Revista Impressões Rebeldes

CABANAGEM: PLURAL E RADICAL

Em 1835, a província do Grão-Pará foi sacudida por uma complexa rebelião. Em nome de uma nova ordem republicana, senhores e populares negros disputaram o poder, até que sua ousadia fosse punida pelas forças regenciais

“O Cabano Paraense” pintura de Alfredo Norfini datada de 1940 – Acervo do Museu de Arte de Belém

Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro

Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro é professor titular na Universidade Federal do Amazonas, autor de “Visões da Cabanagem: Uma revolta popular e suas representações na historiografia” (Manaus, Ed. Valer, 2019) e coordenador do Laboratório de História da Imprensa na Amazônia (LHIA/UFAM).

A Cabanagem, ocorrida na Província do Grão-Pará na década de 1830, tem sido até hoje o menos estudado dos movimentos sociais brasileiros. Embora essa situação esteja mudando nos últimos anos, constitui fato verdadeiramente curioso que esse descaso seja inversamente proporcional à importância histórica que ela teve, sendo, a um só tempo, o exemplo mais radical tanto da crise do colonialismo português – onde a Cabanagem finca suas raízes – quanto das dissidências e contradições oriundas do processo de formação do Império Brasileiro. Exatamente por isso foi massacrado numa cruenta repressão que se estendeu de 1835 até 1840 e causou um número de mortos maior que a própria revolta. Assim, estimativas de época apontam que a repressão à Cabanagem respondeu por cerca de 2/3 do total de 40.000 mortos no conflito, o que parecia corroborado até mesmo pela percepção de agentes da repressão, para quem as forças legais “faziam compensar em lágrimas o sangue que se teria vertido nas mãos dos cabanos” como indicado no Dicionário topográfico, histórico, descritivo da Comarca do Alto Amazonas de Lourenço da Silva Araújo Amazonas.

Tal como o próprio nome do movimento – provavelmente uma alusão às ações insurgentes oriundas dos segmentos mais pobres da sociedade –, a cronologia da Cabanagem é difícil de se estabelecer com precisão, em especial por ser ela a culminância de um complexo quadro de tensões e insurgências que no Grão-Pará ia se avolumando desde, pelo menos, o processo de Independência. Seu período de maior radicalidade, no entanto, ocorre a partir de 7 de janeiro de 1835 – quando facções rebeldes lideradas por Félix Malcher invadem a cidade de Belém, matam as principais autoridades e se apropriam do governo – até 13 de maio de 1836, quando ocorre a retomada da cidade pelas forças locais enviadas pela Regência. Nesse percurso, ocorreram três governos cabanos, sendo o primeiro de Malcher, seguido pelo de Francisco Vinagre e, por fim o de Eduardo Angelim. Perdida Belém, diversos grupos rebeldes continuaram a atuar no interior da vasta província, ocupando de forma efêmera diversas vilas e freguesias, pelo menos até 1840.

Complexa e multifacetada, a revolta articulou, em janeiro de 1835, dois movimentos de tensões que há anos vinham se delineando na Província do Grão-Pará, sendo o primeiro deles intra senhorial, opondo segmentos da cúpula oligárquica em disputas pelo poder político. Seu principal ator foi o segmento de proprietários e fazendeiros nacionais, em expansão cada vez maior desde o final do século XVIII. Embora enriquecido com a exploração da terra e das chamadas drogas do sertão (produtos extrativos da floresta, como salsaparrilha, anil, canela, urucum, cravo, baunilha e cacau selvagem), sua transmutação em elite esbarrava na reação imposta pelo segmento comercial exportador, notadamente de origem portuguesa, sendo esta a razão pela qual o discurso nativista foi logo cedo incorporado à luta.

Com efeito, desde a Revolução Liberal do Porto, em 1820, as manifestações contra a dominação portuguesa se agudizaram por todo o país e alcançaram o Grão-Pará, então administrado por uma junta governativa composta por comerciantes portugueses e, portanto, refratária aos interesses do segmento agrário, no qual pontificavam droguistas, proprietários e lavradores “nacionais”. Com a emergência do 7 de Setembro de 1822 a junta resiste, mantendo-se fiel à Portugal. Assim, a incorporação da província ao Império só aconteceria em meados do ano seguinte, por meio de negociações de cúpula que, paradoxalmente, ignoraram o segmento político que, no Grão-Pará defendia a emancipação do Brasil. O resultado desse acordo foi a adesão da Província ao Império, a manutenção da junta governativa no poder e uma violenta repressão aos nacionais – que resultou na morte por asfixia de 252 pessoas no porão do brigue “Palhaço”.

Como não podia deixar de ser, todo esse processo político gerou fortes ressentimentos no seio do segmento político nativo, que continuou a alimentar o desejo de deslocar do poder os “bicudos” (portugueses). Para esse segmento a emergência da Cabanagem, na década posterior, não deixaria de ser uma oportunidade de passar a limpo as “injustiças” operadas pelo processo de emancipação no Norte.

Num espectro diverso, o segundo movimento de tensão, bem mais amplo e longevo, tinha como atores os segmentos populares que, de longa dada, entabulavam revoltas e insurreições cada vez mais frequentes e com maior radicalidade, sendo uma das mais destacadas a ocorrida em 1832 na Vila da Barra do Rio Negro (Manaus). Assumiam sempre colorações locais e estas lhes atribuíam pautas, alvos e ações específicas a seguir, mas, em conjunto, enfrentavam uma dominação senhorial que os impunha vivência cruenta, marcada tanto pelo uso espoliativo de sua força de trabalho, quanto pela determinação do recrutamento militar que, na prática, obrigava outras modalidades de trabalho compulsório, mascarando, desta forma, a escravização da população pobre. A violência do recrutamento militar e os maus tratos aos recrutas foram, inclusive, o mote para a insurreição de 1832 em Manaus. Oriunda de um motim da tropa, o movimento, alcançando os populares, logo se transformou em insurreição aberta de grandes proporções que culminou com o assassinato das duas maiores autoridades (civil e militar) da Comarca do Alto Amazonas.

Em estreita articulação com esses segmentos populares de livres e libertos, a população escravizada negra existente na Província também oportunizou a seu favor as tensões intrassenhoriais, ampliando as ações de insurgência que vinham de longa data e, assim, espalhou mocambos pelas cabeceiras de diversos rios da Amazônia, especialmente o Trombetas, cujo relevo entrecortado de cachoeiras dificultava a navegação e, portanto, as expedições punitivas. Para o conjunto desse segmento, entretanto, a dimensão nativista mostrou-se irrelevante, já que suas ações se dirigiram indistintamente contra portugueses e brasileiros.

Em janeiro de 1835, a ação senhorial dissidente contra o governo de Bernardo Lobo de Souza, de origem portuguesa e tido por truculento, precipita a rebelião como que fazendo convergir, momentaneamente, os distintos vórtices das tensões represadas. Vencido o poder legal, restava aos rebeldes a governança da Província conflagrada, tarefa que se mostrou impossível pela assimetria de demandas e interesses entre os insurgentes. Este é o momento em que Félix Antônio Clemente Malcher, rico proprietário e senhor de escravos, se autoproclama Presidente da Província e, uma vez no poder, discursa pela conciliação. Dirigindo-se à população, conclama: “Largai as armas, tomais os instrumentos agrícolas para felicitar a indústria e o comércio”, conforme publicado na obra Motins Políticos de D. A. Raiol.

De forma compreensível, a base popular lhe nega apoio e reconhecimento. Em raia própria, a base popular da rebelião continuamente produzirá suas próprias lideranças, assumindo, sempre que pode, suas próprias demandas, fazendo com que a multifacetada revolta apresentasse sempre, como dissemos, cores locais. Ecuipiranga, por exemplo, localidade próxima à vila de Santarém, na confluência do rio Tapajós com o Amazonas, tornou-se importante epicentro rebelde com marcada participação negra, sendo polo emblemático dessa tensão divergente.

Assim, à reforma tópica e meramente política de Malcher e de seus seguidores – Francisco Vinagre e Eduardo Angelim entre eles! – a base popular da Cabanagem apresentou demandas mais radicais e mesmo revolucionárias. Uma leitura atenta de suas ações demonstrará que essas demandas foram, essencialmente, anti senhoriais. Populações negras afirmando em suas ações seu direito à liberdade. A massa pobre composta principalmente de índios, tapuios e mamelucos se insurgindo contra o recrutamento militar forçado e seus agentes. Em conjunto, querem o acesso à terra e o direito de dela tirar sua subsistência.

São mais difusos no plano político e suas lideranças específicas não chegam a formular um programa ou algo que se assemelhasse a isso. No entanto, por essas mesmas vozes, ecoavam, aqui e ali, desejos de estabelecer uma nova ordem, republicana, sendo mais provável que para muitos dentre eles – e para a população negra, certamente – tal republicanismo viesse mais do Haiti – onde a população negra escravizada protagonizou um violento processo revolucionário entre 1791 e 1804 que resultou na abolição da escravidão, na independência política daquela colônia diante da França e na emergência daquela que seria a primeira República negra do mundo – que dos discursos de liberais paraenses informados pelo Iluminismo.

Corroído por dentro, em verdadeira luta autofágica, o movimento foi massacrado pelas forças de uma Regência que quis fazer da repressão a ele um exemplo para outras províncias periféricas insatisfeitas com o arranjo político que produziu o Brasil independente. Ensanguentado e destruído, o Grão-Pará voltaria a trilhar o caminho da ordem.
Domesticou-se a insatisfação popular, mantendo aquilo que a produzia. O perigo de outra sublevação popular, no entanto, jamais desapareceria. De dentro da Corveta Defensora, o navio prisão fundeado em Belém e para onde foram mandados milhares de cabanos, o rebelde Pedro Fernandes de Souza – segundo consta no códice 1130 do Arquivo Público do Estado do Pará – vaticinava que o “tempo cabanal há de tornar” e que essa “… outra Cabanagem … será muito pior que a passada”.

Bibliografia Básica

CHIAVENATO, Júlio José. Cabanagem: o povo no poder. São Paulo, Brasiliense, 1984.
CLEARY, David (org.). Cabanagem: documentos ingleses. Belém: SECULT, 2002.
FREITAS, Décio. A miserável revolução das classes infames. Rio de Janeiro: Record, 2005.
PANTOJA, Ana Renata de Lima. Terra de revolta. Belém: Imprensa Oficial, 2014.
RAIOL, D. A. Motins Políticos. Belém: UFPA, 1970, p. 556
RICCI, Magda. Do sentido aos significados da Cabanagem: percursos historiográficos. Anais do Arquivo Público do Pará, v. 4, t.1, p. 241-274.

Leia também

    Imprimir página

Compartilhe