um levante envolvendo negros e indígenas aldeados continuou fazendo parte dos medos no imaginário das elites da capitania. Décadas depois, em 1780, desta vez já subordinado a Pernambuco, o então Capitão-Mor da Paraíba informava ao rei de suas preocupações com essas alianças e revelava o “evidente perigo a que se expõem esta cidade de maior parte de pretos, e pardos, cercada de cinco vilas de índios uma em distância de quatro léguas, outra de sete, e as mais de doze” (AHU_CU_014, Cx. 27, D. 2067). Para ele, os indígenas não esqueciam que as terras lhes pertenciam e se eles se associassem aos escravizados negros, as autoridades régias não teriam força para segurar um outro possível levante. Ademais, informava ter na memória um levante na região que envolveu mais de seiscentos indígenas, sendo responsáveis pelo derramamento de muito sangue.

O nosso período colonial foi marcado por conflitos em torno de terra e poder, estando os povos indígenas e negros escravizados no centro desses embates. Se de um lado, eram constantes as formas de tentar escravizar ou se utilizar da mão de obra dessas pessoas, por outro lado, estes buscavam as mais variadas formas de resistir e construir um espaço distinto. Infelizmente, a nossa documentação quase sempre traz apenas a visão das autoridades repressoras. Mas a partir destas podemos imaginar as diversas lutas de resistência construídas nesse período.

Bibliografia Básica

BAUMAN, Thereza de Barcellos. Relatório Bauman. In.: MOONEN, Frans; MAIA, Luciano Mariz. História dos índios Potiguara: 1500-1800 (Relatórios e Documentos). 2ª edição digital. Recife, 2008. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/lucianomaia/moonen_1500_1983_indios_potiguaras.pdf. Acesso em 16 de fevereiro de 2022. [Originalmente publicado em Frans Moonen e Luciano Mariz Maia (orgs.), Etnohistória dos índios Potiguara, João Pessoa: Procuradoria da República na Paraíba/Secretaria da Educação e Cultura do Estado da Paraíba, 1992, pp. 9-10, 153-285]

GONÇALVES, Regina Célia. Guerras e Açúcares: política e economia na Capitania da Parayba (1585-1630). Bauru – SP: Edusc, 2007

MACHADO, Maximiano Lopes. História da Província da Paraíba. João Pessoa: Universitária/. UFPB, 1977. Volume 1. [Edição facsimilar de 1912]

MENEZES, Mozart Vergetti. Sonhar o céu, padecer no inferno: governo e sociedade na Paraíba do século XVIII. In: BICALHO, M. F.FERLINI, V. L. A. (Orgs.). Modos de Governar. São Paulo: Alameda, 2005, p. 327-340.

PINTO, Irineu. Datas e notas para a história da Paraíba. João Pessoa:Universitária/UFPB, 1977. Volume 1.

Fontes Impressas

Arquivo Histórico Ultramarino (AHU). _CU_014, Cx. 1, D. 95
______, Cx. 5, D.360.
______, Cx. 6, D.513.
______, Cx. 9, D.769.
______, Cx. 12, D.1009.
______, Cx. 27, D.2067.

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