Revista Impressões Rebeldes

Nas páginas da imprensa brasileira

As concepções sobre soberania popular foram debatidas e explicadas nos jornais após a Revolução do Porto em 1820

O Revérbero Constitucional Fluminense, foi um dos primeiros panfletos periódicos a surgir em oposição ao domínio português, o jornal era editado por Joaquim Gonçalves Ledo e Januário da Cunha Barbosa entre 1821 e 1822. Biblioteca Nacional Digital.
30 de novembro 2023 Ano 11, n. 2 (jul-dez), 2023

Augusto Henrique Assis Resende

é doutor em História pela Faculdade de Ciências e Letras da UNESP - campus Assis, autor da tese Imprensa e culturas políticas no Império Luso-brasileiro: 1808-1822 (com apoio da CAPES), de 2022.

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O tema relativo à soberania não era novo em inícios do século XIX no cenário ocidental, tendo-se em conta que as referências a esse conceito remontavam pelo menos ao século XV, bem como estava presente em obras clássicas de John Locke, Thomas Hobbes, Montesquieu, Jean-Jacques Rousseau. Porém, com o avanço dos movimentos liberais-constitucionalistas durante as décadas de 1810 e 1820 (como aqueles ocorridos nas penínsulas Ibérica e Itálica), o assunto acerca da soberania ganhou ainda mais destaque no mundo das letras.

A disseminação de escritos que diziam respeito a duas concepções ligadas ao conceito de soberania pode ser vista em jornais do período correspondente às décadas acima referidas: a primeira dessas concepções proviria do monarca e de sua representação real com uma pretensa origem divina, portanto, em consonância com as práticas políticas vigentes no Antigo Regime; a segunda se originava no Povo e na Nação, e apesar de possuir teor mais antigo do que a primeira concepção, seria bem assimilada às demandas liberais do início do século XIX. 

Percebe-se que nas décadas de 1810 e 1820 do universo luso-brasileiro, a questão da soberania esteve presente nas páginas da imprensa com a possibilidade de ser bastante lida, e discutida, por inúmeros indivíduos. Isso se daria pela importância que a Revolução do Porto (24 de agosto de 1820) teria para os luso-brasileiros, tendo propiciado a diversificação do vocabulário político da época, e espalhando os preceitos de liberdade que ampliariam os espaços para diálogos e debates em torno da política imperial luso-brasileira. 

Assim, prevalecia uma versão e visão tradicionais de soberania bastante difundidas no ocidente até pelo menos o século XIX: de que ela remontava ao direito de conquista por meio de guerra da cristandade contra algum inimigo dessa fé, ou de embates entre membros da nobreza; de doação feita por um monarca mais longevo e, possivelmente, com relação de vassalagem-suserania; e conforme a ordem divina, em que a aliança da realeza com o clero convergiria no sentido de a religião legitimar o poder real. Essa versão da soberania ligada a um governante soberano possuía um sentido medieval, sendo considerada um atributo essencialmente real, por isso, necessariamente relacionado à realeza. Dessa maneira, caberia exclusivamente ao monarca ser o soberano dos povos e dos territórios em que eles habitavam. 

Relativamente a Portugal, esse tipo de atribuições vinha de reivindicações ligadas às guerras de conquista acontecidas na península Ibérica (aproximadamente entre os séculos X e XV), isto é, as guerras justas contra os “infiéis” muçulmanos. Foi nesse sentido que ao resgatar os territórios e os povos dos inimigos, D. Afonso Henriques ganhava uma concessão do rei espanhol referente àquele lugar: o título de rei. Em agradecimento pela reconquista, os povos ali estabelecidos teriam aceitado a indicação referente ao novo monarca, ratificando-o como seu soberano em reunião das primeiras Cortes portuguesas em 1143. Por fim, havia ainda uma última maneira de legitimação dessa soberania real, e ela tinha relação com a alegada aparição de Jesus Cristo em uma das batalhas contra os muçulmanos no Campo de Ourique em 1139. (PEREIRA, 2014, p. 402).

Entretanto, em Portugal, a rememoração dessa variante de soberania ganharia relevância principalmente pós-século XVII, em especial no período da restauração da monarquia lusitana frente à Espanha, com a nova dinastia dos Bragança (situação que punha fim à União Ibérica), e ela avançaria pelo século XVIII. Seria nesta centúria, juntamente com o Absolutismo, que se procuraria reforçar seus direitos e obrigações. De modo a situar uma questão relevante ao contexto de então, a ascensão dos Bragança ao trono colocaria fim à União Ibérica, visto que os portugueses proclamariam sua independência diante da Espanha em 1640, situação que não seria bem aceita pelos espanhóis. Com o passar do tempo, França e Inglaterra buscariam mediar e pôr termo nos desentendimentos entre os dois vizinhos, pois os conflitos entre eles já duravam cerca de 27 anos. Por fim, um tratado de paz entre Espanha e Portugal seria assinado em 5 de janeiro de 1668 (Madrid), e em 13 de fevereiro de 1668 (Lisboa). O acordo era ratificado pelo rei da Inglaterra, “que ficava como mediador e garante da paz” (SERRÃO, 1982, p. 57). E seria nesta centúria, juntamente com o Absolutismo, que se procuraria reforçar seus direitos e obrigações. 

Contudo, a soberania real não poderia ser confundida nem estar associada a algum poder absoluto, tirânico ou despótico, pois a concepção ligada a esse modelo de soberania fazia a analogia do monarca em papel paterno cuidando da casa e dos filhos, zeloso sem ser opressivo. Dessa perspectiva, a sua função “não era interferir arbitrariamente no reino, mas cuidar para sua conservação. A soberania era vista, sobretudo, como um poder encarregado de cuidar para a manutenção de uma nova ordem mística imutável que lhe ultrapassava e o englobava: a justiça” (PEREIRA, 2014, p. 402-403).

Como era comum no Antigo Regime, o absolutismo monárquico português vinha de algum tempo concentrando poderes no rei, esse que havia alguns séculos não convocava as assembleias gerais do reino (as Cortes), e se atribuía a exclusividade e autonomia na deliberação dos assuntos de Estado. Isso ocorreria principalmente no reinado de D. José I (1750-1777) e sob o Secretário Pombal, momento em que se reforçava o absolutismo e se tentava combater algumas ideias da tradição lusitana da soberania do povo cedida ao rei, e que depositava nele o caráter da supremacia soberana. Esse movimento tinha um esforço teórico e político para enfraquecer a concepção de que a soberania real precisava da aceitação do Povo e da Igreja; que ao contrário disso, ela seria legítima unicamente por direitos de conquista, doação, sucessão, e por ordenamento natural e divino (PEREIRA, 2014, p. 403-404).

Ainda que com a soberania real não se devesse exercer um poder absoluto, geralmente, o que se via em parte da Europa era esse tipo de soberania maculado por regimes despóticos, inclusive em Portugal. No decorrer dos séculos XVIII e XIX, e em contraste ao despotismo de alguns reis, surgiriam movimentos liberais de tendência constitucionalista. Os portugueses contrários ao absolutismo perceberiam o desenvolvimento daqueles movimentos e veriam neles uma possibilidade de reaverem a soberania tomada pelos reis absolutistas.

O movimento liberal-constitucionalista português nascia em um tumultuado contexto sociopolítico, algo também vivenciado em partes da Europa e da América, situação oriunda do descontentamento de amplos setores da sociedade portuguesa com os rumos da política imperial ditada a partir do Rio de Janeiro (1808-1821). Parte das insatisfações decorria de o rei (e praticamente toda a corte real) ter deixado Lisboa em novembro de 1807 em decorrência da invasão militar francesa, levando a um processo de abandono administrativo, econômico e político de Portugal. Por outro lado, ocorria a ascensão da América portuguesa, que deixava de ser colônia e passava a concentrar todo o aparato estatal, a alta nobreza lusitana, corpos militares, delegações e comerciantes estrangeiros, enquanto que a antiga metrópole tinha um governo regencial escolhido pelo rei e, com um agravante, tutelado pelos britânicos. Em linhas gerais, esse cenário gerava muito descontentamento nos habitantes de Portugal, por isso, viam no liberal-constitucionalismo um modo de tentarem reverter a política imperial (fosse com ou sem o rei), buscando reerguer Portugal e colocá-lo novamente como centro do império.

Assim, inspirando-se no movimento liberal vizinho, iniciado em Cádis (Espanha) em 1812, o movimento atingiria seu ápice em 24 de agosto de 1820, quando no Porto estourava uma revolução que reivindicava um regime liberal-constitucionalista para o reino lusitano. A revolução seria um marco bastante significativo aos reinos de Portugal e do Brasil, com seus membros aspirando a modificações políticas na estrutura do Estado a fim de se garantir mudanças políticas, sociais e econômicas. Todavia, com o cuidado de não modificarem muitas coisas no governo para que não ocorresse alguma ruptura (NEVES, 2003, p. 231-255). 

O clima liberal na conjuntura ibero-americana proporcionava a alteração no vocabulário cotidiano de parte dos indivíduos, levando ao seu conhecimento termos novos e a ressignificação de outros. A imprensa de ambos os lados do Atlântico expunha palavras da moda: Cortes, soberania, Constituição, povo etc., e com elas se veria a difusão de novas ideias políticas relacionadas com disputas ideológicas entre partidários do Absolutismo e do Liberal-constitucionalismo. Apresentariam também questionários didáticos em que se ensinava por meio de perguntas e respostas. Essa mesma imprensa serviria ainda como instrumento de divulgação de ideias e de projetos.

Como a instrução escolar e universitária enfrentava consideráveis obstáculos para se espalharem entre a maioria dos luso-brasileiros, um contingente significativo de pessoas se valia da imprensa para ler e/ou ouvir sobre as novas demandas políticas daqueles anos agitados de luta entre absolutistas e liberais-constitucionalistas. Nesse sentido, seria importantíssimo o crescimento do segmento jornalístico a partir da década de 1810, acentuado mais ainda com a revolução de 1820. 

Com a liberdade de escrita alcançada com essa revolução, alguns jornalistas costumavam ir além da informação e da notícia, eles queriam instruir as pessoas, tentando ensinar seus leitores e ouvintes acerca das alterações políticas que aconteciam naquele momento. Apresentavam debates e diálogos a respeito da representação nacional que se buscava com a convocação das Cortes Constituintes da Nação Portuguesa (que incluía o reino do Brasil), sobre soberania, relativo à Constituição etc. A intenção desses jornalistas também passava pelo receio que se tinha de as grandes massas serem manipuladas por pessoas mal-intencionadas, por isso, a relevância de tentarem ensinar ao público para que ele não se tornasse uma ameaça ao regime que se esboçava: uma monarquia constitucionalista. 

Ainda que o Liberal-constitucionalismo fosse almejado em muitos locais do Império luso-brasileiro, mostrando-se aversão ao Absolutismo, a imagem do rei seria poupada e seguia sendo louvada, até porque se queria um monarca constitucional. Mesmo que em outros momentos da história portuguesa o povo (conceito variável no tempo) tenha experimentado algum destaque, pela primeira vez na história do império, o povo era posto por alguns escritores como referência primordial em termos de ser o portador do poder do Estado, sendo o originário detentor da soberania da nação, pela primeira vez na história do império, o povo era posto por alguns escritores como referência primordial em termos de ser o portador do poder do Estado, sendo o originário detentor da soberania da nação, a qual havia sido há muito tempo depositada espontaneamente nas mãos da realeza.l havia sido há muito tempo depositada espontaneamente nas mãos da realeza. Versos em um jornal da Bahia mostram essa situação: “Os direitos dos povos respeitados/ O povo é soberano, o Rei seu Chefe,/ Quem ao Rei ofendeu, ofende ao Povo,/ Eis Constituição, ó dom Celeste” (Semanário Cívico, Salvador, 19/04/1821, n.º 8, p. 2-3).  

Em Lisboa, o governo liberal proclamado por povo e tropa ansiava pelo retorno de D. João VI à antiga capital do império e pela convocação das Cortes, com a intenção de elaborar uma Constituição Liberal. Com ela, o monarca seria submetido às leis da Nação, restabelecendo-se também “a supremacia europeia sobre o restante do império” (NEVES, 2011, p. 94). Àquela altura – talvez como artifício discursivo – ainda se creditava aos secretários (ministros) do rei o seu mau assessoramento, fazendo-se crer aos indivíduos em geral que as tomadas de decisão do governo estariam sob a má influência deles, o que eximiria sua majestade da acusação de ser mau governante.

Assim, pelos clamores e pressões advindos da revolução liberal do Porto, o monarca partiria do Rio de Janeiro em 26 de abril de 1821 e desembarcaria em Lisboa em 4 de julho de 1821. Restabelecido ali há alguns meses, noticiava-se de lá o seu juramento às bases da Constituição política da monarquia, com isso se acreditando que um “pacto social” entre o “nosso saudoso Rei” e a “nação soberana” era selado. “Também não é menos interessante a notícia de que [o Rei] afastou do seu lado aqueles malvados Conselheiros e Validos, de cujo vandalismo, ignorância e fanatismo fomos por longo tempo as vítimas.”[autor, por favor: mencionar de quem é essa citação, assim como o mês e o ano.] Uma vez que se considerava ser o rei bom, embora estivesse sob ações negativas de pessoas próximas a ele (principalmente os ministros), cumpria colocá-lo distante de tais influências, “que levaram a Nação à borda dos abismos”. Desta maneira o monarca poderia ser tido como o pai da Pátria e de seus Povos. Exaltava-se ainda o Congresso constitucional da monarquia lusitana – o “Templo Augusto da Filosofia e da Liberdade” –, que lhes garantia direitos, segurança e Liberdade; e que dos compatriotas brasileiros se poderia esperar a manutenção da união dos reinos. (Revérbero Constitucional Fluminense, Rio de Janeiro, 01/10/1821, n.º II, “Editorial”, p. 13-19.)

No meio luso-brasileiro, o redator do Correio do Rio de Janeiro dizia que aquele povo já não era mais um rebanho, e que pelo bom senso e pelo “sentir dos homens mais iluminados e liberais, dirigindo-nos aos nossos Concidadãos, passemos a repetir aquelas três palavras sagradas: a Nação, a Lei, o Rei.” A propósito disso, o redator acrescentaria que “A Nação, por seus Representantes, decretou que o Rei fosse o seu Primeiro Magistrado, o seu Primeiro Cidadão, o Guarda da Lei, conservando o título de Rei legitimamente adquirido” (Correio do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 15/04/1822, n.º 5, p. 18, grifo do autor.), valorizando-se o trinômio constitucional povo, deputados e rei.

Naquele contexto de amplas e significativas mudanças, as demandas dos movimentos liberais-constitucionalistas europeus e americanos proporcionariam alterações vocabulares no cotidiano das pessoas, apresentando novidades referentes à representação do povo em assembleia; porém, reforçavam alguns aspectos tradicionais, mas esquecidos, da sociedade portuguesa no tocante à soberania, tentando-se equilibrar o moderno com o antigo. Essas duas circunstâncias – Cortes/Constituição e soberania – só teriam o alcance necessário por conta da essencial função da imprensa, que se desenvolvia de maneira excepcional no mundo luso-brasileiro, em que jornais de formatos diversos, orientações ideológicas distintas e intenções variadas garantiam ao público a disseminação de informações e notícias, além do ensinamento a respeito dos novos rumos da sociedade e da formação de uma opinião pública.

Bibliografia Básica

NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e constitucionais: a cultura política da independência (1820-1822). Rio de Janeiro: Revan; Faperj, 2003.

PEREIRA, Luisa Rauter. Soberania. In: FERES JÚNIOR, João (Org.). Léxico da história dos conceitos políticos do Brasil. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. p. 401-421.

SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal: a restauração e a monarquia absoluta (1640-1750). 2.ª ed. Lisboa: Verbo, 1982. Volume V.

Fontes Primárias

Correio do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, publicado de 10 de abril de 1822 a 24 de novembro de 1823. http://bndigital.bn.gov.br/.

Revérbero Constitucional Fluminense, Rio de Janeiro, 15 de setembro de 1821 a 8 de outubro de 1822. http://bndigital.bn.gov.br/.

Semanário Cívico, Salvador, editado de 1.º de março de 1821 a 19 de julho de 1823 na Tipografia da Viúva Serva, e Carvalho. http://bndigital.bn.gov.br/.

 

 

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