Revista Impressões Rebeldes

REBELDES GENTÍLICOS

Como um motim indígena em um forte da Amazônia no século XVII se espalhou na região, assustou Lisboa e mudou a política dos portugueses na região.

Detalhe de Maranhão Taboa Segunda. Da Oficina de João Teixeira Albernaz I, c. 1629 em “Pequeno Atlas do Maranhão e Grão Pará”.

Alírio Cardoso

Alírio Cardoso é professor do Departamento de História da Universidade Federal do Maranhão. É coautor, com Carlos Augusto Bastos e Shirley Nogueira, de História Militar da Amazônia. Guerra e Sociedade (séculos XVII-XIX) (Curitiba: Editora CRV, 2015)

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O ano era 1617. O local, uma pequena comunidade chamada Cumã, próxima à ilha de São Luís do Maranhão. Numa manhã nublada de janeiro, um pequeno gesto, tão despretensioso como a leitura de uma carta, iniciou uma das mais relevantes, e menos conhecidas, rebeliões nativas do norte da América portuguesa: a revolta de Cumã (1617-1621).

Tudo ocorreu quando, nas cercanias da fortaleza de Cumã, erguida pelos portugueses para ajudar na proteção da Amazônia contra ameaças estrangeiras e reforçar a ligação com o vizinho Pará, um índio chamado Amaro leu em voz alta uma carta na presença de outros membros da nação tupinambá. A missiva seria parte da correspondência trocada entre Francisco Caldeira Castelo Branco, fundador da cidade de Belém, em 1616, e o capitão-mor Jerônimo de Albuquerque, maior autoridade portuguesa do Maranhão. A carta teria sido enviada através de emissários tupinambá do Pará a serviço dos portugueses e revelaria uma suposta trama portuguesa cuja intenção seria escravizar todos os índios da região. A leitura da carta pelo índio Amaro teve reações imediatas e graves consequências. Nas horas seguintes, um grupo de índios invadiu a fortaleza da cidade e massacrou os cerca de trinta soldados brancos que faziam guarda. Esse era apenas o começo.

Poucos dias depois, intensificaram-se os contatos entre os tupinambá do Maranhão e seus parentes da capitania do Pará. Nos meses subsequentes, outras nações indígenas, insatisfeitas com a presença lusa, também participam da revolta. Ao longo dos quatro anos seguintes, a rebelião que começou como um motim dos tupinambá da pequena Cumã se torna uma guerra geral contra os portugueses, envolvendo outras nações indígenas. Seu impacto aumenta exponencialmente com o tempo, ao ponto de obstruir as comunicações entre as duas principais cidades da região, Belém e São Luís e, mais importante ainda, alarmar as autoridades lusas da distante Lisboa. Ao mesmo tempo, a repressão portuguesa ao movimento foi brutal, liderada por um capitão de campo que tinha ambições políticas maiores, Bento Maciel Parente. Além da perseguição aos responsáveis diretos pelo movimento, morte e escravização dos demais índios envolvidos, houve também uma tentativa de construir novos acordos com as chefias indígenas da região, chamados na época de índios principais.

O motim de Cumã, tão pouco conhecido da historiografia brasileira, deve ser compreendido além do seu cenário meramente local e comparado com outras rebeliões nativas que colocaram em xeque o poder dos europeus nas áreas conquistadas. Entretanto, os desdobramentos locais também são relevantes para entender a dimensão do conflito, principalmente no que diz respeito à situação do trabalho nativo no período anterior às leis do governo do rei D. João IV (1640-1656), amigo pessoal do famoso jesuíta Antônio Vieira (1608-1697), mais restritivas em relação ao período em que as coroas de Espanha e Portugal estiveram unidas.

Voltando à revolta de Cumã, este motim nos apresenta alguns personagens relativamente conhecidos da literatura especializada e outros quase completamente ignorados pelos historiadores. O primeiro deles é Jerônimo de Albuquerque, sertanista experiente, militar fundamental na conquista portuguesa da região, e na expulsão dos franceses que ocupavam a cidade de São Luís desde 1612. Albuquerque era bem considerado pelos setores militares de Lisboa, e também de Madri, por uma qualidade cada vez mais valorizada naqueles dias: era um português “sertanista” que falava línguas indígenas e conhecia bem o método nativo de fazer a guerra, e não poucas vezes celebrava vantajosos acordos com suas lideranças. De fato, ele mesmo tinha sangue indígena correndo nas veias, herdado da parte materna. Supostamente, foi Jerônimo de Albuquerque quem escreveu a tal carta conspiratória lida em voz alta pelo índio Amaro.

Outro personagem importante da revolta foi o capitão de Mar e Guerra, Bento Maciel Parente. Parente que nasceu em Portugal, Vianna do Castelo provavelmente, mas passou quase toda a vida em Pernambuco, havia se notabilizado no combate aos tapuias rebeldes na Paraíba e no Rio Grande do Norte. O posto de principal agente português da repressão à revolta de Cumã permitiu a esse militar uma ascensão meteórica na burocracia luso-americana culminando com a obtenção do cargo de governador do Estado do Maranhão, em 1637. Foi ele, aliás, o governador quando da invasão holandesa ao Maranhão, em novembro de 1641. Parente também era figura bem conhecida na corte de Madri, onde circulava com certa frequência. Menos conhecido são as propostas elaboradas por este militar, e enviadas a Lisboa e Madri, sobre a implementação em solo português do sistema de encomienda, notório sistema peruano de repartição do trabalho indígena, cuja característica mais importante era a pouca intervenção missionária.

Dentre todos os personagens da revolta de Cumã, menos notório de seus protagonistas é mesmo o índio Amaro. Sobre ele há infinidades de perguntas, quase nenhuma certeza. Era índio tupinambá da região ou, como outros, veio de algum lugar do Brasil com os portugueses? Era mesmo uma chefia nativa, índio principal? Tinha acordos ou negócios com Jerônimo de Albuquerque, ou desacordos com seu filho, Matias de Albuquerque? Sabia de fato ler em português ou havia simulado a leitura da tal carta? Foi o verdadeiro deflagrador do movimento, ou apenas cooptado pelas lideranças tupinambá do Cumã? O pouco que sabemos vem do processo aberto após o fim da revolta, e outros relatos do início do século XVIII.

Amaro era provavelmente aquilo que podemos chamar de índio de segunda geração, dentro do processo de contato. Este tupinambá provavelmente foi trazido de Pernambuco como língua, como os portugueses chamavam os tradutores, mediadores e guias, homens fundamentais nas incursões por novas terras. Amaro, pelo que sugerem as poucas fontes a respeito, foi educado pelos jesuítas do Recife, sendo completamente verossímil que soubesse ler, escrever e interpretar com precisão os sentidos das palavras em língua portuguesa.

Outro argumento a favor da ideia de que Amaro era índio alfabetizado, decorre do fato de que os demais índios acreditaram, sem muito custo, na sua versão. Para os tupinambá do Maranhão, Amaro poderia, sim, ter interceptado uma carta de Jerônimo de Albuquerque, poderia ler o documento, compreender seu fundamento. Para os demais tupinambá, estes pareciam motivos suficientes que justificassem uma reação tão enérgica contra os portugueses. O início da rebelião, então, não havia começado como um engodo, mas como um ato de confiança. Há, por outro lado, motivos para crer que os próprios índios do Cumã já tinham planos para uma rebelião, antes mesmo da leitura da carta conspiratória de Jerônimo de Albuquerque. Mas, não há dúvida de que Amaro ganhou, com o tempo, relevância no episódio.

Por tudo que dissemos, o índio Amaro é um bom exemplo de um extraordinário fenômeno que poderia advir do contato entre europeus e índios, a existência de nativos que estavam constantemente estacionados entre dois mundos, duas culturas, e demonstravam capacidades próprias para interagir entre as referências ocidental e nativa, ganhando, não raramente, vantagens pessoais ou coletivas com isso.

A revolta de Cumã ocorre num contexto internacional delicado para os portugueses. Nesta época, Portugal era território anexado ao império Espanhol, ligado aos castelhanos, desde 1580, pela chamada União Ibérica. Este também é um período em que a Amazônia recebe diversas incursões estrangeiras, rivais dos espanhóis, como franceses, ingleses, irlandeses e principalmente holandeses. Em Lisboa, e em Madri, homens bem informados já conheciam tais atividades, e sabiam que esses “piratas” tinham ostensivo apoio indígena, e com esse respaldo traficavam diversos produtos amazônicos e construíam fortalezas na região. A revolta de Cumã ocorria num momento em que os portugueses acabavam de chegar à Amazônia, sabiam, portanto, que desembarcavam na região com certo atraso, pois os acordos entre franceses, holandeses e as nações indígenas do Maranhão e do Grão-Pará já estavam avançados.

Há relatos posteriores que afirmavam, inclusive, que o próprio índio Amaro teria alguma relação com os franceses, fato nunca comprovado, mas que elevaria enormemente as preocupações em torno da rebelião. Sabe-se, no entanto, que o levante estava sendo discutido na corte lusitana, em banquetes e reuniões, e até mesmo o general francês Daniel de La Touche, comandante da ocupação francesa do Maranhão, havia feito comentários laudatórios à iniciativa tupinambá, o que foi considerado uma provocação. Por isso mesmo, uma consequência derivada da revolta foi a busca por novas alianças entre portugueses e índios. Essa nova política ganhará sua melhor versão na guerra aos holandeses (1630-1654), cujo papel da Amazônia portuguesa ainda não foi devidamente estudado.

As revoltas indígenas da Amazônia são tão complexas quanto a sociedade formada nessa nova terra. Motins e rebeliões nativas tinham motivações diversas, mas muitas vezes apresentavam como protagonistas índios que conheciam razoavelmente a política branca. Eram homens, que como Amaro, viviam constantemente entre dois mundos, com seu nome cristão e sobrenome nativo, e que cada vez mais pareciam ter consciência de sua importância nessa sociedade híbrida e mestiça.

Bibliografia Básica

BERREDO, Bernardo Pereira de. Anais Históricos do Estado do Maranhão. São Luís: Alumar, 1988 [1749].

CARVALHO JUNIOR, Almir Diniz de. Índios Cristãos. A conversão dos gentios na Amazônia Portuguesa (1653-1769). Campinas: Tese de doutorado (história) apresentada à Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), 2005.

GRUZINSKI, Serge. O Pensamento Mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

MONTEIRO, John M.. Tupis tapuias e historiadores: Estudos de História indígena e do indigenismo. Tese de Livre Docência (História) apresentada à Universidade Estadual de Campinas, 2001.

IBÁÑEZ BONILLO, Pablo. “Desmontando a Amaro: una re-lectura de la rebelión tupinambá (1617-1621)”. Topoi, vol. 16, nº. 31, (jul./dez. 2015), p. 465-490.

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