LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, vol. 6, 1945.
MATOS, José da Cunha. Corografia histórica da Província de Goiás. RIHGB, 1874.
Quando o rei D. José I assumiu o trono português em 1750, escolheu como secretário de estado Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro conde de Oeiras e depois Marquês de Pombal. Juntos, colocaram em prática algumas ideias ilustradas com o objetivo de modernizar Portugal e torná-lo uma nação capaz de concorrer com as outras monarquias europeias. Várias ações foram tomadas nesse sentido, mas uma delas impactou o cotidiano de muitas pessoas em todo o império luso: a perseguição e posterior expulsão da Companhia de Jesus de todos os espaços controlados pela monarquia portuguesa, bem como a prisão de dezenas de religiosos.
Apesar de os padres inacianos terem sido desde o século XVI uma das principais bases religiosas da expansão do império português e de terem atuado como aliados no processo de ocupação e povoamento de várias regiões desse vasto território, com a nova política da segunda metade do Setecentos, passaram a ser vistos pelas autoridades como inimigos da coroa e dos súditos reais. Desta maneira, uma série de atitudes foram tomadas pela coroa visando diminuir ou mesmo acabar com o poder que os religiosos mantinham sobre variados segmentos sociais.
Por meio de uma violenta propaganda na Europa e em outras regiões do império, os jesuítas foram acusados de traição ao rei, de não catequizarem os nativos, de concorrerem de forma desleal com os colonos, de praticarem comércio e várias outras situações que os colocavam sempre em uma posição negativa frente às sociedades locais e imperiais. A situação ficou cada vez pior e, em 1759 por causa da acusação de que teriam tentado matar o rei um ano antes, foram expulsos do império e ficaram presos em alguns colégios até serem enviados para as masmorras de Lisboa ou desterrados para algumas cidades da Itália.
Um exemplo da forma que os padres foram transformados em “elementos prejudiciais ao bom sossego da sociedade” foi o ocorrido na capitania de Goiás no ano de 1757. Soubemos desta história graças à documentação que o bispo do Rio de Janeiro, D. Antonio do Desterro, enviou para Lisboa, no dia 10 de setembro de 1759, informando que todos os padres da capitania e de outras próximas, que chegavam constantemente enviados por seus emissários, estavam presos e incomunicáveis no colégio da cidade. Relatou também que dentre os aprisionados estava o jesuíta José Vieira, que anos antes havia sido o administrador do aldeamento de São Francisco Xavier do Duro, em Goiás. Junto com esta informação, o bispo enviou para as autoridades em Lisboa a devassa feita anos antes em Goiás sobre este religioso. Tratava-se, na realidade, de um conjunto de documentos trocados entre o ouvidor da capitania de Goiás, o reitor do colégio da Bahia e o próprio bispo. A devassa havia sido feita pelo juiz ordinário e capitão mor Francisco Pereira da Silva por ordem do ouvidor. O objetivo era responder “quem matou as pessoas declaradas no auto de devassa ou quem deu ajuda ou favor ou conselho para se fazerem as tais mortes ou quem fez estrago na Missão de São Francisco Xavier do Duro”. Terminada as inquirições, o juiz encaminhou o documento para o ouvidor da capitania de Goiás, que o mandou para o padre provincial da Companhia de Jesus, na Bahia para que ele tomasse as medidas punitivas contra seu religioso.
Segundo as informações tiradas na devassa, o padre José Vieira, catequizava os indígenas Xakriabás no aldeamento de São Francisco Xavier do Duro. No ano de 1757, de acordo com os relatos, o religioso teria incitado os indígenas a matarem pessoas que viviam próximas ao aldeamento e depois, a atacar o quartel, matando os soldados para que eles não os perseguissem durante a fuga. Todas as testemunhas que prestaram depoimentos foram contrárias aos padres, indicando uma possível parcialidade no processo, pois a perseguição de Pombal aos jesuítas já estava muito grande e as pessoas tinham medo de serem acusadas de protegê-los. A justificativa para o evento, segundo os depoimentos, era que os nativos fizeram tudo isso porque o padre queria voltar para casa, assim como os indígenas que também não estavam satisfeitos com a localidade onde havia sido colocado o aldeamento. As testemunhas deram detalhes do ocorrido, e informaram que durante os conflitos, uma mulher branca, chamada Maria foi morta por uma lança e seus dois filhos, ainda crianças, foram esquartejados; o mulato Domingos e mais cinco escravos de D. Maria foram mortos; o tenente José Esteves teve a cabeça “feita em pedaços”; três soldados morreram; ao cabo da esquadra Bernardo José Lobo, “cortaram as suas vergonhas da parte baixa metendo-lhe na boca” e mais oito escravos de senhores variados foram mortos. Além disso, os indígenas derrubaram o quartel e o queimaram, roubaram a casa de pólvora, levaram o armamento real, saquearam e queimaram o aldeamento. Fizeram tudo isso com porretes, lanças, espingardas e flechas. As testemunhas da devassa informaram ainda que um pouco antes de tudo isso acontecer, os indígenas Acroás, que também viviam no mesmo aldeamento, foram embora, fugidos. Alguns deles, ao serem presos, acusaram os Xakriabás de terem feito isso por “conselho dos padres para que todos pudessem voltar para as suas casas”.
O historiador jesuíta Serafim Leite e Raimundo José da Cunha Matos, indicam outra versão. Segundo eles, os nativos teriam se rebelado por causa dos desmandos e maus tratos impostos por Venceslau Gomes da Silva, sertanista que os havia conquistado e aldeado. Como neste momento os religiosos só possuíam o poder espiritual sobre os indígenas por causa da lei do Diretório e a administração, ou seja, o poder temporal, estava com os diretores de índios, os jesuítas ficaram muitas vezes sem ter como defender os indígenas, acarretando os conflitos. Serafim Leite conclui sua ideia afirmando que “o levante foi aproveitado pela nova política de destruição da catequese; e, numa evolução rápida, se transformou de mera hipótese malévola, […] em uma devassa ordenada pelo valido de D. José I” (Leite, 1945, p.209). A conclusão da devassa, segundo Leite, foi que “se apurou naturalmente o que de antemão se pretendia contra os padres, constituindo este episódio um dos muitos declarados “enganos” que correram mundo” (Leite, 1945, p. 209).
Em 25 de maio de 1759, o padre provincial da Bahia, Manoel de Siqueira, escreveu ao bispo do Rio de Janeiro remetendo a devassa recebida sobre o padre José Vieira. Neste documento, o provincial afirmava que os nativos executaram os delitos e nada informava sobre a culpa ou inocência do padre. O ouvidor de Goiás havia determinado que o padre deveria ser castigado, mas o provincial alegou que não poderia fazer nada a respeito porque tratava-se de um religioso professo de 4º. voto (que significava juramento de fidelidade ao papa e disponibilidade para evangelização no globo, possibilitando uma posição de superioridade na Companhia de Jesus, e, por conta disso, somente o padre geral, em Roma, poderia determinar o que deveria ser feito com o religioso. O padre provincial da Bahia enviou a documentação para o bispo determinando que o reitor do colégio do Rio, o padre Manuel Ferraz, obedecesse prontamente às ordens recebidas e vigiasse o padre Vieira (O caso é que em algum momento após os conflitos e antes da troca das cartas, a Companhia de Jesus retirou o padre José Vieira da região e o colocou no colégio do Rio de Janeiro). Portanto, quando houve a ordem de prisão de todos os inacianos, o padre José Vieira já estava no colégio fluminense.
Nove meses depois, o bispo enviou a documentação para o secretário de estado de Marinha e Ultramar indicando que estava com dificuldades para dar uma solução ao caso e passou o problema para a autoridade.
É muito difícil saber o que realmente aconteceu naquelas longínquas terras, quando indígenas aldeados se revoltaram e atacaram a sociedade local. Mais difícil ainda é saber o papel do religioso nessa empreitada. Teriam os indígenas agido por conta própria defendendo uma escolha do grupo ou teriam se deixado levar pelos interesses do padre? São respostas difíceis de serem obtidas, mas a cronologia desta documentação permite ao historiador pensar um pouco mais a respeito deste contexto. A devassa foi feita em Goiás, entre os dias 18 de outubro a 17 de novembro de 1757. O ouvidor enviou o translado dela para o colégio da Companhia de Jesus da Bahia, aos cuidados do padre provincial Manuel de Sequeira, em abril de 1758, ou seja, cinco meses depois de terminada a inquirição. O padre provincial só recebeu o documento em março de 1759, quase um ano após a saída da devassa de Goiás e só comunicou ao bispo do Rio de Janeiro em 25 de maio de 1759. Poder-se-ia colocar a culpa da demora em chegar o documento à Bahia e a comunicação com o Rio de Janeiro nas distâncias e nas dificuldades dos caminhos entre as capitanias. Entretanto, pode ser que algumas outras questões tenham interferido no desenrolar desse processo. Entretanto, pode ser que algumas outras questões tenham interferido no desenrolar desse processo.
Entre a data de saída da devassa de Goiás e o recebimento dela pelo padre provincial na Bahia ocorreu a ordem de reforma da Companhia de Jesus decretada pelo papa Benedito XIV em 1º. de abril de 1758, ordenando que a congregação deveria sofrer um ajuste de comportamento em praticamente todos os seus níveis de existência. Os encarregados locais de realizarem a reforma deveriam ser bispos escolhidos pelo cardeal de Lisboa. No caso do Rio de Janeiro e suas áreas próximas foi escolhido o bispo D. Antonio do Desterro. Entre a deflagração da reforma em Portugal até seu cumprimento em terras da conquista, passou um significativo tempo que pode sugerir que não havia intenção inicial de que a tal reforma abrangesse todas as regiões do império ou ainda, que estivessem esperando os resultados no reino para definirem as melhores opções para as outras regiões que compunham o império luso. Ou ainda, que alguém pudesse estar tentando ganhar tempo a favor dos padres. Isso explicaria por que os enviados reais chegaram à Bahia no dia 26 de agosto de 1758 dando início à reforma e só tenham desembarcado no Rio de Janeiro 16 meses depois, quando a ordem de expulsão, sequestro e prisão dos padres havia sido determinada em 3 de setembro de 1759. Portanto, quando a reforma da Companhia começou no Rio de Janeiro, já não valia de nada.
A devassa do padre José Vieira nos fala pouco sobre ele e muito mais sobre os indígenas que estavam aldeados sobre sua administração. Nos permite ainda inferir sobre o cotidiano que envolvia os relacionamentos desses mesmos indígenas com os moradores em torno do aldeamento, já que apenas algumas pessoas foram atacadas e de formas bastante violentas. A devassa também nos informa sobre as mudanças políticas que ocorreram na segunda metade do século XVIII em Portugal e seu império.
Ao acompanharmos os movimentos, as trocas de correspondências entre diferentes autoridades até chegar ao destinatário final em Lisboa, percorremos um pouco das ideias que estavam norteando a política de aniquilação da Sociedade de Jesus em curso em Portugal e ganhando adeptos também em outras monarquias europeias.
LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, vol. 6, 1945.
MATOS, José da Cunha. Corografia histórica da Província de Goiás. RIHGB, 1874.
Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Rio de Janeiro. Ofício do bispo do Rio de Janeiro ao secretário de estado da marinha e ultramar, em 10 de dezembro de 1759. Cx. 57, doc. 5582
Marcia Amantino, "MASSACRE E DEVASSA". Impressões Rebeldes. Disponível em: https://www.historia.uff.br/impressoesrebeldes/revista/massacre-e-devassa/. Publicado em: 04 de abril de 2023. ISSN 2764-7404