Revista Impressões Rebeldes

O “MÃO DE LUVA” NOS SERTÕES DE MACACU: FATOS E VERSÕES

Perseguido por dois governadores ao mesmo tempo, a vida do rebelde Manuel Henriques, líder do garimpo clandestino de ouro nas serras entre Minas e Rio de Janeiro no século XVIII, alimentou histórias rocambolescas

Feita por Manoel Vieyra Leão, uma das “Cartas topográficas da Capitania do Rio de Janeiro mandadas tirar pelo Ilmo. Exmo. Sr. Conde da Cunha Capitam General e Vice Rey do Estado do Brazil no anno de 1767” mostra o primeiro registro topográfico da região onde viviam Mão de Luva e seu bando (à direita está escrito “Sertão ocupado por índios bravos”)

Rodrigo Leonardo de Oliveira

Rodrigo Leonardo de Oliveira é professor do Instituto Federal de Rondônia, campus Porto Velho Calama, autor do livro “Bandoleiros na História do Brasil: dos “mantiqueiras” a quadrilha dos “sete orelhas”. É mestre em História pela UFJF, doutor em História pela UFMG e faz estágio de pós-doutorado na Universidade Nova de Lisboa.

Sheila de Castro Faria

Sheila Castro Faria é doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e autora do livro “A Colônia em Movimento: Fortuna e Família no Cotidiano Colonial (Sudeste, Século XVIII). Realizou estágio de pós-doutorado pela Universidade do Rio de Janeiro (UFRJ) onde trabalhou com o período do Brasil Imperial

“Sertões ocupado por Índios Bravos”. Foi essa a designação pouco convidativa que mereceu, em um mapa de 1767, o território situado numa zona montanhosa da fronteira entre as capitanias de Minas Gerais e Rio de Janeiro e onde, a partir de 1814, seria criada a vila de São Pedro de Cantagalo. Seus topônimos ao longo do tempo foram passando por um processo de depuração: nos mapas seguintes ao de 1767 aparecem como “Sertões das Cachoeiras de Macacu ou de Cantagalo”, “Novas Minas dos Sertões de Macacu ou de Cantagalo” e “Cantagalo”, usados indistintamente entre 1780 e 1814.

A área atraiu enorme atenção da administração colonial no século XVIII, especialmente por parte de Luís da Cunha Meneses (governador da Capitania de Minas Gerais entre 1783 e 1788) e Luís de Vasconcellos e Souza (vice-rei do Brasil e governador da capitania do Rio de Janeiro entre 1778 e 1790).

Nesses sertões, como então se chamavam as áreas mais isoladas das vilas e dos centros populacionais, há registros de diversos ranchos e unidades dedicadas à agropecuária na documentação da época. Mas não foi isso que atraiu a atenção de governadores, autoridades locais e soldados. A fama do local nasceu em decorrência do garimpo de ouro ilegal que lá se desenvolvia.

O principal garimpo era liderado por um homem apelidado “Mão de Luva”, local no qual havia um bando com treze homens brancos e pardos, e ainda outros 23 escravizados. Contudo, este número tende a ser maior, uma vez que estes dados referem-se apenas à lista elaborada pelas autoridades competentes em 1786, ano em que o bando foi desbaratado. Durante a devassa do extravio do ouro, iniciada nos anos de 1770, há menção a outros contrabandistas, cujos nomes citaremos mais adiante.

Podemos hoje deduzir, sem muita precisão, que a área devassada pelos garimpeiros compreendia boa parte dos sertões de Cantagalo e Macacu (especialmente onde se situa o atual município de Cantagalo no estado do Rio de Janeiro). Até o momento é tudo o que as fontes pesquisadas permite avaliar.

O líder do bando armado que dominava a região mereceu a qualificação de “facinoroso” ou “rebelde”. Outras vezes Manuel Henriques, o “Mão de Luva”, algumas vezes referido como “Luva do Xopotó (Chopotó)”. O grupo era nitidamente uma organização familiar, pois incluía dois irmãos de Manuel Henriques, além de outros dois homens, os irmãos Lopes, que tinham relações de parentesco com o líder. Todos eram indicados como cabeças do bando e todos oriundos de Minas Gerais. Havia também escravos e, aparentemente, boas relações com os grupos indígenas.

O garimpo na região existia desde pelo menos a década de 1760, embora não se tenha certeza se os mesmos personagens já estivessem nessas terras minerais. O certo é que, durante os vinte anos seguintes à publicação do mapa de Vieyra Leão de 1767, que faz o primeiro registro cartográfico do território, o “Sertão dos Índios Bravos” passou a ser alvo do interesse dos governantes e referido na correspondência oficial como ocupado por garimpeiros indesejáveis.

Na documentação, esses sujeitos são tratados como salteadores, facinorosos ou malfeitores. D. José I, rei de Portugal, em carta régia datada do ano de 1766, estendia “à categoria de salteadores de caminhos e facinorosos todos aqueles que não se encontrassem solidamente estabelecidos em arraias e vilas, que não fossem roceiros ou rancheiros e que não integrassem tropas e bandeiras oficialmente reconhecidas” segundo a historiadora Carla Anastasia. Contudo, sabemos que o garimpo era apenas uma contravenção. Eram “rebeldes” porque buscavam extrair o ouro dos sertões sem pagar os devidos impostos. Em síntese, desafiavam o poder da coroa ao formar “territórios de mando” nas fronteiras coloniais, conceito desenvolvido por Célia Nonata da Silva em seu livro Territórios de mando: banditismo em Minas Gerais, século XVIII. No caso do bando em estudo, os sertões de Macacu e Cantagalo eram um reduto de poder privado dos homens do Mão de Luva.

Ainda assim, foi somente a partir de 1779, sob o governo do vice-rei Luís de Vasconcellos e Souza, que ações mais efetivas foram realizadas para desmobilizar as “rancharias” dos rebeldes, não sem grande esforço. Anos de luta foram necessários para prender os ditos “facinorosos” e “rebeldes”. A principal dificuldade era o desconhecimento do território por parte da administração colonial, embora tudo indicasse que era bastante frequentada por tropeiros e viajantes, como se pode constatar em documentos produzidos na época (em breve publicaremos alguns destes documentos).

Na noite de 12 de maio de 1784 as autoridades competentes inquiriram alguns homens sobre os constantes extravios de ouro. Estes sujeitos eram comerciantes e tropeiros que andavam pelos sertões de Cantagalo e Macacu. Um deles se chamava João Baptista Ferreira, morador no Rio da Pomba, comerciante que realizava negócios com o bando do Mão de Luva. Outro comerciante da região era Francisco José, morador no Tanque. Ambos realizavam negócios com os homens de Manuel Henriques. Manoel Gonçalves, morador na Barra da Conceição, era responsável pelo negócio de escravos para o descoberto dos “Henriques”. Tais registros constam do documento Informação, que tirei dos três homens, que chegaram a esta Aldeia de S. Miguel pelas sete horas da noite do dia 12 de maio de 1784, que conduziam mantimentos, para as pessoas, que se acham no novo Descoberto do Rio do Veado (Arquivo Nacional, Códice 68, vol. 06, p. 239-241.).

Depois de anos de garimpo ilegal, a partir de 1784 coube ao governador de Minas Gerais Luís da Cunha Meneses – ninguém menos que o famoso “Fanfarrão Minésio” mencionado nas Cartas Chilenas -, e à revelia do vice-rei Luís de Vasconcellos, prender os garimpeiros, utilizando-se de um destacamento militar sob a liderança do sargento-mor do regimento de cavalaria de Minas Gerais Pedro Afonso Galvão de São Martinho. A estratégia adotada foi a de entrar nos Sertões das Cachoeiras de Macacu usando como justificativa a necessidade de se conhecer o local exato do “descoberto”, conforme se referiam ao garimpo ilegal na época. Cunha Meneses afirmava precisar saber se os ditos sertões, já neste momento denominados alternativamente de “Macacu” ou de “Cantagalo”, pertenciam a Minas Gerais ou ao Rio de Janeiro.

Para isso o sargento-mor São Martinho iniciou a inquirição de pessoas que transitavam pelos portos do rio Paraíba. Depois das investigações, a empreitada foi bem-sucedida, encerrando-se em 1786 com a prisão do grupo pelo destacamento de Minas Gerais, para desespero de Luís de Vasconcellos, que não entendia a iniciativa do governador de Minas. O referido vice-rei acreditava que o governo de Minas estaria envolvido com o garimpo. Existem fontes que indicam o conluio de homens da confiança de Luís da Cunha Meneses com os contrabandistas. Algumas cartas que localizamos, trocadas entre os oficiais militares com Antônio Henriques e com os escravos do bando, atestam a colaboração entre estes oficiais e os garimpeiros. Para Luís de Vasconcelos, o governador de Minas sabia destas relações ilícitas e nada fez para as evitar (Carta de Antônio Henriques ao soldado Sebastião Craveiro de Faria. Sem data/sem local. Seção Colonial do Arquivo Público Mineiro, Códice 239, p. 73v; Carta do soldado Sebastião Craveiro de Faria a Antônio Henriques. Quartel do Louriçal, maio de 1786. Seção colonial do Arquivo Público Mineiro, Códice 239, p. 75).

Os presos foram encaminhados para Vila Rica e tiveram seus bens confiscados, dentre eles 600 oitavas de ouro. Os principais envolvidos no garimpo clandestino eram: Manoel Henriques, o “Mão de Luva”; seus irmãos Antônio Henriques, Felix da Silva e Ignácio da Silva; Miguel Moniz; José Joaquim de Siqueira; Vicente Ferreira; Antônio Alves; Manoel Ferreira; Manoel Luís de S. Anna; Domingos Alves Furtado; Domingos de Souza; Manoel Gez; José Gomes (este indiciado pela Inquisição) e João dos Santos Silva.

Sabe-se de outras pessoas que estavam no bando por volta de 1784, mas desconhecemos seu paradeiro, como Pedro Fernandes, morador em São José do Xopotó, Pedro Lemos, os alferes Theotônio, Rodrigo e José Alves, o irmão de Miguel Moniz Antônio Luis Pessoa e Luis da Costa. Seus nomes não constam da lista de detidos elaborada em 1786, ano do ataque ao bando (Informação, retirada dos três homens, que chegaram a esta Aldeia de S. Miguel pelas sete horas da noite do dia 12 de maio de 1784, que conduziam mantimentos, para as pessoas, que se acham no novo Descoberto do Rio do Veado. Arquivo Nacional, Códice 68, vol. 06, p. 239-241.).

Bibliografia Básica

ACÁCIO, 1942; CARVALHO, Sebastião A. B. de. O tesouro de Cantagalo. Niterói: Centro de Estudo e Pesquisa Euclides da Cunha, 1991.

ANASTASIA, Carla. A geografia do crime: Violência nas Minas Setecentistas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.

OLIVEIRA, Rodrigo Leonardo de Sousa. “Mão de Luva” e “Montanha”: bandoleiros e salteadores nos caminhos de Minas Gerais no século XVIII: Matas Gerais da Mantiqueira: 1755-1786. 2008. 189 f. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Ciências Humanas, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2008.

SILVA, Célia Nonata da. Territórios de mando: banditismo em Minas Gerais, século XVIII. Belo Horizonte: Crisálida, 2007.

TOMÁS, Amélia. Mão de Luva, o fundador de Cantagalo. Cantagalo: Gráfica Tipocan, 1990.

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