Revista Impressões Rebeldes

É A VOZ DA MULHER

Catarina, Domingas e Teodora, cativas indígenas e mestiças, reivindicam suas liberdades no Maranhão setecentista

Charles Bentley. Forte São Gabriel no Rio Negro. Publicado em Ackermann, ‘Views in the Interior of Guiana’, 1840. Na litografia colorida, o destaque para a presença de grupos indígenas que não deixavam de encontrar espaços de resistência.

André Luís Bezerra Ferreira

André Luís Bezerra Ferreira é doutorando em História na Universidade Federal do Maranhão e pesquisador no Museu Mauritshuis em Haia, nos Países Baixos. Autor da obra “Injustos Cativeiros: os índios no Tribunal da Junta das Missões do Maranhão” – Belo Horizonte, Caravana Grupo Editorial, 2020

No decorrer do século XVIII, as mulheres indígenas e mestiças empreenderam significativas ações a fim de denunciarem as injustiças dos cativeiros a que estavam submetidas na Capitania do Maranhão. Para tanto, recorriam ao Tribunal da Junta das Missões que era o principal órgão deliberativo acerca das formas legais – descimento (prática incentivada pela Coroa que utilizava religiosos para convencer índios a abandonar suas povoações para se fixar em aldeias missionárias portuguesas), resgates e guerras justas – de arregimentação da tão necessária mão de obra, livre ou escrava, dos indígenas na Amazônia. O tribunal foi uma interface administrativa de constante debate entre os diversos agentes coloniais. Composto por representantes da Coroa, das ordens religiosas e da autoridade eclesiástica secular (o bispo), o órgão corroborou a legitimação da expansão colonial por meio da propagação da fé e, mais concretamente, auxiliou na aplicação da justiça referente às (i)legalidades dos cativeiros e, sobretudo, das liberdades dos índios.

Nas 114 ações de liberdade mapeadas até o momento, há o envolvimento de 162 cativos – dentre os quais em 96 (quase 60%) observa-se o marcante protagonismo das mulheres indígenas e mestiças. Muito além da polarização e dicotomia entre a liberdade e a escravidão, as referidas ações podem ser compreendidas como práticas sociais que estiveram condicionadas às complexidades e diversidades dos processos históricos, políticos e sociais em torno das mulheres cativas e seus descendentes. Assim, as denúncias estavam permeadas pelos seguintes aspectos: os títulos (in)justos de cativeiro, as partilhas determinadas por testamentos, os matrimônios indígenas, as famílias mestiças, os filhos bastardos, as violências, a inaptidão física, a obtenção de mercês e as intensas dinâmicas de mestiçagens.

É oportuno sinalizar que se trata de uma escravidão urbana e doméstica. As ações de liberdades eram movidas, sobretudo, por mulheres indígenas e mestiças que originalmente habitavam os sertões ou as várzeas da Amazônia e que, ao menos por duas ou três gerações, estavam em contato direto ou encontravam-se integradas à sociedade colonial. Sendo assim, muitos dessas cativas e seus descendentes já nasciam na casa de seus senhores ou em outras localidades das vilas maranhenses. Esse aspecto, demonstra como essas mulheres cativas estavam inseridas em âmbitos marcados por intensas dinâmicas mestiçagens culturais e biológicas, mas não deixavam de reconhecer suas origens. As cativas ao pleitearem suas liberdades, ante a Junta das Missões ou outras instâncias administrativas, corriqueiramente faziam uso das suas memórias familiares para comprovar suas procedências nativas. Assim, denunciavam as ilegalidades dos cativeiros que estavam submetidas se reportando às trajetórias de seus avós e bisavós para denunciar as ilicitudes em que esses foram resgatados, aprisionados ou descidos dos sertões do Rio Amazonas para as vilas coloniais.

No conjunto documental, o caso das índias Catarina, Domingas e Teodora é um dos mais importantes sobre as ações dos índios e seus descendentes mestiços nas contendas na Junta das Missões da Capitania do Maranhão. De fato, o complexo conflito envolveu os principais representantes da governabilidade metropolitana na região e suas articulações com o poder local, como também, uma expressiva agência por parte dos índios e mestiços. Pelos registros encontrados, se evidencia que a contenda teve início na década de 1720 e se estendeu, pelo menos, até o decênio de 1750. Pelo fato de a Junta das Missões ser um tribunal cuja composição estava sujeita à constante alteração, o conflito ganhava contornos diferentes na medida em que novos sujeitos assumiram os cargos de deputado na Junta, principalmente aqueles que ocupavam o ofício de Governador e Ouvidor. Vejamos!

A índia Maria, natural dos sertões do rio Amazonas, está no início da trajetória desta família indígena. Descida para a cidade de São Luís, a nativa foi direcionada para a casa de Francisco Deiró e Anna Roiz Sameiro, lugar em que deu à luz a sua filha Cecília, mãe de Catarina, Domingas e Teodora. Portanto, na mesma casa, as pleiteantes criaram, respectivamente, seus filhos e netos. Como afirma Catarina, desde a sua infância, receberam “amor e bom tratamento”, chegando a “serem do sangue, e família” dos ditos senhores que “sempre as trataram como forras” (Arquivo Histórico Ultramarino, Avulsos Maranhão. Cx. 15, Doc. 1542).

No entanto, o falecimento de Francisco Deiró e, posteriormente, da sua esposa Anna Sameiro veio a transformar a vida daquela família indígena. Isto porque, Joseph Pires Deiró, filho do casal e um dos seus herdeiros, “por sessão que fez de sua herança” resolveu vender Catarina, Domingas e Teodora a Manuel Gaspar Neves. O jovem Deiró era conhecido como “forte contendor”, tendo muito prestígio e influência política em São Luís. Seu intento, no referido caso, teria sido cativar as ditas índias (AHU, Avulsos Maranhão. Cx. 23, Doc. 2333).

Não obstante, as pleiteantes achando-se “oprimidas e vexadas” de suas liberdades e de seus filhos, buscaram ajuda perante o Governador do Estado do Maranhão e Grão-Pará, João da Maia da Gama. Prontamente o governador lhes socorreu, ordenando “[as] depositar em poder do Procurador dos Índios para este defender as suas liberdades” (AHU, Avulsos Maranhão. Cx. 23, Doc. 2333). Entretanto, o Ouvidor-Geral Mathias da Silva Freitas, descumprindo a ordem do governador, tirou as índias do poder do Procurador dos Índios e as entregou a Manuel Gaspar Neves, além de decretar a prisão do referido procurador, deixando os índios daquela Capitania sem ninguém que pudesse advogar pelas suas liberdades (AHU, Avulsos Maranhão. Cx. 15, Doc. 1542).

No decorrer da contenda, uma das argumentações apresentadas por Manuel Gaspar das Neves esteve diretamente relacionada aos processos de mestiçagens daqueles escravos. O potentado não deixava de reconhecer a conservação das liberdades dos sujeitos que eram forros, para os que de fato fossem índios. O que, segundo ele, não era o caso em questão. Argumentava que aquela família estava nos domínios da escravidão por muitos anos, além de “terem já degenerados de sua dependência indígena por serem já mamelucos e mulatos”. Por isso, “se encontravam dominados e possuídos sem nenhuma contradição por legítimos escravos, tanto por si, quanto por seus avós e bisavós”. Concluía seu argumento afirmando que aquela família era pertencente a defunta Ana Sameiro e seus herdeiros “a mais de sessenta, setenta ou oitenta anos, sendo já repartidos por escravos alguns deles e suas mães em outros inventários” (AHU, Avulsos Maranhão, Cx. 15, D. 1518).

Em contrapartida, Martinho Lopes da Fonseca e Damazo Pereira, maridos de Catarina e Domingas, apresentavam seus pleitos argumentando: “todo o gentio é livre de natureza conforme as Leis e ordens de Vossa Magestade”. Por isso, haveriam de ser protegidos e terem suas liberdades conservadas. Não obstante, deve ser considerado o fato de alguns daqueles escravos terem já nascidos na casa de Ana Sameiro, sendo “produtos” da mistura biológica entre as mulheres indígenas e sujeitos de outras qualidades. Se o ventre materno era o que determinava a condição jurídica – livre ou escrava – que uma pessoa nascia, os pleiteantes passaram a fazer uso das memórias familiares de suas esposas a fim de comprovar suas descendências dos sertões do rio Amazonas, afirmando que seus naturais foram “roubados e captivados injustamente contra as leis de V. Mag”. Como foi o caso da índia Maria, “o tronco daquela família”, que fora trazida injustamente para a vila de São Luís (AHU, Avulsos Maranhão. Cx. 23, Doc. 2333). Ao que parece, naquele momento aquela família mestiça ficou sob o poder de Manuel Gaspar das Neves.

No entanto, passados vinte e sete anos desde a sua entrega ao dito senhor, Catarina, Domingas e Teodora faziam novamente uma petição à Junta das Missões. Desta vez, a contenda tinha como partes as ditas escravas e Joana Pereira, viúva de Manuel Gaspar das Neves. Pelo que se evidencia, após o falecimento do senhor, os escravos que estavam sob sua custódia passaram a litigar suas liberdades nas esferas da justiça colonial. Antes de Catarina, Domingas e Teodora empreenderem ações contra a viúva Joana Pereira, a mameluca Josefa, o índio Simplicio e outros fizeram autos de liberdade na Junta das Missões e conseguiram assentos favoráveis para viver como livres.

 

“Prospecto das casas das índias de Monte-Alegre, onde fazem as cuias”, obra do desenhista José Joaquim Freire (1785) – Biblioteca Nacional

 

As concessões dessas liberdades impulsionaram as índias Catarina, Domingas e Teodora a entrarem, por sua vez, com uma ação contra a viúva Joana Pereira. Assim, por intermédio de Ricardo Eufrázia, procurador dos índios, a Junta das Missões recebeu a petição das ditas índias em 22 de março de 1755. O intermediador apontava que as liberdades das índias já teriam sido julgadas e contempladas pelo tribunal em 27 de fevereiro de 1727, confirmada pelo poder metropolitano em 20 de 1728 e assentada, novamente, pela Junta em 22 de abril de 1753. Na ocasião, “se determinou que fossem conservadas na quase posse de suas liberdades as índias Catharina, Domingas e Theodora e seus descendentes até ser ordinariamente convencidas e conservadas na mesma liberdade”. Com base na exposição de Ricardo Eufrázia, os deputados da Junta das Missões deferiam que o assento fosse remetido ao Juiz das Liberdades para que aquela instância pudesse conceder seu parecer sobre o caso e, assim, assentarem definitivamente a liberdade das índias Catarina, Domingas, Teodora e seus filhos (Arquivo Público do Estado do Maranhão. Livro de Assentos da Junta das Missões).

Por fim, é oportuno assinalar que o desenvolvimento da presente pesquisa se insere nos debates que tratam das complexas relações entre a administração portuguesa, o processo missionário, a justiça colonial e/ou o status jurídico dos indígenas na Amazônia. Cabe enfatizar que as denúncias do cativeiro realçam o protagonismo indígena perante uma justiça colonial que guardou, ante as múltiplas realidades no interior da monarquia lusa, um caráter deliberativo e até – para fazer referência a um conceito judicial mais recente – restaurativo. De fato, o material documental disponível permite que a historiografia possa avançar mais na compreensão sobre a fundamental importância dos povos indígenas, como sujeitos-chave, na expansão portuguesa na região amazônica, pois, como salientou o padre Antônio Vieira, “cativar índios e tirar de suas veias o ouro vermelho foi sempre a maior mina daquele Estado” (VIEIRA, 1991, p.136).

Bibliografia Básica

ARENZ, Karl. Além das doutrinas e rotinas: índios e missionários nos aldeamentos jesuíticos da Amazônia portuguesa (séculos XVII-XVIII). Revista História e Cultura, Franca, v. 3, n. 2, p. 63-88, 2014.
MELLO, Marcia Eliane Alves de Souza e. Fé e Império: as Juntas das Missões nas conquistas portuguesas. Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2009.
PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo: uma história lexical da ibero-América, entre os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagens e o mundo do trabalho). Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
VIEIRA, Antônio Apud AZEVEDO, João Lúcio de. Os Jesuítas no Grão-Pará: suas missões e a colonização. Lisboa: Tavares Cardoso & Irmão, 1991. p. 136.

Fontes Impressas

Arquivo Público do Estado do Maranhão. Fundo: Secretaria de Governo. Série 01: Livro de registro dos assentos, despachos e sentenças que se determinarem em cada Junta de Missões na cidade de São Luís do Maranhão. (1738–1777).

Arquivo Histórico Ultramarino. Avulsos Maranhão, Cx. 15, D. 1542, D. 1518; Cx. 23, D. 2333

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