Revista Impressões Rebeldes

O ÚLTIMO MOTIM: O OUTRO LADO DA RENDIÇÃO DOS HOLANDESES NO BRASIL (1654)

Se as tropas luso-brasileiras lutaram com empenho, o amotinamento e deserções nas fileiras do exército holandês foram também decisivos para o fim da ocupação no nordeste brasileiro.

Autor desconhecido, ca. 1671. In Montanus, Arnoldus. De Nieuwe en Onbekende Wereld: of Beschryving van America en ’t Zuid-Land. Amsterdam: Jacob Meurs, 1671.

Bruno Romero Ferreira Miranda

Bruno Romero Ferreira Miranda é professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco e autor do livro “Gente de guerra: origem, cotidiano e resistência dos soldados do exército da Companhia das Índias Ocidentais no Brasil (1630-1654)” (2014).

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A rendição dos holandeses no Recife é, até hoje, um dos eventos históricos mais rememorados em Pernambuco. Até mesmo a data de fundação do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano remete ao sucesso português que findou com a presença da Companhia das Índias Ocidentais no Brasil. Contudo, nessas rememorações, aspectos cruciais que nos ajudam a compreender a capitulação usualmente não foram mencionados.

Do processo que culminou na rendição, pouco se fala da ação da soldadesca da Companhia e de seu papel para o desfecho do assédio ao Recife. Esta é uma omissão quase exclusiva dos historiadores que escreveram a respeito desses eventos e contrasta com as várias menções, com menos ou mais detalhes, feitas pelos cronistas da guerra, sem falar dos textos da Companhia que nos possibilitam construir uma narrativa sobre o ocorrido. Talvez esta tenha sido uma supressão propositada, pois parece retirar, para alguns, um pouco do brilho da ação dos portugueses.

Para falar do fim do cerco ao Recife é conveniente lembrar que no período subsequente às derrotas nos montes Guararapes, as tensões entre a Companhia e suas tropas foram acentuadas. Não é demais mencionar que nos dois conflitos em Guararapes, o desempenho do exército neerlandês foi duramente comprometido pelo número substancial de deserções de militares. Fugas de soldados minaram ainda mais o exército da Companhia após 1649 e os membros do Alto Governo reportaram a fuga de grupos inteiros de soldados em plena luz do dia. Alguns militares insatisfeitos chegaram a “entrar à força nos dormitórios dos conselheiros” para reclamar os vencimentos atrasados. Nada a se estranhar, pois o Recife daquele tempo foi descrito como o “covil” da inanição. A crise, naquele período, era extrema e os membros do governo tiveram que usar “todas as suas artes de persuasão” para consolar seus funcionários e dar-lhes esperança de melhores dias. Esperava-se que um grande motim sacudisse o Recife, expectativa esta ancorada nos inúmeros atritos de militares com seus comandantes desde a rebelião portuguesa contra a Companhia, em 1645.

O motim geral que o governo esperava não ocorreu nos anos entre Guararapes e o cerco final levantado pelas tropas portuguesas entre dezembro de 1653 e janeiro de 1654. Quando a possibilidade de que isso ocorresse mostrou-se mais concreta, o governo decidiu não ir adiante e entrou em acordo com os inimigos. Talvez essa decisão não tivesse sido tomada se as tropas, até então abertas a negociação, não tivessem levado adiante algo que há muito tempo disseram estar dispostas a fazer. Um motim feito por um grupo de soldados em uma fortificação nos arredores do Recife, em janeiro de 1654, foi muito mais danoso do que a série de ameaças e deserções isoladas dos anos ulteriores às derrotas em Guararapes.

Uma pequena lista datada de março de 1655 contendo os nomes de soldados amotinados em uma fortificação é uma das peças que auxiliam o entendimento de um dos eventos responsáveis pela saída definitiva da Companhia do Brasil. A lista em si pouco informa a respeito do sucedido. Sequer consta que ocorreu no Brasil e traz nomes, local de origem, patente, navio de transporte e a câmara de procedência de 31 homens, das companhias do sargento-mor Willem ter Berghe e do capitão Carel Frederick van Gladis, que se revoltaram em uma fortificação de nome Altená. Na linha de defesa externa do Recife e Antônio Vaz, este forte foi uma das primeiras posições atacadas pelos luso-brasileiros em janeiro de 1654.

É difícil ir além com as informações dispostas em tal listagem, apesar de se notar que sete dos militares nomeados viajaram para o Brasil no mesmo navio e foram recrutados na cidade de Amsterdã – evidência talvez de que se conheciam anteriormente. Ademais, três deles foram apontados como “principais” amotinadores. Também se observa que a maior parte dos homens era composta de soldados, gente de origem diversa, majoritariamente do Norte da Europa, e que a maior patente entre os amotinados era de cabo. Boa parte desses homens teve seus nomes arrolados em um livro de pagamento de 1655, indício de que estavam no Brasil por muitos anos, uma vez que o livro registra os nomes dos que serviram entre 1648 e 1654. Outros nomes de pessoas envolvidas no motim foram anotados nesse livro, o que aumenta o número de envolvidos para 38, incluindo ainda o dado adicional de que um dos homens da pequena lista era “o principal amotinador”, em diferença do termo “um dos principais” adotado na lista. Há ainda outro elemento importante para saber algo sobre o destino dos amotinados: ao lado dos cálculos dos soldos a vencer de dois dos homens listados no livro de pagamento foi adicionada a informação de que eles deveriam ser “purgados” por terem participado do motim do forte Altená. Talvez esse seja um indício de que eles deveriam ter seus nomes expelidos da folha de pagamento, não estando autorizados a receber qualquer vencimento da Companhia.

É impossível traçar o paradeiro desses homens. Os relatos do imediato no comando geral da frota que cercou o Brasil, Francisco Brito Freire, do mestre de campo e general do Estado do Brasil, Francisco Barreto de Menezes, e de Dom Francisco Manuel de Melo, informam que os cerca de 300 soldados rendidos nos fortes das Salinas, no Altená e no reduto Amália foram encaminhados à Bahia e embarcados em pequenos grupos para Portugal. O capitão Hugo de Meyer, o capitão Coenraed van den Brincken e o alferes Hans Frederick Metscher, rendidos nessas fortificações, estavam em Pernambuco e seguiram com as tropas da Companhia para as Províncias Unidas alguns meses após a capitulação. Eles deram, ainda no Brasil, depoimentos a respeito dos acontecimentos nessas fortificações. Isso pode indicar que parte dos homens envolvidos no motim voltou para a Europa, mas é difícil saber se eles procuraram recuperar o dinheiro que tinham pendente na Companhia.

Devido à impossibilidade de saber mais a respeito desses homens, o melhor caminho para explicar seu motim é retornar ao mês anterior, no dia 20 dezembro de 1653, quando a Armada da Companhia Geral de Comércio do Brasil foi avistada numa manhã seguindo em direção ao Recife. Também é importante mencionar brevemente que os efetivos da Companhia no Brasil já estavam em número bastante reduzido em comparação com aqueles do tempo das batalhas em Guararapes.

Com os homens proibidos de retornar para casa – e alguns tinham prestado serviços por duas ou três vezes mais tempo do que o estipulado em seus contratos –, com a chegada minguada de reforços, com pouquíssimas embarcações em condições de uso e dependendo muito do auxílio externo para se alimentar, a tropa da Companhia estava abatida antes mesmo do início efetivo do confronto.

Antes mesmo do começo efetivo das hostilidades, o governo da Companhia já falava em uma “manifesta indisposição geral entre o povo”, sinal claro de que o moral entre o pessoal da Companhia estava baixo. Isso fica mais evidente com pequenos episódios como o motim do navio Brazil, as primeiras deserções de soldados – por sua vez atiçadas por cartas do inimigo –, por boatos que circulavam nas ruas, que davam conta de que os fortes Altená e Salinas estavam minados e que em breve seriam explodidos pelo inimigo, além das usuais dificuldades em prover a tropa. Os homens queixavam-se da falta do vestuário, da intensa jornada de trabalho e em outras praças faltava comida, dinheiro e apetrechos bélicos.

Após a queda do forte das Salinas, primeira fortificação atacada no dia 16 de janeiro de 1654, o moral das guarnições do Recife deteriorou-se com ainda mais velocidade. Soldados no forte Goch, no istmo, declararam não poder mais guardar o forte, pedindo para serem dispensados por terem sido, desde a chegada da frota portuguesa, postos para trabalhar sem descanso. O comandante da fortificação, o tenente-coronel Willem van de Wal, expunha oralmente ao governo que sua gente estava intimidada pela força inimiga. No forte Brum, membros do governo declararam que os soldados demonstravam “muita desobediência e licenciosidade”, “reclamando de diferentes coisas” e “vociferando descaradamente propostas sediciosas”. Previam-se “grandes desgraças” se nada fosse feito a respeito.

O ataque seguinte das tropas luso-brasileiras foi direcionado ao forte Altená, cujo comandante, o sargento-mor Willem ter Berghe, manteve contínua comunicação com o governo dos dias 17 a 19 de janeiro. Nesse curto espaço de tempo, Ter Berghe pediu reforços – sobretudo tropas frescas, pois seus homens estavam escaramuçando sem trégua. Ele também informou sobre o progresso do inimigo contra o forte e no final da tarde do dia 19, enviou uma carta com a requisição de balas de mosquete e piques – sinal de que ele esperava um assalto a sua fortaleza em pouco tempo –, além de avisar da existência de uma “grande animosidade” entre os seus militares. Sua observação mostrou-se verdadeira quando, à noite, cinco barcos, que levavam reforços em gente e apetrechos, avistaram no forte uma bandeira branca. A confirmação da rendição veio depois, com a chegada à cidade de 12 indígenas e seis “soldados brancos” que serviam na fortificação. Segundo eles, os soldados do Altená apontaram suas armas contra o sargento-mor Ter Berghe e o capitão Van Gladis dizendo que não queriam mais lutar e que iriam entregar o forte ao inimigo. No começo da madrugada do dia 20, a despeito da tentativa de negociação do sargento-mor, um dos soldados pulou da muralha do forte, retirou sua camisa e a balançou para negociar a entrega da fortificação ao inimigo. Um alferes, evadido posteriormente do forte, confirmou a versão dos primeiros fugitivos. Surgiram ainda nesses testemunhos os nomes de dois militares: Herman van Hall, um anspeçada oriundo da Província de Utrecht e recrutado em Amsterdã, e Johannes Wolff, um cadete de Lübeck, igualmente recrutado em Amsterdã. Eles foram apontados como os principais autores do motim. As testemunhas também mencionaram que as tentativas do sargento-mor de conter seus homens fracassaram quando foram avistadas das muralhas do Altená as pontas dos piques dos inimigos que estavam nas trincheiras, indicativo de que eles iriam assaltar a fortificação naquela noite, “o que eles não queriam esperar”.

Outros relatos dão conta de que além do motim e da entrega da fortificação, os soldados também aproveitaram para pilhar seus oficiais. Francisco Barreto de Menezes, que negociou com os amotinados, cita que um deles, chamado “Van Hagen”, talvez o anspeçada Herman van Hall – apontado como um dos principais amotinados na lista de março de 1655 – foi enviado com o título de capitão para tratar da capitulação, algo comum em motins de militares, que escolhem entre os seus aqueles que eles enxergam como seus representantes. Aos rebelados foi permitido sair do forte com suas armas e bagagens e lhes foi ainda autorizado vendê-las, o que eles fizeram a particulares e ao Provedor da Fazenda Real, recebendo “dinheiro de contado” e a promessa de passagem e sustento para Portugal. No ataque ao forte, morreram 30 homens da Companhia e mais de 20 ficaram feridos.

O motim não parece ter sido apenas uma ação de impulso. Antes do primeiro dia do ataque, um soldado de nome Philips Jansen recebeu do governo 13 florins provavelmente por denunciar a conspiração feita entre a tropa do forte. A ata do governo que trata do episódio não foi clara a respeito do depoimento do soldado e apenas registrou que ele lhes informou da existência de “algumas inquietações” que corriam no forte. Apesar da denúncia, nenhuma das informações trocadas pelo sargento-mor e o governo indicou a existência de uma conspiração da tropa ou mencionou alguma providência tomada para punir os possíveis conspiradores. Esperava-se até mesmo que o forte pudesse resistir por mais quatro ou cinco dias, conforme opinião do tenente-general Sigismund von Schoppe, algumas horas antes do envio da carta do sargento-mor Ter Berghe que informava respeito da “grande animosidade” entre os homens.

A lista de março de 1655 e os testemunhos dos fugitivos do forte ajudam a confirmar a existência da conspiração denunciada pelo soldado Philips Jansen. Em sua maioria, essa gente chegou ao Brasil no mesmo navio e quiçá serviu junta por longos anos. As razões do motim, além das mencionadas diretamente pelas testemunhas, parecem ainda mais evidentes quando se observa que quase todos participantes listados, incluindo os “principais”, estavam no Brasil há muito tempo. Portanto, além de se conhecerem, algo importante para o planejamento de um motim, eles deviam estar insatisfeitos com os longos anos de negligência e maus tratos, com a ração por vezes diminuta e de qualidade duvidosa e com os trabalhos extenuantes. O cerco ao Recife, os combates que cada vez mais ameaçavam suas vidas, a boataria e as cartas dos inimigos prometendo-lhes vantagens pecuniárias e passagem livre para casa, somadas ao conjunto de velhas insatisfações, serviram de estopim para a rebelião e entrega da fortificação, cuja gestação provavelmente já ocupava suas mentes.

O clima que já estava ruim no Recife e em Antônio Vaz ficou mais tenso e os homens do forte Brum também começaram a se agitar. Notícias de ameaças proferidas pelas tropas chegaram aos ouvidos dos membros do governo através da população. Militares declaravam abertamente que não iriam lutar e que pretendiam saquear os civis. Tentou-se dar algum contentamento aos militares, mas era tarde. Mesmo com uma resistência inicial, que resultou em ásperos combates contra os portugueses, o governo, sem contar com o apoio integral da tropa e almejando obter melhores termos com o inimigo, resolveu entrar em negociações. O motim no forte Altená não foi o único motivo da rendição, mas é impossível não dar certa razão ao frei Raphael de Jesus quando ele afirmou que com sua queda, ampliaram-se as desconfianças entre soldados, oficiais do exército e governo.

Bibliografia Básica

BOXER, C. R. Os holandeses no Brasil: 1624-1654. Recife: CEPE, 2004.

MELLO, E. C. de. Olinda restaurada. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998.

MELLO, E. C. de. O Brasil holandês (1630-1654). São Paulo: Penguin Classics, 2010.

MELLO, José Antônio Gonsalves de. A Rendição dos Holandeses no Recife (1654). Recife: IPHAN/MEC, 1979.

WÄTJEN, Hermann. O Domínio Colonial Holandês no Brasil. Recife: CEPE, 2004.

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