Revista Impressões Rebeldes

BRIGA POR PEIXE

As estratégias e os artifícios mobilizados pelos moradores poderosos da capitania do Rio Grande do Norte para garantir o domínio das localidades pesqueiras promoveram frequentes conflitos em torno da pesca nos séculos XVII e XVIII

Detalhe da gravura em metal “Prefeitura da Paraíba e Rio Grande” de George Marcgrave (1647) que mostra, à esquerda, a lagoa de Guaraíra localizada no litoral da capitania do Rio Grande do Norte – Acervo Coleção Brasiliana Itaú

Ana Lunara da Silva Morais

Ana Lunara da Silva Morais é doutoranda em História pela Universidade de Évora (UÉ-CIDEHUS). Autora de “Conflitos pela posse de localidades pesqueiras da capitania do Rio Grande: Séculos XVII-XVII” publicado na Revista em Perspectiva, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 57-72, 2016

A atividade pesqueira, praticada em todos os continentes ao longo dos séculos até a atualidade, desempenha um papel relevante, principalmente em razão da subsistência. A capitania do Rio Grande do Norte, no Estado do Brasil, por sua localização privilegiada, com costa litorânea ao norte e ao leste, além de possuir grandes lagoas, foi uma localidade muito frequentada para o exercício da pesca, fosse para a subsistência da população, fosse para o comércio com outras capitanias vizinhas.

Os pescadores do Rio Grande do Norte, por ordem da Câmara, eram obrigados a destinar os pescados para serem vendidos em localidades específicas, tanto pela necessidade do abastecimento, quanto para atender ao consumo em datas comemorativas ou religiosas, como na Quaresma. O valor do pescado variava por dois aspectos: pela espécie do peixe; e pelo seu tratamento, ou seja, se era salgado ou não. Os peixes salgados eram mais valorizados, sendo seu valor superior em cerca de um terço sobre o preço do pescado fresco, possivelmente pelo custo que envolvia o acréscimo do sal, único meio de conservação disponível na época.

O exercício frequente desta atividade desde finais do século XVI, relatada logo nos primórdios da ocupação da capitania, foi, ao longo dos séculos XVII e XVIII, regulamentada pela Câmara da cidade do Natal. Essa instituição, para melhor gerir a pesca e o abastecimento da capitania, bem como angariar fundos: estabeleceu taxas anuais a serem cobradas das embarcações e redes usadas nas pescarias; definiu a forma e o valor que o peixe deveria ser vendido e exigiu que os pescadores das principais localidades pesqueiras solicitassem uma licença para exercer a atividade. O não cumprimento de tais disposições implicava na apreensão dos instrumentos de pesca, pagamento de multa e até prisão. Pela importância dessa atividade foram inúmeras as querelas referentes ao incumprimento de tais regulamentações e de disputa pela localidade onde a atividade pesqueira mais rentável na capitania do Rio Grande do Norte.

Muitas foram as estratégias de acesso às localidades pesqueiras, sendo bem diferentes os artifícios mobilizados pelos moradores do Rio Grande do Norte para defender suas possessões e/ou limitar o exercício da pesca por outros indivíduos, como se analisou no artigo intitulado “Conflitos pela posse de localidades pesqueiras da capitania do Rio Grande”, publicado na revista Em Perspectiva, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 57-72, 2016.

Desde 1679, há registro de discórdias entre moradores da capitania ou mesmo entre moradores e indivíduos residentes de outras capitanias que realizavam pescarias no Rio Grande do Norte. No dito ano, consta um termo de vereação do Senado da Câmara da cidade do Natal no qual se relatou a queixa de moradores que acusavam pessoas alojadas no rio das Guaraíras de impedir com suas redes que os peixes seguissem o curso do rio até chegarem a lagoa de mesmo nome (localizada atualmente entre os municípios de Goianinha e Arez), o que dificultava a pesca no local.

A lagoa de Guaraíras, cujo nome provém do termo “guarai”, espécie de peixe, somada ao étimo “ira”, que significa o diminutivo de animais, ou seja, filhotes de guairas, conserva seu nome e características até os dias de hoje. Por sua grande extensão, abundância em peixes e localização privilegiada – na costa sul da capitania – foi uma localidade muito frequentada para o exercício da pesca, logo, palco de contendas. O grande número de indivíduos que lá pescavam, fosse para a subsistência ou para a comercialização do peixe, possivelmente entraram em conflito ao perceber que outros sujeitos tentaram beneficiar-se da pesca, colocando as redes em um ponto estratégico, na passagem do rio para a lagoa, acumulando um grande número de peixes, e, em contrapartida, impedindo a passagem desses para a lagoa, como consta na queixa, diminuindo a quantidade de pescado para os demais pescadores. Os oficiais da Câmara perante as queixas determinaram que quem cometesse tais acusações deveria ser multado e obrigado a pagar 6$000 réis de condenação, sendo dois mil para quem acusasse e quatro mil para as despesas do Senado da Câmara.

Em 1677, Francisco de Almeida Vena, juntamente com mais dois indivíduos, João de Castro Fragoso e José Coelho de Barros, receberam a concessão de uma sesmaria, título de terra condicionado, no lugar chamado Salinas, mais precisamente em Água Maré (atual município de Guamaré, no estado do Rio Grande do Norte). A sesmaria era bastante extensa, possuía 10 léguas (cada légua de sesmaria equivalia 6,6 km) de comprimento pela costa e 4 léguas de largura adentrando a capitania, totalizando 1.742 km2, razão pela qual gerou contendas.

Os sesmeiros passaram a impedir que outros moradores realizassem pescarias e recolhessem sal na terra que lhes foi concedida. Os indivíduos prejudicados, aqueles que foram impedidos de continuar usufruindo da terra, recorreram à Câmara para que se tomasse uma solução. Assim, a Câmara informou ao governador geral da Bahia, Roque da Costa Barreto (1678-1682), sobre os danos que a sesmaria concedida causaria aos demais moradores. O pedido dos oficiais para a revogação da sesmaria foi aceito e a terra liberada para a pesca e recolhimento de sal, tendo a Câmara de Natal, em 1682, divulgado o edital de liberação da terra.

Um dos homens principais que receberam a sesmaria que motivou tantos problemas não era qualquer um. Francisco de Almeida Vena era indígena, possivelmente um Potiguara, original da mesma aldeia do icônico restaurador Filipe Camarão, e foi desde o ano de 1669 administrador dos índios da capitania do Rio Grande do Norte por meio de indicação do “capitão-mor e governador de todos os índios do Brasil”, Diogo Pinheiro Camarão, cargo confirmado pelo Rei em 1672. O ofício de administrador era extremamente relevante, pois era a mais alta hierarquia local representante dos índios. Cabia ao administrador, entre outras obrigações, a “repartição” dos índios, isto é, disponibilizar os índios aos moradores para prestação de serviços mediante pagamento.

Francisco de Almeida Vena, segundo os membros da câmara de Natal em carta de 1680, além de administrador, fez-se “senhor dos índios e andava com grandes interesses”, dificultando que outros moradores se utilizassem daquela mão de obra. Acredita-se que “os grandes interesses” de Francisco de Almeida Vena estejam diretamente relacionados à extensa sesmaria solicitada por ele em Água Maré, nas Salinas. Dessa forma, pode-se conjecturar que “o senhor dos índios”, tendo em vista o poder que lhe cabia como administrador, estivesse utilizando os braços indígenas para a realização de pescarias e recolhimento do sal para comércio ou para a conservação do pescado.

 

Canoa indígena encontrada na lagoa de Extremoz, no Rio Grande do Norte, datada de meados do século XVII – Disponível em: Canoas monóxilas da lagoa de Extremoz, RN, Brasil. Fumdhamentos (2016), vol. XIII. pp. 94-107. Figura 3

 

Na segunda década do Setecentos, verificou-se um outro conflito pelo uso de terras onde a atividade pesqueira era propícia, na praia da Redinha, nas proximidades da cidade do Natal. Em agosto de 1715, Joana de Freitas, viúva do capitão Manuel Correia Pestana, solicitou ao rei D. João V, uma provisão para que capitães do Rio Grande e seus sucessores não utilizassem suas terras para realizar pescarias. Segundo a viúva, a terra pertencia a seu falecido marido, e este teria ofertado a mesma a alguns capitães, para que realizassem pescarias por meio de terceiros. A viúva solicitou ao rei D. João V que tais usuários da terra, ou seja, os capitães e suas respectivas famílias, deixassem de pescar nas mesmas para seu sustento, permitindo a pesca apenas para aqueles indivíduos que comercializavam com Pernambuco.

O interesse da viúva em assegurar suas posses na Redinha foi um esforço iniciado por seu falecido marido, Manuel Correa Pestana, poucos meses antes de sua morte, em abril de 1715. Nessa data, ele solicitou para si as terras da Redinha à Câmara de Natal, as quais foram demarcadas em 22 de julho de 1715, sendo meia légua em quadra, incluindo os sítios de pesca. Manuel Pestana justificou que há muitos anos habitava as ditas terras, realizando pescarias ali, e que também possuía a propriedade por herança de seu pai, o sargento-mor Manuel da Silva Vieira, o qual teria solicitado a dita terra por meio de sesmaria em três de agosto de 1676, desde então pagando mil réis de foro anual à Câmara.

Este caso exemplifica como as áreas propícias à pesca geraram conflitos na capitania do Rio Grande, sobretudo pelas diferentes mentalidades possessórias dos sujeitos envolvidos no conflito. Neste caso, o capitão Manuel Correa Pestana e sua esposa Joana de Freitas estavam insatisfeitos com o fato de outros indivíduos realizarem pescarias em suas terras na praia da Redinha. Contudo, como os mesmos haviam afirmado anteriormente, foram eles próprios que permitiram que alguns capitães utilizassem-se da dita terra. Embora seja sabido, que a terra na Redinha tenha sido “ofertada” por Manuel Pestana para capitães da capitania, não se pode verificar se esta oferta era referente ao arrendamento da terra, ou se era apenas um favor. Acredita-se na possibilidade de o casal ter se beneficiado da terra disponibilizando-as para outros indivíduos visando a formação de uma rede de troca de favores. Contudo, quando esta disponibilização da terra não mais era necessária ou mesmo não mais rendia os benefícios esperados, Manuel tentou impedir o uso desta por outrem, bem como o fez sua esposa posteriormente.

Como se demonstrou, as áreas propícias para a atividade pesqueira na capitania do Rio Grande foram alvo de disputa entre seus habitantes. Os moradores poderosos visavam alargar as suas possibilidades de pesca, fosse expandindo as suas áreas de atuação – garantindo o seu domínio e acesso à terra e ao mar/lago – fosse impedindo o acesso de outros moradores menos abastados. Outro gatilho para querelas ocorria por meio do descumprimento das exigências impostas pela Câmara. Os camarários eram responsáveis por gerir a atividade pesqueira, tentando incidir sobre os deveres dos pescadores, bem como usufruir de sua posição privilegiada, atendendo seus próprios interesses.

Bibliografia Básica

CURVELO, Arthur Almeida Santos de Carvalho. Pescaria e bem comum: pesca e poder local em Porto Calvo e Alagoas do Sul (séculos XVII e XVIII). In: CAETANO, Antônio Filipe (Org.). Alagoas colonial: construindo economias, tecendo redes de poder e fundando administrações (séculos XVII-XVIII). Recife: Editora Universitária UFPE, 2012.

LOPES, Fátima Martins. Índios, colonos e missionários na colonização da capitania do Rio Grande. Mossoró: Fundação Vingt-Um Rosado; Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, 2003.

SILVA, Luiz Geraldo. A faina, a festa e o rito. Uma etnografia histórica sobre as gentes do mar (séculos XVII ao XIX). Campinas-SP: Papirus, 2001. (Coleção Textos do Tempo).

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