Revista Impressões Rebeldes

BRIGA EM TERRA DE PADRE

Na Bahia colonial, os jesuítas possuíam grandes propriedades de terra e cobravam dos moradores pelo seu uso. Insatisfeitos, os colonos se rebelaram pelo fim do domínio dos padres na região de Ilhéus

“A Luta Pela Terra: Os Ícones Da Vitória”, Sebastião Salgado.

Rafael dos Santos Barros

Rafael dos Santos Barros é mestre em História Social pela Universidade Federal da Bahia, autor da dissertação da “Letra da lei às práticas coloniais: arranjos e conflitos na sesmaria dos jesuítas, 1700-1750” (UFBA, 2015).

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A América portuguesa foi assolada no início do século XVIII por conflitos de terras, situação capaz de indicar que a estrutura fundiária definida pelo sistema de sesmaria era inadequada à realidade colonial. Na Capitania de Ilhéus, particularmente na parte norte, desenvolveu-se uma economia de grande vitalidade com produção de alimentos, corte e beneficiamento de madeiras de lei que aceleravam o processo de expansão da fronteira na região. O resultado natural foi a progressiva ocupação e consequente valorização das melhores terras, aquelas localizadas em pontos que permitiam o fácil escoamento dos produtos para os mercados.

Muito cedo emergiram conflitos pela posse e uso da terra, nesse caso opondo os jesuítas e os colonos portugueses. Um desses episódios se tornou conhecido quando, em 1746, o ouvidor-geral da comarca da Bahia José Monteiro informava ao rei dom João V sobre o resultado de uma devassa que fez acerca do levante, mortes e mais delitos feitos por alguns moradores da vila de São José da Barra do Rio das Contas. Na ocasião, o ouvidor-geral escreveu que tudo começou quando alguns arrendatários pretenderam se isentar do pagamento de pensão devida aos jesuítas que lhes cobrava foros, recorrendo ao soberano através do Conselho Ultramarino e ao procurador da Comarca para que fosse concedida carta de sesmaria, se comprometendo os solicitantes “a dar melhor costumes aquela terra”.

Apesar das queixas, o rei decidiu que os jesuítas ficariam na sua antiga posse. Mediante essa decisão do monarca, como era rotineiro, um dos jesuítas, o padre Araújo, se deslocou até a sobredita vila para cobrar os foros das terras ocupadas. Ele não foi feliz nas suas ações, uma vez que os moradores “o maltrataram, havendo que se retirar da vila com muito receio”. Curiosamente, um dois principais líderes daquele protesto foi o padre Vicente Ferreira, membro do clero, que se voltara contra os jesuítas. Após estes saírem da primeira missa pelas sete horas da manhã, o padre Ferreira, cabeça do levante, levantou vozes por todos dizendo que “vivessem e já não conhecessem aos padres da Companhia de Jesus por senhores das daquelas terras, lendo com um papel que pregaram no pelourinho e correndo as ruas com alardes”.

Para solucionar o levante, foram deslocados para a vila 24 soldados, um sargento do presídio do Morro de São Paulo e alguns oficiais do posto de Maraú. Para evitar que os levantados retornassem à vila se fabricou uma trincheira de pau a pique, junto à praia da Concha. Para melhor fiscalização dos levantados, se instaurou uma casinha de guardas sentinelas, os quais ficaram responsáveis pela revista de todas as embarcações que chegassem e saíssem da vila da barra do rio de Contas. Além disso, todos os moradores deveriam abrir as portas de suas casas para que os soldados conferissem se ali havia pessoas desconhecidas.

Foram presos onze suspeitos entre os quais a maior parte “dos cabeças” que se achavam refugiados nas casas da vila, porém, alguns conseguiram fugir pelos rios, sendo determinado aos oficiais das povoações vizinhas que prendessem “todas as pessoas desconhecidas que se achassem nelas”. Outros integrantes do levante foram vistos na capitania de Porto Seguro recolhendo-se na vila de Santa Cruz no Rio de Caravelas, onde foram identificados e expedidos mandados de prisão em seus nomes. Entre essas ordens de prisão estava a do vigário Vicente Ferreira.

Os conflitos pela posse e uso das terras não terminaram enquanto os jesuítas eram possuidores daquela área. A fim de buscar aliados, a Companhia de Jesus reatou os laços com o padre Vicente Ferreira, o qual exercia grande influência sobre os moradores daquela localidade e havia sido um dos protagonistas das disputas de terra contra os jesuítas, sempre defendendo o interesse dos colonos.

Mas quando se trata de negócios e as finalidades não são alcançadas, os aliados podem se tornar inimigos. Foi o que aconteceu tempos depois do conflito para surpresa de todos. Em uma carta enviada ao sucessor de dom João V, dom D. José I, o colono José Monteiro em nome dos moradores da vila, “ex-aliados” do padre Ferreira, pedem para não se passar carta de confirmação de sesmaria a ele, vigário colado da freguesia de São José da Barra do Rio das Contas. Diziam os moradores que o vigário Ferreira estava se aproveitando das terras indígenas e ainda estava pedindo ao rei mais trinta braças de terra, “contada da Igreja Matriz além do adro”. Segundo o autor da carta, o pedido deveria ser cancelado, pois o vigário estava em litígio com o Colégio da Bahia pelo domínio da mesma terra. Quanto às terras que solicitava, o padre Ferreira, ao que parece, já estava de posse delas, perpetuando um costume na região: primeiro ocupar, depois pedir documentos legais.

O historiador Marcelo Henrique Dias considera que os embates em torno das sesmarias dos jesuítas, apesar de assumirem um caráter marcadamente violento, também configuravam disputas em nível institucional, político e jurídico. É o que se viu nessa disputa em Ilhéus. Quando afirmamos esse modelo, estamos considerando não apenas aqueles que tiveram oportunidade de serem contemplados com doações de sesmarias, os chamados colonos pobres mas também os jesuítas. Nessa região eles também fizeram uso desse costume, pois alargar seus domínios territoriais significava para o Colégio da Bahia maiores quantidades de foros a serem cobrados. Atentos a essa situação, os posseiros de menores cabedais aproveitaram para fazer o mesmo, alegando sempre o cultivo de gêneros como justificativa para legitimar suas posses, elaborando suas próprias noções de direitos e de justiça.

Bibliografia Básica

CIRNE LIMA, Ruy. Pequena história territorial do Brasil: sesmarias e terras devolutas. Porto Alegre: Livraria Sulista, 1990. p.13.

COSTA PORTO. Estudo sobre o sistema sesmarial. Recife: Imprensa Universitária, 1965. p.28.

DIAS, Marcelo H. Conflitos de Terra na Bahia Colonial: Donatários, Jesuítas e Lavradores. In: Em Terras Lusas: Conflitos e Fronteiras no Império Português, (Orgs) Márcia Motta, José Vicente Serrão e Marina Machado. Vinhedo, Editora Horizonte, 2013.

MOTTA, Márcia. Nas Fronteiras do Poder, conflito e direito à terra no Brasil do século XIX. Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. Vício de Leitura: Rio de Janeiro, 1998.

NEVES, Erivaldo Fagundes. Estrutura fundiária e dinâmica mercantil: Alto Sertão da Bahia, séculos XVIII e XIX. Salvador: Edufba; Feira de Santana: UEFS, 2005.

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