Revista Impressões Rebeldes

ACLAMAÇÕES REBELDES

O mesmo ritual de aclamação que instalava os reis no trono de Portugal foi usado no Brasil para apoiar os representantes locais escolhidos para governar durante os motins

“Aclamação de Dom João IV de Portugal”. Quadro de Veloso Salgado (1864-1945). Óleo sobre tela (325 x 285 cm). Museu Militar (Sala Restauração), Lisboa

Thiago da Silva Pinto

Thiago da Silva Pinto é graduado em História pela Universidade Federal Fluminense onde apresentou em 2017 a monografia de conclusão de curso intitulada “Entre a fidelidade e a rebeldia: A influência da ideologia da restauração portuguesa no episódio da aclamação de Manuel Nunes Viana na guerra dos emboabas (1708-1709)”.

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A tradição da realização do ritual de aclamação em Portugal remonta à época de sua primeira dinastia de Borgonha, a começar pelo seu fundador Afonso Henriques, que foi “aclamado pelo seu exército no campo de Ourique”. Tal ritual ocupa um lugar imprescindível na monarquia lusitana, uma vez que a autoridade do novo rei somente era reconhecida após a realização da cerimônia.

Após a morte do rei Cardeal D. Henrique em 31 de janeiro de 1580, deu-se início a uma disputa pelo trono português. Entre os pretendentes portugueses se encontrava D. Antônio, prior de Crato e filho bastardo do infante D. Luís, apoiado pelos seguimentos mais populares de Lisboa.

D. Antônio veio a ser aclamado rei por seus correligionários em Santarém no dia 19 de junho do mesmo ano. Contudo, após chegar a Lisboa, o Duque de Alba proclamou Filipe II da Espanha como rei de Portugal em 12 de setembro de 1580, dando início ao período da União Ibérica. D. Antônio fugiu a fim de evitar a sua prisão, acabou por cair no ostracismo e morreu no exílio em Paris no ano de 1595.

Outro fator marcante da cultura política lusitana foi a difusão da ideologia do direito de resistência contra um governante considerado tirano. Esta corrente de pensamento respaldava o direito dos súditos de retirarem do poder o soberano e substituí-lo por outro sem que isso se configurasse crime de lesa-majestade. Esta ideia é claramente devedora das reflexões feitas por Tomás de Aquino e foi largamente utilizada durante a Restauração monárquica portuguesa, cujo objetivo era retirar Portugal do domínio espanhol e legitimar o movimento de aclamação do Duque de Bragança como Rei de Portugal em 1640.

Vale lembrar que em nenhum momento o pensamento escolástico é empregado com o objetivo de estabelecer limites ao poder do rei. O soberano possuía um conjunto de deveres para com os súditos que deveria cumprir. Nesse sentido, o propósito dos autores partidários da Restauração era comprovar que Filipe IV de Espanha era um rei ilegítimo, um tirano usurpador que não dispunha do direito de governar Portugal.

O mesmo pensamento escolástico baseado nas ideias de São Tomás de Aquino foi largamente utilizado nas rebeliões que ocorreram no império colonial português, no período que se seguiu a aclamação de D. João IV. As elites coloniais no Brasil geralmente isentavam o Rei de culpa, ressaltando a sua lealdade para com o seu soberano, e acusavam os governantes locais de agirem como tiranos, sem o conhecimento de Sua Majestade. Rebeliões essas que, apesar de serem motivadas por diversos fatores, na maioria das vezes resultava na deposição de autoridades nomeadas pelo Rei. Esta prática tornou-se corriqueira nas possessões portuguesas do ultramar – América, África e Ásia – entre 1640 e 1680.

Embora careça de fundamentação, a Aclamação de Amador Bueno em São Paulo, no ano de 1641, se configura como uma representação da situação política gerada pela restauração monárquica lusitana, no que diz respeito a frágil relação entre a casa de Bragança com os seus súditos, tanto na metrópole, quanto na América portuguesa. A Restauração portuguesa de 1640 era motivo de grande insatisfação entre os espanhóis que viviam na região. Com o objetivo de manter São Paulo sob a tutela castelhana e ocultando a sua real intenção, estes espanhóis sugeriram que os paulistas elegessem um rei. Os habitantes da Vila de São Paulo escolheram Amador Bueno da Ribeira como seu soberano, afirmando que tal atitude não se configuraria como crime de lesa-majestade, uma vez que D. João IV ainda não havia sido aclamado na capitania. Ao saber da notícia de que intentavam aclamá-lo como rei, Amador Bueno tentou convencê-los a desistir da ideia. Acuado e temendo pela sua vida, buscou refúgio no mosteiro de São Bento. Enquanto caminhava apressadamente em direção ao mosteiro, a multidão o acompanhava esbravejando “Viva Amador Bueno, nosso rei: ao que ele respondeu muitas vezes, em voz alta: viva o senhor D. João IV, nosso rei e senhor, pelo qual darei a vida”.

Em novembro 1660, eclodiu uma revolta motivada por motivos fiscais na cidade do Rio de Janeiro, no momento em que o governo da capitania iniciava a cobrança de um imposto para custear o aumento do efetivo militar. Após destituírem o governador Salvador Correia de Sá e Benevides, os revoltosos aclamaram o capitão Agostinho Barbalho Bezerra como seu governador, que recusou veementemente o cargo, mantendo-se no convento de São Francisco, onde estava desde o inicio da revolta. Tal recusa despertou a fúria dos amotinados que invadiram o convento e ameaçaram matá-lo caso insistisse em recusar o cargo. Acuado, Agostinho Barbalho aceitou assumir o governo, mas não sem antes reafirmar a sua fidelidade para com o rei lusitano.

Ainda que a primeira metade do século XVIII seja marcada pela transformação das praticas politicas no que dizem respeito à condução das revoltas, momento em que “as expulsões são trocadas por negociações e concessões estabelecidas sob a preservação da autoridade régia”, segundo Luciano Figueiredo, ainda podemos observar na guerra dos emboabas (1708-1709) a apropriação de elementos politicos ligados à Restauração portuguesa após o período que se seguiu a aclamação de D. João IV, como o enfrentamento direto contra a autoridade régia e a escolha de um novo governador por parte dos revoltosos.

Ao chegar às Minas, Manuel Nunes Viana se consolidou rapidamente como um potentado poderoso na região, a quem os forasteiros recorriam quando necessitavam de ajuda para a resolução dos atritos que frequentemente tinham com os paulistas. O estopim para a eclosão do conflito foi o linchamento do paulista José Pardo por uma multidão de forasteiros, somado a isto, começou a circular um boato de que os paulistas haviam se reunido em assembleia em novembro de 1708 e decidido que no dia 15 de janeiro de 1709 todo adventício que estivesse na região das minas seria assassinado. Tal decisão chegou aos ouvidos dos forasteiros que, temendo por suas vidas, num ato de autodefesa, se dirigiram até a residência de Manuel Nunes Viana e o aclamaram como governador das Minas. Tendo conhecimento do ocorrido, os moradores das vilas de Ouro Preto e da comarca do Rio das Mortes reconheceram a autoridade do governador e pediram a sua ajuda contra os paulistas.

Apesar de certa visão romanceada presente em parte da documentação de época, a aclamação de Manuel Nunes Viana na verdade teria se tratado de uma eleição, uma vez que a sua escolha ficou a cargo de um colégio eleitoral composto por 6 integrantes, da mesma forma que ocorreu em 1640, em que a escolha e aclamação de D. João IV para governar Portugal foi liderada por membros da elite; constatamos ainda que a iniciativa de se eleger um governador realmente partiu de um grupo seleto de forasteiros, no entanto, ela foi igualmente bem recebida pelo povo em ambos os casos.

No discurso dos adventícios, o levante contra os homens do planalto objetivava restaurar o poder da coroa na região das minas, A intenção dos adventícios era recriar nas minas o contexto da luta dos lusitanos contra Filipe IV, no episódio da Restauração portuguesa em 1640, ou seja, os forasteiros afirmavam que o seu objetivo seria restaurar o poder da coroa na zona mineradora que se encontrava nas mãos de um poder local tirano, e a restauração veio com a aclamação de Manuel Nunes Viana como governador.

E para tal fim, recuperaram o mesmo discurso utilizado pelos portugueses acerca da origem popular do poder político, na ocasião da aclamação do Duque de Bragança, indo ao encontro do pensamento de Tomás de Aquino e dos escolásticos, que afirmavam que o povo tem o direito, e obrigação, de resistir a um governo que estaria exercendo o seu mandato de forma injusta e tirânica. E para os adventícios a maneira opressora com a qual eram governados pelos paulistas lhes dava o direito de se levantarem contra eles.

Os forasteiros não só se levantaram contra os paulistas, mas também tomaram para si uma prerrogativa que pertencia ao poder régio e, sob o comando de Manuel Nunes Viana, organizaram toda uma estrutura administrativa, criando cargos e escolhendo seus ocupantes, fato que ia contra as normas vigentes em todas as sociedades do antigo regime.

É importante salientar que o temor da acusação de crime de lesa-majestade também atingiu o líder dos adventícios e, semelhante ao que ocorreu no episódio da aclamação de Agostinho Barbalho na revolta do Rio de Janeiro em 1660, Manuel Nunes Viana inicialmente recusou o cargo, mas temendo pela sua vida acabou aceitando assumir o governo, uma clara manobra para se isentar da acusação de ter usurpado o poder que pertencia ao rei.

Embora a aclamação de Manuel Nunes Viana tenha sido responsável pela criação de um novo cargo, visto que a coroa não havia nomeado nenhum governador para a localidade, ela se configura como uma ação de enfrentamento contra uma autoridade régia, posto que D. Fernando de Lancastre era o encarregado pela administração das minas, mesmo residindo fora da zona mineradora. Tanto assim que o intendente Borba Gato se reportava diretamente a ele no que dizia respeito aos assuntos relacionados à localidade.

Esses episódios de aclamação de lideranças rebeldes no Brasil são assuntos difíceis para a pesquisa pois não se sabe ainda de seus detalhes. Certamente eram muito menos pomposas e cerimoniosas que as que se passavam no reino, mas nem por isso o vocabulário deixa de expressar a ideia de reconhecimento público que o gesto de aclamação significava.

Os rituais de aclamação dos reis portugueses e a construção da ideologia do direito de resistência que legitimou a deposição de Filipe IV, pondo fim à união de sessenta anos entre Espanha e Portugal são elementos imprescindíveis para o entendimento das revoltas que ocorreram na América portuguesa e no restante do Império colonial português, após a restauração monárquica portuguesa.

Bibliografia Básica

FIGUEIREDO, Luciano R. A. O Império em apuros: notas para o estudo das alterações ultramarinas no Império Português, séculos XVII e XVIII. In: Furtado, J.. (Org.). Diálogos oceânicos. Belo Horizonte: Ed UFMG, 2001.

HERMANN, J. No reino do desejado. A construção do sebastianismo em Portugal. Séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

MONTEIRO, Rodrigo Bentes. O rei no espelho: a Monarquia portuguesa e a colonização da América, 1640-1720. São Paulo: FAPESP: Hucitec, 2002.

ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das Minas: ideias, práticas e imaginário político no século XVIII. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008.

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