Revista Impressões Rebeldes

NOSSAS PRIMEIRAS AGITADORAS

Mulheres estiveram à frente de revoltas que mudaram os rumos da história, mas ficaram invisíveis

Rebecca and her Daughters (from the Illustrated London News)

Alexandre Rodrigues de Souza

Alexandre Rodrigues de Souza é doutorando em História pela UFF, autor da dissertação A “DONA” DO SERTÃO: mulher, rebelião e discurso político em Minas Gerais no século XVIII (UFF, Niterói, 2011).

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Pelo fim da fome, da guerra, do emprego infantil. Por remuneração adequada e melhores condições de trabalho. Estas bandeiras foram a pauta sindical organizada pelas operárias russas nos protestos do dia 8 de março de 1917, que deram lugar as comemorações do Dia Internacional da Mulher.

Tais reivindicações do início do século XX ficaram conhecidas como “Paz e pão”, expressão que também caracterizava a luta política protagonizada pelas mulheres na Europa durante a época moderna. Neste período, eram elas as primeiras a identificar o aumento do pão ou a escassez de alimentos no mercado. Nas comunidades onde ocorreram ondas de fúria entre os séculos XVI e XVIII elas estiveram presentes, tanto nos motins de fome como nas sublevações antifiscais, nas revoltas religiosas e nas agitações políticas, lembram os estudos de E. P. Thompson, Jean Delumeau e Arlette Farge. Eram verdadeiras “viragos” nos campos de batalha. Porém, num ambiente onde o protagonismo e a cena pública pertenciam aos homens, o mundo feminino passou por muito tempo invisível à História.

A relação entre mulher e transgressão vem de longe. Enquanto as operárias russas lutavam por uma possibilidade de igualdade entre os sexos no início do século XX, na Época Moderna a desigualdade entre o mundo feminino e masculino era a norma. A mulher deste contexto era constantemente lembrada pelo terrível pecado que havia cometido no jardim do Éden. Vítima, manipuladora, ingênua, fraca de espírito e desamparada, estes atributos serviram – paradoxalmente – para nos afastar da compreensão do papel da mulher nas revoltas.

No Brasil colônia, ao descrever a participação feminina na Guerra dos Emboabas em Minas Gerais, o cronista Sebastião da Rocha Pita escreveu no século XVIII que os paulistas, ao voltarem derrotados para casa, teriam sido recebidos por suas esposas indignadas, “blasonando de Pentensiléias, Semíramis e Zenóbias”. Suas mulheres “os injuriavam por se ausentarem das Minas fugitivos, e sem tomarem vingança dos seus agravos, estimulando-os a voltar” e atacar os grupos emboabas. São palavras inspiradas na mitologia clássica. A narrativa destaca a revanche instigada pelas mulheres paulistas e, por outro lado, a covardia dos homens do planalto. O autor sublinha a ferocidade daquelas que, na sua ótica, eram por natureza portadoras da desordem.

Na revolta de Vila Rica em 1720, a representação da vingança é novamente recuperada pela figura feminina. O Discurso Histórico e Político sobre a sublevação que nas Minas houve no ano de 1720, atribuído ao Conde de Assumar, relata o caso das “viúvas que experimentam, padecem, choram a falta dos maridos, o amparo dos pais, a perda do cabedal, nos incêndios, nos assaltos, nas mortes” durante os protestos. As mulheres desamparadas pediam castigo e “consta que chegam suas vozes muito vivas aos tribunais” e não sendo ouvidas “apelam para Deus”. Essas mulheres “cobram em lágrimas sem remédio a satisfação que a justiça lhes deve em sangue”. Sua suposta ira natural qualificava o discurso político da rebelião. A representação feminina da condolência e reparação é emprestada à arena do levante.

Contrariando estes discursos misóginos, duas “Donas” tiveram atuação política em protestos no século XVIII de forma bastante similar. D. Maria da Cruz foi uma das principais lideranças dos motins que sacudiram o sertão das Minas em 1736, atualmente norte do estado de Minas Gerais. Ela e os moradores daquele sertão protestavam contra o pagamento do quinto sob a forma de capitação – direito régio instituído em 1735 determinando que todos os moradores das Minas, inclusive os criadores de gado, deveriam pagar um valor anual fixo sobre o número de escravos que possuíam.

Poucos anos depois, outra agitadora, D. Benta Pereira, junto com seus parentes organizou um grupo de proprietários e administradores régios, dificultando o governo do Visconde de Asseca na Capitania da Paraíba do Sul, em 1748, hoje cidade de Campos dos Goytacazes/RJ. Maria da Cruz e Benta Pereira utilizaram como arma suas relações de amizade e parentesco, contavam com redes políticas que chegavam inclusive a Portugal. Maria da Cruz, por exemplo, era sogra de Alexandre Gomes, um dos homens mais ricos moradores do sertão da Bahia, e de Domingos M. Pereira, irmão do vigário geral do Arcebispado. Trata-se de um tempo onde os indivíduos eram reconhecidos por suas “parentelas e amizades”, conforme escreveu um contemporâneo.

Reuniões conspiratórias eram feitas em casas comandadas por essas matriarcas rebeldes e, como de costume nas agitações da época, seus filhos aparecem na lista dos líderes amotinados. Mariana de Souza Barreto, filha de Benta Pereira, foi a principal responsável pela tomada da Câmara da Capitania da Paraíba do Sul. No dia 21 de maio de 1748 ela “acompanhava e era a principal entre outras mulheres que concorreram armadas naquela sedição e insultaram os oficiais da Câmara”. Na sentença proferida, pela qual os rebeldes foram considerados culpados, Mariana Barreto aparece numa lista ao lado de oito homens. Ela foi condenada ao degredo “por toda a vida” para um presídio em Benguela, na África. Pedro Cardoso, filho de Maria da Cruz, era responsável pela distribuição de cargos aos enfurecidos do sertão e “provocador do povo levantado”.

Acusada de ser o motor da revolta de 1736, Maria da Cruz e seu filho foram pronunciados como os “principais cabeças” do levante. Ela foi julgada, “presa e seqüestrada pela culpa […] do levantamento do povo”. No entanto, Maria da Cruz recebeu “carta de perdão por graça de Deus Rei de Portugal e Algarves” em 1739. Naquele contexto, a fúria feminina era mais aceitável “na defesa dos filhos ou da religião, num motim por alimentos ou num levante religioso, ou em defesa de seu país, como nos casos de Judite e Joana d´Arc”, escreveu Natalie Davis. A clemência dada a Maria da Cruz foi mais que isso. Era também uma forma de estender os braços do poder real, demonstrar graça e benevolência do soberano àquele sertão rebelde.

Determinadas, as mulheres opõem-se à lei, abalam a coisa pública e subvertem a ordem em favor de causas que conheciam e sentiam como ninguém. Não há espanto algum em relação a atuação feminina nos protestos destes e de outros tempos. Mais interessante é torná-las visíveis à História e reconhecer a legitimidade das suas formas de ação.

Bibliografia Básica

BOTELHO, Angela V.; ANASTASIA, Carla M. J. D. Maria da Cruz e a sedição de 1736. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

DAVIS, Natalie Zemon. As mulheres por cima. In: Culturas dos povos: sociedade e cultura no início da França Moderna. Trad. Mariza Corrêa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

FARGE, Arlette. Agitadoras notórias. In: História das mulheres no ocidente: do renascimento a idade moderna. Porto: Afrontamento. 1991.

SOUZA, Alexandre Rodrigues de. A rebelde do sertão: Maria da Cruz e o motim de 1736. Varia História: UFMG, v. 29, p. 453-475, 2013.

PENNA, Patrícia. BENTA PEREIRA: mulher, rebelião e família em Campos dos Goytacazes, 1748. Dissertação (Mestrado em História). Niterói, RJ: Universidade Federal Fluminense, 2014.

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