Revista Impressões Rebeldes

NEGREIROS REBELDES E A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL

A manutenção do tráfico de escravizados, que unia África e o Brasil, provocou rebeliões em Angola. Traficantes de Luanda e Benguela se revoltaram para permanecer integrados ao Brasil.

St. Paul de Leonda (Luanda), Angola. Luanda foi um dos locais onde a independência brasileira teve forte repercussão graças ao tráfico de escravizados (Fonte da imagem: “Viagens e pesquisas missionárias na África do Sul”, por David Livingstone, publicado em Londres em 1857).
13 de setembro 2022 Ano 10, n. 2 (jul-dez), 2022

Gilberto Guizelin

Gilberto da Silva Guizelin é professor da Universidade Federal do Paraná e autor, entre outras obras, do livro “Dois cônsules de Sua Majestade Imperial em Luanda (1822-1861): relações Brasil-Angola, de Rui Germack Possolo a Saturnino de Sousa e Oliveira”, publicado em 2022 pela Edusp.

Na edição de 20 de junho de 1822 do jornal Correio do Rio de Janeiro, foram publicados dois manifestos escritos respectivamente por Fernando Martins do Amaral Gurgel e Silva e por Manuel Patrício Correa de Castro, ambos eleitos deputados por Angola nas Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa, reunidas em Lisboa entre 1821 e 1823. Os manifestos haviam sido enviados ao redator do Correio por um correspondente anônimo que especulava: “Creio dar-lhes gosto com a oferta dos dois proclamas incluso. [Nos quais] os nossos Deputados Angolenses depois provavelmente de renhido combate de língua pegaram a espada cabeluda”, isto é, a pena e o tinteiro, “e chamam ambos a sua Província para ver o duelo, e ser juíza” (Correio do Rio de Janeiro, n. 57, 20/06/1822) do embate político entre eles e, por tabela, entre Brasil e Portugal.

Acontece que, a caminho de Lisboa, onde tomariam assento nas Cortes Gerais, Gurgel e Castro chegaram ao Rio de Janeiro no início de 1822 para se encontrar com o terceiro deputado eleito por Angola, o desembargador Eusébio de Queirós Coutinho e Silva, que, embora natural de Angola, estabelecera residência no Brasil desde 1816, onde, aliás, desfrutara de uma ascensão meteórica na carreira da magistratura. No Rio, os três deputados assistiram de perto a uma sequência de acontecimentos que culminaram na Proclamação da Independência do Brasil de Portugal, como o decreto do “cumpra-se” (de 4 de maio de 1822) que determinava que todas as ordens emitidas pelas Cortes Gerais de Lisboa só teriam efeito no Brasil após serem validadas pelo príncipe regente, e a convocação (a 9 de junho de 1822) da Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa dos Representantes das Províncias do Brasil feita por D. Pedro.

Diante daqueles acontecimentos, Eusébio e Gurgel demonstraram simpatia à causa brasileira e optaram em permanecer no Brasil. Em seu manifesto Gurgel justificou sua decisão com base nos interesses das relações comerciais e na proximidade geográfica de Angola com o Brasil, de modo a solicitar de seus “concidadãos de Angola” instruções para que pudesse representar Angola na Assembleia Constituinte que em breve se reuniria no Rio ao invés das Cortes Gerais que transcorriam em Lisboa. Já Castro deixou claro seu desalinhamento em relação a seus colegas deputados, optando em seguir viagem sozinho para Portugal e advertindo a seus “compatriotas angolenses” que “não fazendo vós parte do Reino do Brasil, não deveis entrar em um duelo, para o qual nem como testemunhas e Padrinhos podereis ser chamados” (Correio do Rio de Janeiro, n. 57, 20/06/1822).

Fato é que, havia um segmento da população de Angola decidido a tomar parte na contenda entre Brasil e Portugal, e com clara inclinação em apoiar a causa brasileira: eram os negociantes de escravos, principal gênero da pauta de exportação de Angola e principal gênero da pauta de importação do Brasil.

Grosso modo, a comunidade de negociantes de escravos de Angola era constituída por antigas famílias cujo poder e fortuna vinha da sua participação na organização do comércio de escravos para o Brasil, como os Matozo de Andrade e Câmara, Coutinho Garrido, Resende Naval, Souza e Andrade, Oliveira Neves, entre tantas outras. Algumas destas, inclusive, eram na verdade ramificações de famílias brasileiras, pois seus fundadores haviam sido degredados (exilados) do Brasil para Angola quer por grave delito cometido, quer por razões políticas ou religiosas. Este era o caso da família Amaral Gurgel, cujo fundador do ramo angolano havia sido degredado do Brasil para Angola ainda no início do século XVIII pelo crime de homicídio. Fosse como fosse, os negociantes de escravos de Angola mantinham estreitos vínculos comerciais e familiares – alguns pelo matrimônio, outros pelo apadrinhamento – com seus sócios e parentes brasileiros.

Parte destas ilustres e poderosas famílias mancomunadas com o tráfico de escravos para o Brasil mantinha seus casarões e barracões, onde abrigavam os cativos trazidos dos sertões (interior) de Angola até serem finalmente embarcados, em Luanda, e outra parte em Benguela. Não por acaso, quando as notícias dos acontecimentos que levaram à oficialização da Independência do Brasil chegaram na margem oposta do Atlântico Sul, ambas as cidades converteram-se em palco de recorrentes rebeliões tramadas com o objetivo de romper os laços coloniais com Portugal e anexar Angola ao Brasil.

As rebeliões de maior proporção verificadas em Angola em apoio à Independência do Brasil aconteceram em Benguela, onde historicamente já existia um espírito de autonomia em relação a Luanda, sede do governo colonial, e onde a presença militar de tropas leais a Portugal era menor, já que parcela significativa do regimento local era composto por soldados degredados do Brasil.

Com efeito, já por volta de finais de maio de 1822, uma petição assinada por representantes do clero local, do Governo Provisório de Benguela – composto majoritariamente por negociantes de escravos –, e acompanhada de outras 55 assinaturas, comunicava a Junta Provisória de Governo de Angola, em Luanda, o desejo dos habitantes da Capitania de S. Felipe de Benguela em aderir e prestar obediência ao Governo do Príncipe Regente do Brasil.

A alegação da petição era de que a “Constituição [Portuguesa]  bem longe de minorar os nossos males, os engrossa, e agrava, estabelecendo nossos últimos recursos através de mais de duas mil léguas de distância”, sendo mais conveniente, no entender dos peticionários, continuar “levando nossas representações aos Pés do Trono no Rio de Janeiro (…) centro comum do incomparável Governo do Augusto Príncipe Real o Senhor D. Pedro de Alcântara, a quem nos é fácil recorrer, e em menos de 3 meses voltarmos aos nossos lares” (Gazeta do Rio, n. 120, 05/10/1822).

Curiosamente, graças à falta de comunicação regular entre Benguela e Luanda, a petição foi conhecida primeiro no Rio de Janeiro, onde foi publicada na Gazeta do Rio em princípios de outubro de 1822, tendo alcançado Luanda apenas em finais de novembro de 1822 quando exemplares do jornal carioca, chegaram àquela cidade.

Notícia veiculada décadas mais tarde em um jornal angolano dava conta, que na ocasião da chegada em Benguela da proclamação da Independência do Brasil, o presidente da Junta Provisória de Governo local, Domingos Pereira Diniz, um dos maiores negociantes de escravos da cidade, teria ordenado o hasteamento da “bandeira do café e tabaco”, ou seja, o pavilhão do Império do Brasil na Fortaleza de S. Filipe (O Pharol do Povo, n. 36, 27/10/1883). Embora as fontes do período não confirmem esta informação, elas comprovam o bom entendimento entre a administração do negreiro Domingos Pereira Diniz e o Governo de D. Pedro I, a exemplo do envio, pelo governo rebelde do primeiro, de enxofre para a fábrica de pólvora do Rio de Janeiro, àquela altura envolvida no esforço de guerra contra as forças portuguesas; e a remessa, pelo governo imperial, de armamentos para a tropa rebelada de Benguela.

De fato, do jeito que as coisas iam, parecia só uma questão de tempo para que as autoridades de Benguela oficializassem sua união com o Brasil. Alertada pelas autoridades coloniais de Angola da grave situação, as Cortes Gerais de Lisboa nomearam novos administradores para Luanda e Benguela e aprovaram o envio de uma Força Expedicionária de 435 soldados. Parte deste destacamento seguiu diretamente para Benguela sob o comando do novo governador João Antonio Pussich. Logo que tomou posse, em meados de 1823, o novo administrador português de Benguela denunciou a seus superiores a existência de “um grande partido brasileiro” no comando da cidade (AHU, Angola, cx. 142). No intuito de minar o poder e influência dos sujeitos favoráveis à união com o Brasil, Pussich ordenou o sequestro dos bens e navios dos brasileiros e de seus sócios em Benguela e proibiu a saída de navios para os portos do Rio de Janeiro e Pernambuco. Medida igualmente adotada em Luanda pelo novo governador-geral de Angola, Cristóvão Avelino Dias.

As ações adotadas por João Antonio Pussich despertaram a ira do chamado “partido brasileiro” que planejou subornar a tropa local composta majoritariamente por soldados brasileiros degredados, prender o governador e interromper as ligações com Luanda. Esta última medida visava assegurar o embarque dos líderes da rebelião e de sua preciosa carga de escravos para o Rio de Janeiro. Uma vez que chegassem no Rio, os rebeldes pretendiam ainda dirigir uma solicitação ao Imperador D. Pedro I para que este enviasse reforços a fim de anexar toda Angola ao Império do Brasil.

Ainda que o governador João Antonio Pussich tenha conseguido debelar a tempo esta rebelião, seu governo jamais conquistou a simpatia dos negociantes de escravos de Benguela. De modo que, em novembro de 1823 estourou uma nova rebelião na qual ele foi finalmente deposto. Na tentativa de acalmar os ânimos em Benguela, o governador-geral de Angola, Cristóvão Avelino Dias, aceitou a deposição de Pussich e nomeou um governador interino para a capitania. Contudo, a normalidade só voltaria a Benguela em 1825, após Portugal reconhecer a emancipação do Brasil.

Em Luanda, embora a Junta Provisória de Governo fosse igualmente dominada por negociantes de escravos notoriamente simpáticos à ideia de união com o Brasil, o potencial local de revolta era significativamente reduzido em comparação com Benguela, devido à maior presença militar das forças portuguesas. Ainda assim, em ofício de 12 de outubro de 1823, o governador-geral Cristóvão Avelino Dias denunciava ao governo português as recorrentes tentativas da “facção brasileira” luandense de “seduzir os oficiais e soldados para desertarem” através do oferecimento de suborno (AHU, Angola, cx. 143).

Isto acontecia porque a ação dos negociantes de escravos de Luanda limitava-se a tentar reduzir o efetivo militar português na cidade, na esperança de que isso animasse o governo de D. Pedro I a enviar uma força naval para conquistar Angola. Não por acaso, as autoridades portuguesas em Luanda temiam mais um possível ataque desferido desde o Brasil, do que uma rebelião do “partido brasileiro” local.

Tamanho era o medo de um ataque do Brasil que, em ofício de 23 de fevereiro de 1825, o então governador-geral de Angola, Nicolau de Abreu Castelo Branco, relatava ao governo português sobre notícias alarmantes recém chegadas do Rio de Janeiro. Em dezembro de 1824, um navio saído do Brasil chegou em Luanda, informando que a vitória das forças navais brasileiras sobre os rebeldes pernambucanos da Confederação do Equador, incentivara o Almirante Thomas Cochrane (comandante da Marinha Imperial do Brasil) a planejar um ataque à cidade. Esse boato levou Castelo Branco a ordenar a reparação urgente das fortalezas que guardavam a baía luandense, e a deixar um corpo de artilharia em prontidão nos pontos do litoral, que pudessem ser utilizados para um possível desembarque das forças brasileiras (AHU, Angola, cx. 147).

Porém, o ataque de Cochrane jamais aconteceu. Em 29 de agosto de 1825, Brasil e Portugal celebraram um Tratado de Aliança e Amizade no qual, em troca do reconhecimento da Independência, D. Pedro I concordou em “não aceitar proposições de quaisquer colônias portuguesas para se reunirem ao Império do Brasil” (art. 3º, Tratado de Aliança e Amizade de 1825), o que foi um grande banho de água fria nos planos dos negociantes de escravos de Luanda e Benguela de anexar Angola ao Brasil. Ainda assim, as rebeliões promovidas pelos negreiros angolanos foram bem sucedidas em chamar a atenção das autoridades do Rio de Janeiro para a necessidade de se ter um agente consular brasileiro em Angola que zelasse pela manutenção da livre importação de escravizados para o país até 1830, quando o tráfico de escravos para o Brasil passou a ser ilegal.

Bibliografia Básica

FERREIRA, R. Biografia, mobilidade e cultura atlântica: a micro-escala do tráfico de escravos em Benguela, séculos XVIII-XIX. Tempo, Niterói, v. 10, n. 20, 2006. DOI: https://doi.org/10.1590/S1413-77042006000100003

GUIZELIN, G. S. A desagregação do “Reino Unido de Brasil, Angola e Benguela” na independência brasileira. Ciência & Cultura, São Paulo, 2022. Disponível em: https://revistacienciaecultura.org.br/?artigos=a-desagregacao-do-reino-unido-de-brasil-angola-e-benguela-no-processo-de-independencia-brasileiro

GUIZELIN, G. S. “Província (de) um grande Partido Brasileiro, e mui pequeno o Europeu”: a repercussão da Independência do Brasil em Angola (1822-1825). Afro-Ásia. Salvador, n. 52, 2015. DOI: https://doi.org/10.9771/aa.v0i52.21880

REBELO, M. A. S. Relações Angola e Brasil. 1808-1830. Lisboa: AGU, 1970.

RODRIGUES, J. H. Brasil e África: outro horizonte. v. I – Relações e contribuições mútuas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964. 

Fontes Impressas

Correio do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: n. 57, 20/06/1822.

Gazeta do Rio, Rio de Janeiro: n. 129, 05/10/1822.

O Pharol do Povo, n. 36, 27/10/1883.

Tratado de Amizade e Aliança entre El-Rei o Senhor D. João VI e D. Pedro I, Imperador do Brasil, feito por mediação de Sua Majestade Britânica, assinado no Rio de Janeiro a 29 de Agosto de 1825, e ratificado por parte de Portugal em 15 de Novembro e pela do Brasil em 30 de Agosto do dito ano. Disponível em: http://concordia.itamaraty.gov.br/detalhamentoacordo/11.  

Fontes Primárias

Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Angola, cx. 142, 143 e 147.

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