A vida de João Cândido ou o Sonho da Liberdade foi o título dado pelo marujo à autobiografia concebida logo após a Revolta da Chibata (1910), quando esteve internado no Hospital Nacional dos Alienados. O texto foi parcialmente publicado como “Memórias de João Cândido, o marinheiro” na Gazeta de Notícias do Rio Janeiro, em doze capítulos, entre 31 de dezembro de 1912 e 12 de janeiro de 1913. Até aí, não há dúvidas. Mas a memória e a história de João Cândido Felisberto (1880-1969) sempre foram motivo de embates (alguns deles violentos), ocultações e mistérios.
Os trechos publicados com exclusividade pela Revista de História da Biblioteca Nacional fazem parte da 5a edição do livro A Revolta da Chibata, do jornalista Edmar Morel (1912-1989), que lançada pela Editora Paz e Terra em 2009, com a íntegra dessas “Memórias”, tal como publicadas originalmente.
A rebelião nas águas da Baía de Guanabara, ocorrida entre 22 e 27 de novembro de 1910, contou com a participação de 2.300 marujos, que tomaram os principais navios de guerra, entraram em confronto com oficiais (morreram cinco deles, além de marinheiros) e ameaçaram bombardear a então capital do país caso não fossem atendidos. O objetivo principal era acabar com os castigos corporais na Marinha de Guerra, reivindicação vitoriosa, pois o governo federal cedeu aos revoltosos – apesar da violenta repressão ocorrida após a anistia, com centenas de presos, dezenas de mortos e 1.200 expulsos da corporação, incluindo João Cândido.
O conteúdo das “Memórias” foi ditado a um paciente do hospital chamado Castanhola e, depois, a outro prisioneiro, desconhecido no Hospital Militar. O relato recebeu intervenções pontuais de redatores da Gazeta de Notícias, que o resumiram e até enxertaram algumas passagens. É provável que o conhecido escritor João do Rio (1881-1921), então principal redator do periódico, tenha participado dessas
intervenções. O que não invalida a autenticidade e a importância do testemunho, publicado em livro pela primeira vez. Na versão do jornal, por exemplo, o chamado Almirante Negro teria inicialmente fugido e recusado a liderança da revolta. João Cândido desmentiu várias vezes esta versão.
O diário tornou-se um campo de disputas. A rebelião costuma ser compreendida em duas grandes linhas interpretativas, com variantes e nuances: uma destaca o papel dos marinheiros e da liderança de João Cândido como modo de afirmação da justiça e da dignidade humana; outra denuncia a quebra da hierarquia e procura desqualificar ou desconstruir a valorização de tais personagens.
Existiram cópias manuscritas do material. Mas todas desapareceram sem deixar traços, até o momento. Uma, a original, estava com o marinheiro e teria sido destruída quando ele voltou preso para o quartel da Ilha das Cobras, como afirmou a Edmar Morel. Outra, feita a lápis por ordem do diretor do Hospital dos Alienados – o conhecido psiquiatra Juliano Moreira (1873-1932) –, percorreu sinuosa trajetória entre outros intelectuais. A cópia que foi usada pela Gazeta era escrita à tinta.
A suposta incapacidade de João Cândido para conceber tal relato é fruto de arraigados preconceitos, como rotular automaticamente de “semianalfabeto” um homem negro e pobre, filho de escravos no período imediato pós-abolição. João Cândido foi marujo instrutor da Marinha (em navios-escola, na Escola de Aprendizes de Marinheiros e na Escola Naval). Ou seja, não era “sem instrução”. Escrevia cartas e bilhetes (apesar de ter a ponta de seu dedo indicador direito decepada num acidente, o que dificultava sua escrita), teve o hábito de ler jornais diariamente durante toda a vida, além de se posicionar sobre tudo o que se escrevia a seu respeito.
Do manuscrito perdido à versão impressa, as “Memórias” de João Cândido desafiam os pesquisadores e mantêm acesa a história das lutas contra a violência e o preconceito, ainda presentes nos dias de hoje.
Trechos das “Memórias”
“42 chibatados”
Tinha-se tornado impossível a vida a bordo. Só em um dia, por esse tempo, a bordo do “Minas Gerais”, foram chibatados nada menos que 42 marinheiros. Foi só então que se resolveu, entre os marinheiros que faziam parte da guarnição desse navio, tomar providência para fazer cessar esse estado de coisas. Não sendo, porém, aceitas pelas autoridades competentes as reclamações justas feitas em atitude moderada pelas praças, é que ficou assente tomar-se por meios violentos as providências que o caso exigia, convocando-se para isso sessões nesta capital, assistidas pelos marinheiros, contanto que guardassem muito segredo e escapassem a toda e qualquer vigilância das autoridades policiais.
“Bombardeariam a cidade”
As reuniões começaram as sessões, com todo o sigilo, sem que as autoridades pudessem saber. Tiro do meu caderno de notas os resumos das sessões:
1a Sessão. Dia 12 de setembro – Ficou deliberado que depois de chegarem a esta capital, a divisão que fôra ao Pacífico e o couraçado “São Paulo”, que ainda se achava na Europa, porque de posse desse navio, do “Minas Gerais”, “Bahia” e do “Deodoro”, podiam levar adiante o que os marinheiros almejavam, seria levado a efeito o levante.
E, como deliberação também tomada nessa primeira sessão, foi distribuído, ainda em setembro, um manifesto às guarnições das divisões dos couraçados e cruzadores e ao corpo dos marinheiros nacionais, escolhendo para isso como organizadores os colegas de maior confiança.
2a Sessão. Dia 23 de outubro – Em uma casa de cômodos da vila Ruy Barbosa, onde residiam muitos marinheiros, na sua quase totalidade músicos, os quais faziam parte direta do movimento, fez-se a reunião.
Ficou acertado, que, em vista de haver, a bordo do “Minas Gerais”, grande atividade por parte dos oficiais e por terem estes notado qualquer sinal anormal nos paióis de munições e nos mecanismos dos aparelhos da artilharia, houve mais cautela.
3a Sessão. Dia 25 de outubro – Por deliberação do chefe das reuniões, Sr. Vitalino José Ferreira, e dos Srs. Pedro Lino dos Santos, José Eduardo de Oliveira, Cassio de Oliveira e Manuel da Silva Lopes, todos ex-marinheiros pertencentes a ex-guarnição do “Minas Gerais”, sendo que o primeiro destes foi fuzilado a bordo do navio fantasma, o “Satélite” do Lloyd Brasileiro, e por ser a última reunião em que tomariam parte as guarnições do “São Paulo” e dos demais navios que já estavam de posse do manifesto, foi esta sessão marcada para mais cedo, para às 6 horas da tarde desse dia.
À hora indicada, de fato achavam-se as comissões reunidas no lugar estipulado. Resolveram eles então que para completo cumprimento do dever da missão em que estavam empenhados: 1o) o juramento de que, cobertos com a bandeira da República, fariam todo o possível para o cumprimento da causa; 2o) que quando em 14 de novembro saíssem com a esquadra para a grande revista naval, ao regressarem ao porto, seriam intimados os oficiais a abandonarem os navios, de posse destes, obrigariam as autoridades constituídas a fazerem com que fosse abolido o uso da chibata, da palmatória e com que fossem melhoradas as condições de passadio dos marinheiros, caso contrário, bombardeariam a cidade e os navios que não aderissem ao movimento.
“Mortos e feridos a bordo”
Assim, em 22 de novembro de 1910, depois de havermos destacado um mensageiro para avisar aos companheiros que seria neste dia levado a efeito o movimento, preparamo-nos para a revolta. Às 10 horas da noite então, estando de estado, o 2o tenente Álvaro Alberto determinou ao corneteiro da guarda que desse o toque de silêncio. Este não encontrou a corneta, o que causou logo alguma estranheza. Já nos havíamos apoderado dela, escondendo-a.
Em seguida, porém, o dito toque foi feito por outro corneteiro de guarda avante, que foi na mesma ocasião respondido com o toque de combate, por dois outros para isto postos anteriormente em dois outros lugares. À esse tempo já havíamos procedido ao arrombamento dos paióis, para o que já havia gente escalada de antemão. Em seguida tratamos de nos apoderar do armamento portátil, destacando sentinelas para os pontos mais convenientes.
Foi então que chegou a bordo, acompanhado pelo 2o tenente Armando Trompowsky, o comandante Baptista das Neves, que se achava a bordo do cruzador “Duguay-Trouin”, onde fora assistir a um banquete em sua honra. Ao receber, porém, a nossa intimação, para que abandonasse o navio, o comandante Neves recusou-se terminantemente.
(…) Logo que fui feito comandante da esquadra revoltosa, tratei de informar-me se existiam mortos e feridos a bordo. Então tive informações diretas que sim, que havia alguns, eram o nosso ex-comandante Baptista das Neves, depois de haver sustentado, com o heroísmo que a sua posição exigia, uma luta de mais de meia hora, também o capitão-tenente José Claudio e o grumete Joviniano Baptista de Oliveira. Eu da minha parte lamentei esse acontecimento, que iria pôr de luto a marinha brasileira. Eram oficiais distintos, notadamente o comandante Baptista das Neves, cuja competência e valor toda a nossa armada pôde dar testemunho.
Determinei, então, que fossem os cadáveres transportados para o salão de honra e que fossem destacadas praças, durante toda a noite para a guarda dos corpos. Depois, mandei que se reunisse toda a guarnição, a fim de se fazerem as nomeações que o momento exigia, tendo ainda telegrafado às autoridades, dando conta dos acontecimentos e também recebido a adesão do couraçado “São Paulo” e do “scout” “Bahia”.
“Nem quis ver a minha cara”
(…) às 4 horas da tarde [25/11/1910], recebi novo rádio, do presidente da República, participando ter sido sancionado pelo mesmo o decreto que nos concedia a liberdade. Finda esta cerimônia, a banda de música executou o hino nacional.
Aí chegando [ao Arsenal de Marinha], fui intimado para que a lancha não largasse mais. Achava-se aí, por esse tempo, o 2o Batalhão de Infantaria da Brigada Policial. Cercaram-me, então, mais de duzentos homens com ares arrogantes. Eu sempre calmo e resoluto, sim, resoluto, porque não sou de ferro. Sou homem para tudo, menos para morrer assim. Houve então um policial que, chegando-se a mim, me disse: “Você no mar é bicho, seu cabra velho!”.
Em seguida se apresentou um tenente que, tratando comigo, indagava pelo João Candido. A coisa era comigo, resolvi declarar quem eu era e de onde procedia. A este tempo havia tanto soldado que já não entrava nem a ponta de um alfinete.
Mal disse isso, fui levado à presença do almirante Julio Noronha, inspetor do Arsenal. Eis que logo surge uma carabina e grande quantidade de munição na mão de um outro policial que estava dizendo ter encontrado tudo isto na lancha.
Daí fui levado à presença do chefe do Estado Maior. Apresentado ao capitão de corveta Cesar de Mello, acompanhado de 25 praças e dois oficiais, este capitão nem quis ver a minha cara.
O mais interessante de tudo isso é que o soldado que me prendeu tirou-me o lenço que eu tinha como distintivo na revolução, uma caixa de fósforos, um maço de cigarros e 65$ em dinheiro, dizendo: “Quem vai para onde você vai, não precisa de dinheiro”.
“Não pedi para dizerem que era doido”
Em 13 de abril [de 1911], queixando-me de estar doente, como de fato me achava atacado de enfraquecimento geral, então disse-me o doutor que ali se achava [no Quartel da Ilha das Cobras], que eu estava louco e que era ordem do ministro não me baixarem ao hospital, porque eu depois de anistiado tinha sido um dos implicados da segunda revolta [ocorrida em 9 de dezembro de 1910 no Batalhão Naval na Ilha das Cobras e no cruzador Rio Grande do Sul, na qual morreram 24 marujos rebeldes]. (…) Eu não pedi a nenhum deles para dizerem que era doido. Eu unicamente havia, anteriormente, pedido tratamento. Por fim, acabaram todos [os médicos] afirmando que eu estava sofrendo de anemia cerebral e fenômenos alucinatórios. Valha-me isto. Caiu a sopa no mel. Ali não me passaria mais gato por lebre. (…) Depois embarquei em um automóvel e, sem saber o destino, fui parar na praia da Saudade, no porão principal do Hospício Nacional, onde estive sob os cuidados do muito digno Dr. Braulio Pinto e onde me foram dispensadas muitas gentilezas. Lá estive de 18 de abril a 4 de junho de 1911. Do hospício voltei à ilha das Cobras, escoltado por quatro praças de polícia, em carro forte. Fiquei nas prisões novamente, sempre incomunicável até depor no conselho de Marques da Rocha.
“Fé de ofício”
E para terminar direi que a minha fé de ofício, em 17 anos e dias, apresenta apenas quatro prisões, sendo a maior de cinco dias de prisão rigorosa e suspenso das divisas de cabo por 60 dias, por ter introduzido a bordo bebidas alcoólicas. Só isso em 17 anos. E sempre tive as qualificações de exemplar comportamento, sendo ainda credor de três anos que deixaram de me pagar, não sei por que.
(Publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, ano 4, no. 44, Maio de 2009, p. 66-70)