Revista Impressões Rebeldes

CONVERSAS DE PRETOS E A “IMAGINADA LIBERDADE”

No limiar da independência, o Espírito Santo foi palco de revoltas escravas e quilombos. As expectativas de escravizados sobre a liberdade não emergiram apenas na província, mas em todo o Brasil

“Coleta para manutenção da Igreja de Nossa Senhora do Rosário em Porto Alegre”. A obra de Jean-Baptiste Debret (1828), demonstra uma das expectativas negras sobre a liberdade

Rodrigo da Silva Goularte

Rodrigo Goularte é doutor em História pela PPGH/UFF, professor do Instituto Federal do Espírito Santo e autor da tese “Portos e Sertões: a província do Espírito Santo e a emancipação da América Portuguesa (1815-1825)” – 2015, Universidade Federal Fluminense, Niterói

Em fins de maio de 1822, os fiéis da paróquia de Serra – freguesia da vila de Vitória, sede do governo da província do Espírito Santo – preparavam-se para o que pensavam ser uma missa como outra qualquer. Ao chegarem à igreja, todavia, se depararam com um cenário “nunca visto”: os cativos da localidade e adjacências se reuniram no centro da paróquia, portando paus e armas de fogo, “para ajustarem a imaginada liberdade”. Foram convocados por Antônio (escravo de Maria Magdalena) que também espalhara a notícia de que o vigário anunciara a “liberdade da escravatura” (Arquivo Estadual do Espírito Santo (AEES) – Fundo Governadoria Série 751. Livro Nº 22 – Diário de Governo da Província do Espírito Santo, Vitória). O padre, por sua vez, tentava tranquilizar os horrorizados donos e donas de escravos, informando que não havia liberdade aos cativos e se ela viesse a chegar não seria por intermédio dele. Horrorizadas também estavam as autoridades da província do Espírito Santo, localizada entre a Bahia e o Rio de Janeiro, que mandaram castigar os revoltosos com açoites.

A expectativa de liberdade por parte dos cativos, no ano de 1822, não se limitava à vila de Vitória. Em São Mateus, vila no extremo norte da província do Espírito Santo, havia “várias conversas de pretos” a respeito de uma ordem de “El Rey” para alforriar os escravos. Por esse comentário ser “muito falado”, temia-se levante contra os brancos. O temor se concretizou: os cativos se revoltaram e um dos libertos se autoproclamou rei (REIS, 1989, p. 95). Provavelmente por isso, ainda em São Mateus, no ano seguinte, quatro quilombolas foram capturados e decapitados. As quatro cabeças foram fincadas em “estacas por diferentes partes da vila para horrorizar os negros” (Arquivo Nacional. As Juntas Governativas e a Independência. Rio de Janeiro, 1973, n.v, n.p.). Para as autoridades do Espírito Santo de então, era necessário deixar bem claro aos cativos que levantes contra a escravidão seriam duramente reprimidos.

Manter os cativos e libertos sob vigilância era pauta capital às autoridades do lado americano dos domínios portugueses, e no Espírito Santo de inícios da década de 1820 essa realidade tinha suas peculiaridades. Poucos anos antes, a província vivenciou um processo de centralização administrativa que incluiu a garantia da ordem escravista pelas autoridades (MERLO, 2008, p. 120). E não era para menos: a população cativa era uma marca da paisagem social da região. Em Vitória, sede do governo provincial, por exemplo,

[…] os escravos representavam, ao longo do período que se estende de 1790 a 1830, nunca menos de 1/3 da população, chegando a alcançar a marca de 68% desse total em alguns períodos. Estavam eles, com efeito, em toda parte: na lavoura, na vila, dentro das casas, prestando serviços urbanos, exercendo ofícios especializados. Conviviam com os livres, trabalhando para ou com eles. Aliás, se os escravos configuravam-se bens obrigatórios para os mais ricos, também o eram para os menos abastados […] (MERLO, 2008, p. 121).

Além desses grandes contingentes de cativos, autoridades e proprietários ficavam em alerta em relação aos fugidos da escravidão. Em correspondência, falavam da “grande necessidade” (AEES – Fundo Governadoria Série 751. Livro Nº 22 Diário de Governo da Província do Espírito Santo. Vitória) do envio de capitães do mato para capturar os negros fugidos. Para engrossar os temores de autoridades e proprietários da região, havia os quilombos. Além daquele localizado em São Mateus, que teve quatro de seus moradores decapitados, havia outros, como os localizados em Guaraparim, vila vizinha à de Vitória.

Em 1822, os membros da câmara de Guaraparim alertavam para a falta de recursos para combate aos “assaltos de quilombos” (AEES – Fundo Governadoria Série Accioly. Nº 032 – Assuntos Militares Vitória). Um desses quilombos destacava-se pelo tamanho. Quase seiscentos habitantes viviam em duas fazendas abandonadas havia mais de vinte anos por ausência de herdeiros. A comunidade era descrita pelas autoridades como um “contínuo quilombo assaz prejudicial” e localizava-se em uma área antes formada pelas fazendas Campos e Engenho Velho. Após a morte do proprietário da fazenda Campos, os escravos se revoltaram. Um padre da região avisou aos herdeiros, que estavam em Portugal, da situação da propriedade e se ofereceu para restaurar a ordem, desde que recebesse parte da terra. Todavia, os cativos mataram o religioso na cama e tomaram posse da fazenda. Os cativos da vizinha Engenho Velho também se revoltaram e tomaram a propriedade. As autoridades tentaram destruir essa “república negra” (WIED, 1989, p 139-140) com uma companhia de soldados, mas foi em vão.

Por esses relatos, percebe-se que as autoridades do Espírito Santo possuíam muitos motivos para se preocupar com a escravaria no início da década de 1820, e as notícias que chegavam de além mar aumentavam os temores. Para os integrantes das classes dominantes de Portugal e do Brasil, estava em jogo, naquele momento, a liberdade, entendida por eles como “o direito de conservação da propriedade, fosse em seu âmbito privado ou no círculo mais ampliado do comércio internacional e dos direitos sociais e políticos estabelecidos” (RIBEIRO, 2002, p. 316). Nesses termos, a palavra “liberdade” recheava os debates políticos de então, feitos em periódicos e instâncias de poder institucional, como nas câmaras de vilas e nas próprias cortes lisboetas. Esse vocábulo, todavia, extrapolou o mundo das autoridades e proprietários, ganhando novos significados de outros personagens. Para alguns cativos, a mencionada liberdade referia-se ao rompimento dos laços da escravidão, o que não era tolerado nas esferas de poder político e econômico: “as leituras de liberdade feitas pelos ‘negros’ eram temidas por todos os ‘brancos” (RIBEIRO, 2002, p. 315). Os casos dos cativos exigindo a liberdade na sede da paróquia de Serra e os de São Mateus defendendo que o rei lhes havia concedido alforria – ambos ocorridos em 1822 – indicam que para esses revoltosos a “liberdade” mencionada no vocabulário político de então significa a ruptura com a escravidão. Ou seja, no Espírito Santo no início da década de 1820

Escravos e libertos também reivindicavam a liberdade jurídica, de ações e autonomia no espaço público. Afinal, cabras, mulatos e pretos discutiam e discorriam sobre tudo. No mínimo causavam uma certa apreensão deixar o Brasil entregue ‘a sua própria sorte e aos negros’. O movimento da população negra era sempre ameaça à liberdade porque espelhava uma outra leitura desta mesma palavra e realidade, ou melhor dizendo, deste mesmo desejo de autonomia, que se traduzia em práticas sociais e políticas diferenciadas (RIBEIRO, 2002, p. 316-317).

Nesses termos, enquanto para proprietários e autoridades da luso-américa a liberdade significava a não recolonização do Brasil por Portugal, para muitos cativos era a saída do cativeiro. A revolta liderada pelo escravizado Antônio em Vitória e as “conversas dos pretos” em São Mateus indicam que o contexto próximo à fundação do império brasileiro trouxe outras visões de luta aos cativos afora alforria concedida e fuga para os quilombos nos interiores da província. Apontam outro nível de organização coletiva, confrontando diretamente as autoridades religiosas, administrativas, militares e a dos senhores. A ação de Antonio em conclamar a escravaria da Serra em local de grande importância à comunidade, a igreja da freguesia, demonstra premeditação e articulação do movimento. Envolver o padre, uma das figuras mais importantes para a vida local, era o esforço de legitimar a ação perante os habitantes da freguesia. Em São Mateus, a ousadia dos cativos foi atribuir à realeza a ordem do fim do cativeiro. Diferente do padre de Serra, o monarca não estava presente para negar a informação. Se as autoridades locais não confirmavam a notícia era porque escondiam a ordem vinda de “El Rey”, diziam os cativos. O fato é que o aceite dessa narrativa pelos escravizados demonstra seu interesse em sair do cativeiro. Sendo assim, nos casos de Serra e São Mateus, a estratégia dos cativos para organizar seus movimentos contra a escravização dos envolvidos foi espalhar a narrativa de que uma autoridade havia decretado o fim da escravidão.

Essas revoltas de cativos no Espírito Santo de 1822 coincidem com as discussões nas câmaras de vila em que palavras como “liberdade”, chegadas de além-mar, davam o tom. Todavia, nas calçadas, ruas e sítios, fora dos prédios públicos e casas dos senhores, os cativos davam a esse vocabulário sentidos dissonantes das aspirações de autoridades e senhores. E não só no Espírito Santo as notícias vindas das Cortes lisboetas foram lidas pelos escravizados como ruptura dos laços do cativeiro. Também no Rio de Janeiro chegavam notícias de que o “povo constitucional” assumira o poder, depois de marchar até Lisboa e convocar as Cortes, e “[…] livres pobres, cativos e libertos, ‘brancos’ e ‘de cor’, passaram a vislumbrar as possibilidades de um futuro promissor e a lutar pelas suas libertações” (RIBEIRO, 2002, p. 299-300).

Revoltas escravas fora do sul brasileiro confirmam essas releituras da liberdade por parte dos cativos. No Maranhão, por exemplo, os cativos também tiravam as “próprias conclusões dos rumores que ouviam” sobre as revoluções no mundo atlântico, elaborando “suas utopias, construídas com base em sua ânsia de liberdade (ASSUNÇÃO, 2005, p. 360 e 364)”.

A independência em setembro de 1822 não trouxe o fim da escravidão. Nesse novo cenário político, os cativos de Serra ainda continuavam a desafiar as autoridades e senhores locais, ordenando os membros do governo provincial que os cativos revoltosos fossem atacados “a fogo vivo, no caso de ser preciso” (Arquivo Nacional. As Juntas Governativas e a Independência. Rio de Janeiro, 1973, n.v, n.p.). Em São Mateus não era diferente. Outras revoltas escravas marcaram também diferentes regiões do Império brasileiro na primeira metade do século XIX, como na Bahia.

As revoltas escravas nas províncias brasileiras das primeiras décadas do oitocentos não abalaram o edifício da escravidão, mas significaram aos envolvidos chances de ruptura com o cativeiro, mesmo que frustradas. A repressão pelas autoridades e senhores não impediu que os cativos tentassem em diferentes momentos evadir-se da escravidão por meio de fugas para quilombos ou exigindo a liberdade. A peculiaridade do início dos anos 1820 se deu por conta da grande circulação de palavras como “liberdade” entre cativos e não cativos, por conta do contexto das cortes. Para muitos cativos, “liberdade” significava rompimento dos laços da escravidão. Já nos primeiros anos do império do Brasil as autoridades deixaram bem claro que nesse novo contexto a liberdade enquanto fim da escravidão não chegaria, o que não foi impedimento para a continuidade de revoltas por parte das escravarias.

Bibliografia Básica

ARQUIVO NACIONAL. As Juntas Governativas e a Independência. Rio de Janeiro, 1973, 3 vols.
ASSUNÇÃO, Matthias Röhrig. Miguel Bruce e os “Horrores da Anarquia”. In: JANCSÓ, István (org). Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec; FAPESP, 2005. p. 345-378.
MERLO, P. M. S. O nó e o ninho: estudo sobre a família escrava em Vitória, 1800-1871. Universidade Federal do Rio de Janeiro. 229 páginas. 2008.
REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
RIBEIRO, Gladys Sabina. A liberdade em construção. Rio de Janeiro: Relume Dumará; FAPERJ, 2002.
WIED, Maximilian, Prinz von. Viagem ao Brasil. Tradução: Edgar Süssekind de Mendonça e Flávio Poppe de Figueiredo. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1989

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