Revista Impressões Rebeldes

PERNAMBUCO DE CABEÇA PARA BAIXO

Durante 74 dias, Recife se rebelou e inaugurou a primeira república no mundo português. Para sustentar esse levante sem precedentes foi preciso buscar apoio interno entre as províncias e externo, nos estados unidos da américa.

“Junta à Fernambouc” [Reunião em Pernambuco], litogravura de Jules David a partir do desenho de Johann Moritz Rugendas (1835) – Acervo Biblioteca Nacional Digital

Flavio José Gomes Cabral

Flavio José Gomes Cabral é professor da Universidade Católica de Pernambuco. Autor de Conversas reservadas: “vozes públicas”, conflitos políticos em Pernambuco no tempo da Independência do Brasil, Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 2013 (Prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa, 2011) e Independências: os Estados Unidos e a República de Pernambuco de 1817 (Locus: revista de história, Juiz de Fora, 2017)

A Vila do Recife no prelúdio do século XIX era um importante centro urbano da América portuguesa. Por seu movimentado porto, considerado um dos mais expressivos do país, escoavam não apenas produtos locais, mas de parte de uma região que mais tarde se convencionou chamar de Nordeste. A vila cresceu a olhos vistos, principalmente durante a ocupação flamenga; entretanto, não era a capital da capitania que se encontrava localizada a pouca distância em Olinda, cidade fundada no século XVI pelo donatário Duarte Coelho. Apesar da crise que abatia a região, Pernambuco era uma das capitanias mais lucrativas, para desespero dos pernambucanos, que se viam constantemente cobrados para colaborar com os gastos da corte após sua instalação em 1808 no Rio de Janeiro. Os impostos cresceram, e o preço dos itens de primeira necessidade subiu. Papéis circulavam acusando a administração joanina de corrupta. Tidos como papéis sediciosos por incitar a revolução, os panfletos quando chegavam às ruas eram copiados, trocados, ditados para mais copistas, memorizados, declamados e em alguns casos adaptados para melodias populares, caindo no gosto do povo

O desconforto e o descontentamento de viver em uma sociedade de Antigo Regime, em que reinavam imoralidades, exploração, carestia, fome e miséria, ganhou corpo e se transformou em rebeldia. Neste interregno, brotou uma espécie de sociabilidade sediciosa de que participavam pessoas de vários estamentos sociais, reunidas sob a sombra da maçonaria em diversas casas, entre elas as dos ricos comerciantes Antônio Gonçalves da Cruz (Cabugá) e Domingos José Martins, do padre João Ribeiro Pessoa de Melo, de Luís José Cavalcanti Lins, e também nos conventos, onde se discutiam assuntos de natureza política, se liam e se debatiam livros proibidos e jornais estrangeiros. Pasquins eram escritos contestando a monarquia absoluta e eram sorrateiramente espalhados durante a noite pelas ruas ou afixados nos muros, causando falatórios no dia seguinte.

O sonho dos revolucionários era implantar no país uma república inspirada no modelo norte-americano com autonomia para as províncias. A carta escrita pelo Padre João Ribeiro – um dos mentores da revolução – em fins de março de 1817 para a junta paraibana, insinuava tal intenção ao explicar que a revolução não havia sido feita para os pernambucanos, sujeitando os paraibanos, potiguares e cearenses como em outros tempos. Dessa forma, evocava o espírito dominante na época em que haviam sido capitanias anexas de Pernambuco. O padre frisava que as províncias deveriam se ligar conforme seus interesses e identidade; não poderiam se separar. Pelo contrário, deveriam formar uma única república cuja capital poderia ser fundada na Paraíba, a umas 30 ou 40 léguas da costa. Ali deveriam se abrigar tanto a sede do governo como a do Congresso.

O governador Caetano Pinto de Miranda Montenegro foi informado dessas reuniões, exigiu detalhes e, com perspicácia, procurou agir com cuidado. Em muitas delas ficou visível a aversão aos portugueses. Segundo um denunciante, era tanta a ira contra os lusitanos que a notícia da morte da rainha D. Maria I, merecedora de toda a consternação por seus súditos, foi recebida com regozijo. As investigações apontaram que militares, padres e civis planejavam a revolução havia algum tempo. O governador, então, resolveu mandar prender alguns militares.

No Quartel do Paraíso houve resistência. O capitão José de Barros Lima (também conhecido como Leão Coroado, por sua resistência) reagiu, vitimando mortalmente com sua espada o Brigadeiro Manoel Joaquim Barbosa de Castro. A soldadesca reagiu, dando início naquele dia 6 de março de 1817 a uma rebelião que tomou as ruas e que contou com o apoio de muita gente, inclusive de escravos que, logo em seguida, foram recrutados como soldados. O incidente antecipou a revolução. A cadeia foi invadida e alguns prisioneiros foram soltos. Ao ouvir os disparos e a gritaria de “o Brasil está liberto de seus tiranos” e de “Viva a liberdade!”, o governador fugiu do Palácio do Colégio com familiares e amigos em direção ao Forte do Brum.

Por volta das 14 horas, quando saía do seu escritório localizado nas proximidades da Igreja da Madre de Deus, o cônsul inglês Jonh Lempriere foi surpreendido pelo repicar dos sinos e pelos disparos de armas vindos do outro lado da ponte, em Santo Antônio. Nesse dia, o cônsul teve que dormir em casa de amigos, uma vez que era imprudente transitar pelas ruas. Durante as primeiras horas da manhã do dia 7 de março, travou-se combate no Campo do Erário (hoje Praça da República) entre os rebeldes e os realistas. Com a vitória dos primeiros, a Casa do Erário (casa da Fazenda Real ou Tesouro Régio) foi ocupada e imediatamente ordens foram dadas para que a bandeira do Reino Unido fosse arriada e em seu lugar hasteada a bandeira revolucionária inicialmente totalmente branca. Uma composição procurou fixar na memória o episódio:

No Campo da Honra/ Patrício formemos,/
Que o vil despotismo/ Sem sangue vencemos.

Após a tomada do Erário, os amotinados seguiram em direção ao Forte do Brum para exigir a capitulação do governador. Este após sua deposição foi embarcado para o Rio de Janeiro. Estando o forte nas mãos dos amotinados, imediatamente, como aconteceu no Erário, a bandeira real foi arriada e em seu lugar hasteada a bandeira revolucionária azul e branco projetada pelo pintor pardo Antônio Álvares e costurada pelo capitão das milícias pardas José do Ó Barbosa e seu irmão o capitão Francisco Dornelas. Figuravam na citada bandeira uma estrela, simbolizando a República de Pernambuco, um arco-íris e, por baixo, o sol. Segundo o projeto, o número de estrelas poderia aumentar na bandeira à medida que outras províncias aderissem à revolução.

 

“Bandeira Republicana de 1817”, gravura de Antônio Alves – Biblioteca Digital Luso-Brasileira

 

Do Forte do Brum, os insurgentes se deslocaram até o Erário para eleger o Governo Provisório da República, inspirado no Diretório da Revolução Francesa, encabeçado por padre João Ribeiro Pessoa de Melo Montenegro, Domingos José Martins (comerciante), José Luís de Mendonça (advogado), Manoel Correa de Araújo (proprietário de terra) e Domingos Teotônio Jorge Martins Pessoa (militar).

O rompimento com o rei D. João VI foi formalizado no dia 10 de março de 1817, com a circulação do impresso “Preciso” escrito pelo advogado José Luís de Mendonça, que acusava o rei de ter virado as costas para a região. O folheto foi impresso aproveitando papéis timbrados existentes, porém com as armas reais de cabeça para baixo. Até pode parecer inteligível diante da falta de papel e o barateamento dos custos aproveitar os papéis existentes e nele serem impressos as mensagens da revolução a exemplo do Preciso. Entretanto, por desprezo ao emblema real, de propósito figurou-se de ponta-cabeça. Com a instalação da República, novos símbolos além da bandeira surgiram em substituição às insígnias reais, entre eles o brasão republicano que passou a ser afixado em vários documentos expedidos pelo governo. A ira contra o monarca era tamanha que seus quadros foram removidos da Câmara e de outras localidades. Em algumas ocasiões esses quadros foram mutilados ou pintados ou ainda colocados de cabeça para baixo por ordem do novo governo.

Durante o planejamento da revolução, emissários foram enviados para várias províncias, inclusive para a corte do Rio de Janeiro, a fim de conseguir apoio para o movimento. A busca de adesão tanto no Brasil quanto no exterior foi uma prática que não deixou de ser observada pelo Governo Provisório. Este mandou imprimir várias proclamações dirigidas aos habitantes de algumas províncias nortistas chamando-os para abraçar a causa. Impressas em forma de panfleto, as proclamações eram um documento solene e arma de caráter de persuasivo, uma vez que tinham intenção de chamar a atenção dos indecisos.

Os revolucionários nutriam tanto entusiasmo pela política norte-americana que, ao se dirigirem ao Presidente James Monroe em 12 de março de 1817, explicaram que o movimento revolucionário em curso em Pernambuco se inspirava na “brilhante revolução” do país dele. O jornal Norfolk Herald Office de 24 de abril, além de divulgar o teor da citada carta, explicava que os insurgentes estavam em vias de pedir apoio de Washington para que reconhecesse a nova República e para propor alianças comerciais. A maior parte da imprensa estadunidense se posicionou a favor dos pernambucanos, havendo, porém, casos como o do The Philadelphia Aurora e do Niles Weekly Register, que demonstravam aversão à monarquia, além de combater a política de D. João VI.

Com o objetivo de estreitar as relações, o comerciante Cabugá foi nomeado pelo Governo Provisório para representar a jovem República nos Estados Unidos. Se a missão Cabugá não conseguiu o reconhecimento, isso se deveu à então recente Lei de Neutralidades, sancionada pelo presidente Madison, que impedia que os Estados Unidos se envolvessem nas rebeliões libertadoras que brotavam no continente americano. Na realidade, tal política era aparente, uma vez que, além de ter assinado os acordos disfarçadamente, o governo de Washington ajudava as rebeliões sul-americanas; tanto que Cabugá assinou junto à Secretaria de Estado acordos bilaterais importantes e comprou armas e munições de guerra que foram enviados para Pernambuco para aparelhar as tropas rebeldes.

Cabugá, além da incumbência de abrir diálogo com o governo estadunidense, manteve contato com José Bonaparte, ex-soberano espanhol e irmão de Napoleão, na intenção de que ele intercedesse na contratação de soldados franceses, que outrora serviram a seu irmão, para serem engajados no exército pernambucano. José Bonaparte não viu empecilho na proposta, como também pensou que ele pudesse ajudar no plano de fuga para o irmão, que desde 1815 se encontrava prisioneiro na Ilha de Santa Helena, utilizando a Ilha de Fernando de Noronha como rota de fuga até ser conduzido para os Estados Unidos. Alguns desses soldados chegaram a desembarcar no Brasil e foram presos depois que a revolução foi abafada, o que aconteceu em maio de 1817. Foi aberto um inquérito para se conhecer com detalhes os planos revolucionários dos rebeldes e a participação daqueles homens. Concluídos os inquéritos, eles foram expulsos do Brasil.

A república se manteve durante 74 dias, fato inédito na história do mundo português. O Recife foi bombardeado por forças enviadas pelo Conde dos Arcos (D. Marcos de Noronha Brito), governador da Bahia. Com o desmonte da revolução, seguiu-se uma fase de “terror”. Muitos perderam a vida no patíbulo, outros foram atirados nas prisões, mas não sem antes serem levados à execração pública. Alguns desses prisioneiros recobraram sua liberdade em 1818, por ocasião da aclamação de D. João. Os demais, só em 1820, quando houve a Revolução do Porto, que entendia não haver crime por questões políticas.

Bibliografia Básica

LEITE, Glacyra Lazzari. Pernambuco 1817: estrutura e comportamentos sociais. Recife: FUNDAJ, 1988.
MELLO, Evaldo Cabral de. A outra Independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824. São Paulo: Ed. 34, 2004.
MOTA, Carlos Guilherme. Nordeste 1817: estruturas e argumentos. São Paulo: Perspectiva, 1972.
MOURÃO, Gonçalo de Barros Carvalho e Mello. A Revolução de 1817 e a História do Brasil: um estudo de História Diplomática. Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 2009.

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