Revista Impressões Rebeldes

HAITIANISMO À PORTENHA

Devassa sobre uma conspiração de escravizados e franceses em Buenos Aires revela como, no final do século XVIII, “Liberdade” era palavra subversiva

Interior de una pulpería [1833-1835]: César Hipólito Bacle.Trages y costumbres de la Provincia de Buenos Aires. Archivo de Ilustración Argentina.

Maria Verónica Secreto

É professora titular do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense. Autora de “Brindes, textos e livros proibidos: a ‘conspiração de escravos e franceses’ na Buenos Aires colonial, Outros Tempos, vol. 11, n.18: 188-207, 2014. Sediciosa Buenos Aires: o complot de franceses e escravos no Rio da Prata, História Unisinos 17(2):158-167, maio/agosto 2013. Manuscrito: Haitianismo à portenha. A conspiração de escravos e franceses no Rio da Prata (1794 -1795).

Certa manhã de fevereiro de 1795, a cidade de Buenos Aires amanheceu com alguns pasquins espalhados pelos lugares habituais em que esses folhetos eram fixados para comunicar alguma notícia ou acontecimento que as vias oficiais calavam.

Primeiro tinha aparecido uns libelos brevíssimos e assustadores com as palavras “Viva la livertad” (sic), depois tinha aparecido, em resposta, outros pasquins em que se alertava ao vice-rei do complot levado a cabo por franceses e seus escravos. Nesses, o sentimento expressado era o de que todos corriam grande perigo. Indícios de uma conspiração chegaram aos ouvidos do vice-rei Nicolás Arredondo e do zeloso alcaide Martín de Álzaga, que resolveu abrir um inquérito sobre o assunto. Moradores de origem francesa e seus escravizados estariam se reunindo e brindando em nome da “liberdade”. Para as autoridades, esta palavra era subversiva demais. Não eram somente os pasquins que traziam as notícias. Nas pulperías (tavernas), quadras de jogos, cafés e outros lugares públicos se rumorava que os franceses e seus escravizados se reuniam para conspirar e que, nessas ocasiões, brindavam pela liberdade. O objetivo último da conspiração seria tomar a cidade e declarar abolida a escravidão.

A “liberdade” pela qual brindavam era muito assustadora. Era a mesma que tinha levado à revolta na colônia francesa de Saint Domingue, ao abolicionismo da escravidão de fato pela via revolucionária e ao abolicionismo legislativo sancionado na Convenção francesa de 1794. Era a mesma liberdade que tinha feito rodar a cabeça de Luiz XVI.

Apesar de a revolução do Haiti ter sido protagonizada por escravizados contra os colonos franceses – donos das plantações de açúcar -, e de o abolicionismo da Convenção ter a pretensão de atrair os ex-escravos para a ordem da República, o certo é que em vários lugares do império espanhol começou-se a ter a compreensão de que os franceses eram abolicionistas. Do México a Buenos Aires, passando por Lima, a coletividade francesa foi suspeita de “jacobina” e de antiescravista.

Buenos Aires devia ter, em 1795, um pouco mais dos 24.255 habitantes que contabilizou o recenseamento de 1778. Era uma cidade em que os boatos e os rumores se espalhavam com facilidade. Por essa época os temores cresciam com certa facilidade. Em 1781 a revolta indígena de Tupac Amaru tinha estremecido o império espanhol. A do Haiti, espalhado o medo por toda a área atlântica e pacífica do vasto império.

Apesar de não existir uma verdadeira opinião pública ligada a uma esfera pública no final do século XVIII, o caso estudado nos leva a adotar a definição de François-Xavier Guerra, “opinião pública como ‘esse imaterial tribunal’ ante o qual estão chamados a comparecer as ideias e os homens” (Guerra, 2002, 125). Os boatos e as notícias que correram em Buenos Aires nos primeiros meses de 1795 não constituiriam “opinião” porque ainda expressavam, sobretudo, valores como o de fidelidade ao rei ou à ordem monárquica, junto com a exaltação da pátria.

Nos primeiros meses de 1795 o alcaide conseguiu que o escravizado Pedro, que trabalhava para o padeiro francês Luís Dumont, “declarasse” que este fazia brindes à liberdade e à Convenção. No interrogatório mencionou as pessoas que frequentavam a casa do padeiro na ocasião dos “brindes”: o próprio Luis Dumont; Antonio, o relojoeiro; Andres, o alfaiate; Juan, o manco, de ofício taberneiro, e Juan Gallardo, padeiro.Também mencionou o encarregado pela Quinta do Conde Santiago de Liniers, Carlos José Bloud. Todos foram levados para o calabouço do cabildo, no qual também se realizaram os interrogatórios e se aplicariam os tormentos.

A relação entre os franceses e o complô é fácil de alinhavar. No entendimento dos mais leais funcionários espanhóis, os franceses eram, “por natureza”, jacobinos, anticlericais e antimonárquicos. E nas colônias, por adição, abolicionistas.

Não sabemos como, mas essa compreensão também foi a que tiveram os escravizados e negros livres. Eles começaram a falar que, depois que os franceses tomassem a cidade, todos seriam livres. O próprio Pedro disse que seu senhor havia lhe prometido liberdade depois da Semana Santa, tendo implícito o rumor que corria: o de que a revolta estaria marcada para esse período.

Encorajados por essas ideias, provavelmente relacionadas com a dos sucessos haitianos, negros e escravizados passaram a ameaçar abertamente a espanhóis e criollos, e aos próprios senhores. Um escravo da Igreja de São Francisco, cujo nome não aparece no processo, é mencionado no testemunho de Gervácio, negro, peão da alfândega. Gervácio relatou que estava na pulpería com o mulato Martín, e outro mais, quando chegou o escravo da Igreja de São Francisco e, apoiando-se no balcão, disse que agora os espanhóis veriam do que eles, os negros, eram capazes, junto com os franceses. Gervácio teria lhe pedido para que não falasse assim. Em resposta o “negro” descarregou-lhe uma paulada, ferindo-lhe. Também a escrava Pascuala teria dito, em presença de sua senhora, que “iam vê-la vestida com luxo”.

O francês Barbarín, pequeno comerciante, dono de um armarinho e síndico na confraria de negros de São Benedito de Palermo, teria renunciado ao cargo devido às fofocas que o acusavam de querer sublevar os negros que costumavam frequentar sua casa. A cidade inteira falava das tramas entre “escravos e franceses”.

Afixados em locais públicos, pasquins anônimos faziam proliferar o clima de complô. Um deles foi dirigido ao vice-rei do Rio da Prata, Nicolás Arredondo:

Se os franceses não apresas
Em todo o teu vice-reino
Serás o mais insensato
E aparecerás nas gazetas
Olha que há diferentes seitas
Entre esta indigna nação
Teme uma sublevação
Entre eles e os escravos
Que eles unidos e falados
Ah de ti e de tua nação.

Este pasquim surgiu em resposta àquele que mencionamos, o brevíssimo “Viva la livertad”.

Os domicílios dos suspeitos arrolados pelo escravo Pedro foram revistados com o maior cuidado na busca de papéis, livros e qualquer escrito que pudesse conter os planos, as ideias e as fontes de inspiração subversivas. Na casa do relojoeiro Santiago Antonini foi encontrado, entre os lençóis da cama, um papel de 1/8 em que se lia “Viva la livertad”, semelhante àquele que aparecera afixado nas portas das igrejas e nos passeios públicos. A descoberta gerou grande entusiasmo no alcaide, mas o papel foi tudo o que se achou depois de revirada toda a casa. Ademais, como disse o advogado defensor, a marca de lacre no papel demonstrava que o mesmo tinha sido afixado e retirado do espaço público pelo acusado, e não escrito por ele com o fim de afixá-lo – nesse caso não teria vestígios do lacre.

Os envolvidos não eram totalmente “inocentes”, eram simpatizantes da ilustração e das ideias francesas, fato evidenciado nos trechos de textos políticos que eles traduziram e compartilharam. Textos que, no Rio da Prata, como em todo o império espanhol, estavam proibidos. Diferentes decretos os tinham proscrito uma e outra vez.

Eram considerados textos “sediciosos” vários livros franceses, como O contrato social de Rousseau, ou O espírito das leis de Montesquieu. Entre 1747 e 1807, foram censurados mais de 600 livros, proibidos de ingressar e circular nas possessões de sua Majestade Católica. Durante a guerra com a França também se proibiu o envio de gazetas e notícias da Espanha para as Américas. O comerciante Juan Barbarín tinha comprado, junto com outros dois sujeitos, um pacote de gazetas com notícias da Espanha. Nestas gazetas noticiava-se a morte do rei Luiz XVI. Barbarín não foi arrolado pelo escravo Pedro como frequentador das “merendas e brindes”, ele foi implicado por outras testemunhas que teriam escutado de sua boca a afirmação de que, se os franceses matassem seu rei, alguns motivos teriam para fazê-lo.

Barbarín tinha trato com os negros da confraria de São Benito de Palermo, da qual era tesoureiro. Por esse motivo, sua loja era visitada diariamente pelos negros que levavam as esmolas em espécie para trocá-las por dinheiro. Também tinha um escravo a quem estava ensinando a escrever. Para isto, pagava um professor, francês também, a razão de 4 pesos mensais. Tudo pareceu muito comprometedor ao Alcaide Álzaga, que estava responsável pelo inquérito e investigação.

Para que ensinar um escravizado a ler e escrever? O fato de que Barbarín instruísse seu escravo era percebido como algum tipo de “igualitarismo” letrado não desejado. Uma testemunha chegou a levantar a hipótese de que ele tratava muito bem seu escravo para seduzir os outros negros da confraria para sua causa, que evidentemente era a “revolução”. O escravizado em seu depoimento “dijo que era oriundo de América inglesa… que lee mal en carta y ya ha empezado a escribir…” (depoimento do negro Manuel, escravizado de Juan Barbarín, 1º de março de 1795).

O escravo Manuel foi interrogado e questionado se havia lido gazetas provenientes do exterior, ao que respondeu que o fazia somente quando elas estavam sobre o balcão. A pergunta seguinte evidencia a relação que o alcaide estabelecia entre leitura/alfabetização e “subversão” da ordem. De imediato foi perguntado se seu senhor tinha indicado algum momento para deixá-lo livre. Álzaga buscava com esta resposta a confirmação de que o escravo seria libertado depois da Semana Santa. Mas a resposta foi outra bastante frequente: seu senhor o deixaria livre caso viajasse para a Europa definitivamente ou em testamento.

Depois de meses de denúncias, boatos, prisões, interrogatórios, buscas e apreensões, os habitantes de Buenos Aires queriam voltar à normalidade.

Todo mundo tinha a própria versão da revolta. Álzaga tinha a sua, e na dele os sucessos haitianos eram predominantes, embora não mencionados com esse nome. Através do rol das perguntas e do interrogatório extremamente argumentativo, ao estilo do antigo regime, onde o “inquisidor” constantemente faz afirmações e especulações sobre a “verdade oculta” nos depoimentos, é possível afirmar que ele acreditava que os franceses eram republicanos, antimonárquicos, abolicionistas e contrários à Espanha. E que estavam dispostos a tomar Buenos Aires, com ajuda de seus escravizados, talvez com a da frota francesa, estabelecendo uma ordem republicana e igualitária.

Os negros e os escravizados tinham notícias do “abolicionismo” à francesa e imaginaram como seria a revolta. Rumoravam que depois da Semana Santa já não seriam escravizados.

Depois de onze meses presos e apesar dos argumentos do fiscal do crime afirmando que reuniões e brindes não constituíam prova suficiente para sustentar a acusação de conspiração, os suspeitos foram condenados ao desterro: deviam ser enviados para a Espanha no Navio de Registro, mas, como as comunicações atlânticas entre Espanha e América passavam por dificuldades, os “conspiradores”, ao que parece, ficaram por ali mesmo, em Buenos Aires. Juan Barbarín, Carlos José Bloud, Juan Boriene, Luís Dumont, Juan Antonio Gallardo e outros aparecem no recenseamento realizado no ano de 1807 como antigos moradores.

O episódio demonstrava as fraquezas do Império espanhol. As ideias “subversivas” e o descontentamento estavam por toda parte. Apareciam como fantasmas nos setores mais temidos: entre os escravizados, entre os estrangeiros ou, como acontecido 15 anos antes, entre os indígenas, quando José Gabriel Condorcanqui Noguera, conhecido como Tupac Amaru II, conduziu a maior revolta contra o sistema colonial espanhol.

No final, o alcaide Martín de Álzaga foi motivo de zombaria na cidade. Sua trajetória é fartamente documentada. Comerciante bem-sucedido, foi defensor da cidade quando das invasões inglesas de 1806-1807. A revolução da independência o desestabilizou. Contrarrevolucionário, foi fuzilado junto com outros condenados por conspirar contra a independência. No processo que o levou ao patíbulo, aparece em mais de uma oportunidade a figura do delator: o negro escravo Ventura Feijoo, que obteve recompensa por seu ato patriótico.

Bibliografia Básica

GUERRA, François-Xavier. 2002. El escrito de la revolución y la revolución del escrito: información, propaganda y opinión en el mundo Hispánico (1808-1814). In: M. TERÁN, J.A. SERRANO (eds.), Las guerras de la independencia en la América Española. Michoacán, El Colegio de Michoacán/Universidad Michoacana de San Nicolás de Hidalgo/CONACULTA-INAH, p. 125-148.

JOHNSON, Lyman. Los talleres de la revolución. La Buenos Aires plebeya y el mundo atlántico, 1776-1810, Buenos Aires: Prometeo, 2013.

ORTEGA, E. C. El Complot colonial. 1795: año de procesos, tortura y brindis por la libertad. Buenos Aires: Ayacucho, 1947.

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