Revista Impressões Rebeldes

POR UM OUTRO VALE DO PARAÍBA

Expansão cafeeira nos sertões fluminenses enfrentou desde o final do século XVIII a tenaz resistência dos indígenas que viviam ali

"Encontro de índios com viajantes europeus" retrata de maneira idealizada o contato entre os povos originários e os brancos na mata brasileira no início do século XIX. Gravura de Johann Moritz Rugendas Litografia de Engelmann Paris. Rugendas e o Brasil/Pablo Diener, Maria de Fátima Costa. - Rio de Janeiro: Capivara, 2012.
21 de setembro 2023 Ano 11, n. 2 (jul-dez), 2023

Felipe de Melo Alvarenga

É graduado em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e doutorando em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). É autor do livro De Terras Indígenas à Princesa da Serra Fluminense: o processo de realização da propriedade cafeeira em Valença (Província do Rio de Janeiro, Século XIX). Jundiaí: Paco Editorial, 2019.

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“Logo que nos avistaram, escapuliram rápidos pelo mato, desaparecendo de nossa vista” (SPIX, Johann; MARTIUS, Karl, 1976, p. 193).

 

Antes da disseminação da cultura cafeeira no Vale do Paraíba fluminense e da corrida pela apropriação territorial naquelas paragens, a população indígena vivia naqueles sertões, espalhada num amplo espaço de terras que, inclusive, não respeitava as divisões coloniais político-administrativas do Centro-Sul da América Portuguesa, separadas em Capitanias. Índios Coroados, Araris, Puris, entre outras etnias, viviam Serra Acima e usufruíram das regiões florestais da Mata Atlântica durante um longo espaço de tempo. Praticavam atividades de coleta, pesca e cultivavam, principalmente, milhos (os quais comiam ainda verdes), mandiocas, inhames, bananas, batatas, dentre outros gêneros alimentícios. Atravessavam, sem grandes dificuldades, os Rios Paraíba, Paraibuna, Preto e Peixe, e faziam uso dos recursos naturais encontrados nas duas bandas destes rios. Além disso, “caçavam macacos, criavam papagaios e tiravam a cera da terra” para comercializar com alguns luso-brasileiros que apareciam por ali, timidamente, em meados do Setecentos (LEMOS, Marcelo, 2016, p. 61-63).

Os primeiros contatos entre a sociedade luso-brasileira e esta população indígena foram consequência da abertura do Caminho Novo para as Gerais no início do século XVIII. No entanto, foi somente na segunda metade deste século que os conflitos envolvendo estas duas sociedades evidenciaram uma verdadeira disputa pela fronteira: crescentes correrias e incursões indígenas foram disseminadas pelos sertões, no processo de expansão da fronteira socioeconômica dos luso-brasileiros, depois da decadência da exploração do ouro nas minas.

Entre o final do século XVIII e as primeiras décadas do século XIX, a região do Vale do Paraíba Ocidental foi palco de grandes mudanças, principalmente no que tange à transformação espacial. A Serra fluminense era cada vez mais transformada em fazendas e unidades de produção agrícola para o abastecimento da cidade do Rio de Janeiro, num movimento de crescente integração econômica do Centro-Sul, que interligava as Capitanias de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Este processo se deu a partir da conversão do capital acumulado nos circuitos comerciais, em especial, do tráfico transatlântico de africanos escravizados, em atividades agrícolas de grande aceitação internacional, como a lavoura cafeeira trabalhada com mão-de-obra escrava e barata, por volta de 1820 a 1840 (FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo, 1993).


Fonte: O mapa do Sargento-Mor Manoel Vieira Leão de 1797, redesenhado em 1801, foi reproduzido em: LEMOS, Marcelo Sant’Ana. O Índio Virou Pó de Café? Resistência indígena frente à expansão cafeeira no Vale do Paraíba. Jundiaí: Paco Editorial, 2016, p. 35.

Contudo, essa transformação espacial não foi natural e esbarrou com as populações indígenas que viviam há muito tempo nos sertões. Os nativos foram os primeiros agentes históricos que demarcaram algumas limitações para a realização da propriedade dos luso-brasileiros que buscaram se apropriar das terras da Serra fluminense. Como Marcelo Lemos afirmou, o “índio não virou pó de café”, e é preciso resgatar a experiência histórica destes atores que retardaram a instalação da plantation cafeeira no Vale do Paraíba, com destaque para os índios Coroados assim reconhecidos, politicamente, nas fontes que analisamos.

É comum a interpretação histórica de que as fazendas de café foram instaladas numa região de “fronteira aberta”, com ampla disponibilidade de terras a serem apropriadas pelos colonos pioneiros que começaram a se estabelecer por ali na virada do século XVIII ao XIX. Por outro lado, a instalação destes atores sociais foi bastante conturbada desde o princípio. Em 1789, o Vice-Rei Luiz de Vasconcelos e Souza, avaliava que

foi necessário praticar-se outra diferente providência pelas irrupções que [os indígenas] faziam n’aqueles distritos, assolando as fazendas circunvizinhas, furtando os seus efeitos, apresentando-se armados em figura de guerra, atacando e matando a todos os que lhe caíam infelizmente nas mãos, de modo que a maior parte dos fazendeiros que tinham os seus estabelecimentos do lado setentrional do rio [Paraíba do Sul], os abandonaram inteiramente, por não serem as suas forças capazes de lhes fazer a menor resistência (…).

Vê-se que os indígenas que ocupavam há bastante tempo aquela região, resistiram ao avanço dos colonos brancos que tentavam construir suas fazendas, intensificando suas investidas naquele terreno que estava sendo “invadido”. Não se tratava de uma fronteira aberta e inabitada pronta para ser apropriada por fazendeiros aventurosos de se instalarem ali como “ocupantes pioneiros”. Nas correspondências entre as autoridades colonizadoras, identificamos que

os gentios que moram nas vizinhanças deste registro são os Coroados e Puris os quais são tão selvagens que não conhecem subordinação alguma: andam nus e só usam de um pequeno tecido de fio de guaxima (…) as armas que usam é arco e flecha e porretes. Suposto me informem que eles plantam milho, batatas e bananas; contudo devo dizer a vossa excelência que são uns vagabundos, pois não tem moradia certa porque (…), trazem cruzados todos os matos de forma que os fazendeiros que moram nesta distância para usarem das suas plantações trazem vigias armados e, não obstante, isto são continuados os roubos e mortes que fazem (…) deixaram lugares despovoados (…) fiz toda a diligência para os encontrar e não foi possível pela celeridade com que se retiraram (…). Os Rios Paraíba, Paraibuna, Preto e do Peixe os não embaraçam para irem onde eles querem (…).

Interessante observar que o termo “vagabundo” aparece justamente quando identificamos que os nativos perambulavam pelas matas por não terem uma moradia fixa. Neste caso, a reprodução elástica e móvel do modo de vida dos povos indígenas nos matos era uma marca definitiva do exercício de sua ocupação territorial: representava o largo espaço de assentamento e de mobilidade dos Coroados e Puris que percorriam as florestas para caçar, plantar e se “ajuntarem” na outra banda do Rio Paraíba do Sul.

O fato de os indígenas poderem se movimentar e se estabelecer em qualquer lado da floresta representava um sério limite para a expansão da fronteira social luso-brasileira. Quando os colonos decidiam arriscar e construir fazendas, os índios recorriam às correrias: incursões rápidas e instantâneas que desolavam esta nova propriedade formada nos matos recém-desbravados. Neste caso, os assaltos às fazendas eram estratégias defensivas, mobilizadas por estes corredores em sua tentativa de proteger a sua ocupação, o seu modo de vida e o elemento da mobilidade que os caracterizava, o que dificultava a “realização da propriedade” agrícola dos colonos que procuravam se assentar na região.

Os índios tinham uma consciência costumeira dos seus direitos de propriedade (a mobilidade de se embrenhar nas matas), mas também ativavam um aspecto rebelde desta consciência (correrias indígenas), quando se tratava de defender seu modo de vida nos sertões. Nestes termos, o que denominamos, provocativamente, de “propriedade indígena” no final do Setecentos era caracterizada por estes dois aspectos significativos: os direitos de propriedade eram balizados pelo costume de usufruir das matas e pela rebeldia de defendê-los quando os luso-brasileiros avançavam em seu território. Logo, a correria indígena deve ser entendida como uma estratégia proprietária protetiva dos direitos à terra acionada pelos Coroados, que interpretavam as matas como sendo de seu domínio, atestado pelo costume de uso da terra em comum e pelo tempo imemorial de reprodução do seu modo de vida nos sertões.

Em vista destas dificuldades, as autoridades luso-brasileiras persistiram em realizar um cerco aos indígenas, em tentativas de confinar seu espaço de mobilidade. No início do século XIX, as políticas de “pacificação”, pela formação de aldeamentos, e as políticas de violência, pelos confrontos diretos com os indígenas, foram articuladas de modo a expropriar esses povos durante a primeira metade do século XIX. Apesar da legislação tardocolonial e imperial ter privilegiado a proteção das terras indígenas, boa parte destes atores foram identificados como caboclos “misturados” à população nacional, sendo expulsos das terras aldeadas criadas para a sua catequese e missionação. No entanto, alguns indígenas continuaram “errantes pelo mato”, ganhando uma “grande invisibilidade histórica” por insistirem em reproduzir seu modo de vida. De qualquer forma, é importante frisar que suas ocupações espalhadas por todo aquele território foram empecilhos à formação das primeiras fazendas de café.

A despeito destas fazendas serem conhecidas até hoje pela memória de sua opulência e pelo patrimônio histórico legado ao período imperial, ressaltamos aqui este passado de resistência indígena, pois é necessário ter em mente que a consolidação da propriedade cafeeira só ocorreu após este processo de expropriação de outra “propriedade” que existiu naquela Serra fluminense. A primeira condição perversa de realização da propriedade cafeeira teve a sua condição com a desconstrução dos direitos de propriedade dos índios, amplamente reconhecidos e exercidos até o final do século XVIII.

Bibliografia Básica

ALVARENGA, Felipe de Melo. De Terras Indígenas à Princesa da Serra Fluminense: o processo de realização da propriedade cafeeira em Valença (Província do Rio de Janeiro, Século XIX). Jundiaí: Paco Editorial, 2019.

ALVARENGA, Felipe de Melo. “Por um Vale do Paraíba Indígena: conflitos étnicos e a transformação da propriedade dos índios em Valença (1780-1835)”. Revista de História (São Paulo), n. 181, jan. 2022, p. 1-45.

FRAGOSO, João. FLORENTINO, Manolo. O Arcaísmo como Projeto: Mercado Atlântico, Sociedade Agrária e Elite Mercantil no Rio de Janeiro, c. 1790 – c. 1840. Rio de Janeiro: Diadorim, 1993.

LEMOS, Marcelo Sant’Ana. O Índio Virou Pó de Café? Resistência indígena frente à expansão cafeeira no Vale do Paraíba. Jundiaí: Paco Editorial, 2016.

MACHADO, Marina Monteiro. Entre Fronteiras: posses e terras indígenas nos sertões – Rio de Janeiro, 1790-1824. Coleção Terra. Guarapuava: Unicentro, 2012.

Fontes Impressas

SPIX, Johann Baptist von; MARTIUS, Karl Friedrich Phillip von. Viagem pelo Brasil (1817-1820). 3ª edição. São Paulo: Melhoramentos; Brasília: INL, v. 1, 1976.

Fontes Primárias

Biblioteca Nacional (BN): Seção de Manuscritos – Códice 7, 4, 45, n. 1. “Ofício de João Pacheco Lourenço e Castro ao Conde de Resende, informando sobre os produtos da indústria indígena no Distrito do Registro da Paraibuna. Registro da Paraibuna, 12 de agosto de 1797”.

VASCONCELOS, Luiz de. “Ofício do Vice-Rei Luiz de Vasconcellos e Souza, com cópia da Relação instrutiva e circunstanciada para ser entregue ao seu sucessor, na qual mostra o estado em que se deixa os negócios mais importantes do seu governo sendo um deles a demarcação dos limites da América Meridional”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, tomo 4, n. 3, 1842.

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