Revista Impressões Rebeldes

Quatro faces da resistência

Todos os terrenos conectando as Américas espanhola e portuguesa serviam para o trânsito de negros e negras na luta contra a escravidão, revelando o poder da construção de uma história afro-latina

Vista aérea do pantanal mato-grossense, por onde escravizados transitavam entre os Impérios português e espanhol. (Foto: Flavio André-MTur)

Bruno Pinheiro Rodrigues

doutor em História pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), com estágio de doutorado sanduíche na Universidade de Lisboa. Professor da área de História da América no Departamento de História da UFMT. Autor de “Homens de ferro, Mulheres de pedra” e “Fogo da liberdade”. É um dos coordenadores do grupo de pesquisa “Estudos sobre Política, Identidades e Fronteiras nas Américas” (EPIFAn)

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Entre os séculos XVI e XIX estima-se que foram escravizados e trazidos ao continente americano cerca de 12 milhões de africanos. Distribuídos nas mais diversas localidades e atividades econômicas, como diria Antonil (1711, p. 22), essas pessoas foram as mãos e os pés de todo o sistema econômico desenvolvido no continente. Particularmente na América espanhola, houve maior concentração de africanos escravizados em áreas onde o cerne da economia se localizava em atividades monocultoras, como Colômbia, certas regiões do Peru e México e Caribe (KLEIN, 2015).

Legenda: Itinerário de africanos escravizados até a América espanhola. Disponível em < https://www.slavevoyages.org/assessment/estimates>. Acesso em 12/08/2024.

Como em qualquer parte em que existiu a escravidão, constam diversos registros da resistência, através da formação de quilombos, fugas, insurreições urbanas, sabotagens, disputas na justiça e as mais variadas estratégias para ruptura dos grilhões e alcance da liberdade. Analisaremos brevemente neste ensaio quatro casos que permitem refletir sobre a experiência da escravidão e resistência na América do Sul, que para aqueles que buscavam a liberdade, não tinha fronteiras, posto que o racismo estrutural e grilhões eram os mesmos em todos os lados. 

O primeiro trata de uma conspiração descoberta em 1809 na cidade de Santa Cruz de la Sierra, Vice-Reinado do Rio da Prata, cujos protagonistas eram negros livres, escravizados e indígenas. A cidade naquele período detinha grande importância econômica na região andina, por ter uma economia sustentada no setor agrícola. Basicamente os três segmentos sociais mencionados planejavam tomar as principais repartições políticas e assassinar as autoridades do mundo colonial. Importante lembrar que o contexto era de grandes incertezas, tendo em vista as invasões napoleônicas que haviam destronado o rei espanhol e os ecos da Revolução haitiana, que lançavam um espectro por todo o continente sobre possíveis revoltas contra a escravidão. 

A conspiração foi descoberta na véspera da sua execução, e dezenas homens negros foram aprisionados. Na apuração conduzida pela polícia cruceña (de Santa Cruz de la Sierra) foi constatado que uma parte dos negros livres líderes da conspiração tinha passado pelo Mato Grosso na condição de escravizados, e depois fugido ao Alto Peru (atual Bolívia). Os negros escravizados haviam sido motivados pela promessa de liberdade, os negros fugidos pelo asilo e os indígenas pela isenção de tributos. Muitos podem ser os aspectos examinados no episódio, mas chamamos atenção para o fato de que a população negra e indígena não assistira passivamente a todo o turbilhão político que arrastou o continente a diversas guerras no início do século XIX, e ela que se mobilizou para o atendimento das suas próprias demandas (RODRIGUES, 2016). 

O segundo caso, traz a história de Francisco Rios, também um exemplo para pensar a atitude da população negra diante dos eventos políticos que convulsionavam o continente no limiar do século XIX. Nascido no Rio de Janeiro e levado ao Mato Grosso como escravizado, foi uma das centenas de outros africanos e afrodescendentes que se valeu da extensa área de mata e caminhos fluviais existentes na região pantaneira para fugir para os domínios espanhóis. Nesse processo de fuga, constituiu uma teia de aliados e uma curiosa fama na região andina, que lhe rendeu a alcunha de “El Quita capas”, devido a habilidade em roubar capas, vestuário comum naquelas partes. Quando iniciaram os primeiros movimentos que mergulharam a região nas guerras de independência, ele foi escolhido para ser o porta-voz da plebe na cidade de Sucre, na atual Bolívia. Exercia tanto fascínio na população que logo foi aprisionado. Posteriormente foi libertado com a condição de que se alistasse em um dos batalhões de “Negros ou Pardos” formados por toda América do Sul para reivindicar a independência (RODRIGUES, 2023). 

O quilombo formado no final do século XVIII nos entornos de Vallegrande, cidade localizada a Oeste de Santa Cruz de la Sierra, terceiro evento que destacamos, igualmente mostra que o estabelecimento de acampamentos fora das cidades escravistas foi uma característica muito comum da resistência contra a escravidão no continente. O que o torna distinto é que ele foi fundado por africanos que haviam fugido da escravidão no Brasil, e que ali residindo, atuavam contra as fazendas escravistas e tentavam estimular a fuga da população negra em situação de cativeiro na região. Tão logo os proprietários se mobilizaram, foram organizadas campanhas contra o ajuntamento, que terminou com o aprisionamento das lideranças em 1786  (RODRIGUES, 2024). 

Por fim, compartilhamos a história de Cipriano Suares, escravizado que acionou a justiça para obter o direito de participar da guerra de independência no Vice-Reinado do Prata em 1810. Cipriano residia em Buenos Aires, e pelo que consta nos autos de um processo disponível no Archivo General de la Nacion (Argentina), antes de acionar a justiça, fugira e, posteriormente, através de um representante legal, afirmou ter consciência da necessidade de soldados para a guerra e de possuir o “sentimento patriótico” para estar na frente de batalha. Apesar do recurso do seu antigo amo, a justiça lhe concedeu o direito ao alistamento. Não sabemos para qual frente Cipriano foi designado e se retornou com vida, mas a tentativa de conseguir a liberdade através do alistamento militar nas Américas foi acionada por milhares de outros homens escravizados. De acordo com Andrews (2007, p. 88), a eclosão das guerras de independência na América espanhola abria, em si, um horizonte de possibilidades à população negra: reduzia o controle, aumentava as chances de fugas, proporcionava o uso do alistamento como moeda de troca para alforria e a médio prazo resultou na aprovação de diversos programas de emancipação, como as leis do ventre livre. Durante o período das lutas de libertação na América latina foi bastante comum a existência de batalhões formados exclusivamente por pretos e pardos. 

Soldado da “Companhia dos Morenos” (1815). Museo Casa Rosada, Argentina

Em suma, quando analisamos a historiografia latino-americana e as fontes que informam a agência de homens e mulheres africanos ou afrodescendentes percebemos que a resistência contra a escravidão foi lugar-comum na história afro-latina e, principalmente, que existem muitas trajetórias a serem conhecidas. É preciso trabalhar por uma historiografia que revise os principais aspectos da história do continente, a partir de outros ângulos com ênfase em outros sujeitos. As histórias aqui reunidas são parte desse esforço, de pensar a história da América para além das fronteiras e sujeitos tradicionais.

Bibliografia Básica

KLEIN, Herbert. A escravidão africana na América Latina e Caribe. Brasília-DF: Editora da UnB, 2015.

RODRIGUES, Bruno Pinheiro. “El fuego de la libertad”: a conspiração sufocada de negros livres, cativos fugidos da América portuguesa e indígenas em Santa Cruz de La Sierra (1809). Revista Eletrônica da ANPHLAC, n. 20, jan/jun., 2016, pp. 197-221.

______. “El caudillo de los cholos”: reflexões sobre a vida de um homem negro livre na América espanhola em tempos de guerra (1809-1811). Topoi, Rio de Janeiro, v. 24, n. 52, jan./abr., 2023, pp. 152-172.

______. Fogo da liberdade: a resistência de homens e mulheres contra a escravidão entre o Mato Grosso e América espanhola (séculos XVIII e XIX). Curitiba: Appris, 2024.

Fontes Impressas

ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas (…). Lisboa: Officina Real Deslandesiana, 1711.

Fontes Primárias

Sobre los sucesos de Santa Cruz, 1809, Archivo y Biblioteca Nacionales de Bolívia (ABNB), Santa Cruz de la Sierra, EC1809-8.

Causa criminal seguida contra Francisco Rios, Archivo y Biblioteca Nacionales de Bolívia (ABNB), Sucre, 1809-1811, Fondo Emancipacion, ficha 4. 

Sobre escravos minas na Bolívia, Archivo y Biblioteca Nacionales de Bolívia (ABNB), MyCh, 1786, Cx. 195-10.

Cipriano Suares, Archivo General de la Nación (Argentina), Juzgado Criminales, Buenos Aires, 1810-1815, cajá 10-27-03-05.

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Como Citar

Bruno Pinheiro Rodrigues, "Quatro faces da resistência". Impressões Rebeldes. Disponível em: https://www.historia.uff.br/impressoesrebeldes/revista/quatro-faces-da-resistencia/. Publicado em: 27 de março de 2025. ISSN 2764-7404

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