João Cândido, crioulão alto, forte, durão, líder ostensivo da revolta dos marinheiros, fazendo bordados? Quase impensável. Mas realidade. Dois bordados feitos por ele encontram-se no Museu Municipal Tomé Portes del Rei, em São João del Rei. Um tem por título “O adeus do marujo”, outro, “Amôr” [sic]. Um terceiro, que se perdeu, trazia o nome do encouraçado Minas Gerais.
Nenhum biógrafo de João Cândido, nem mesmo Edmar Morel, que com ele conviveu vários anos, menciona sua habilidade de bordador. Mas o fato não causaria espécie em quem conhecesse a velha Marinha. João Cândido era marinheiro da época em que muitos navios ainda usavam vela. Fora gajeiro, isto é, encarregado de mastro. Lidar com a complicada cordoalha que sustentava e movimentava as velas, trançar, dar nós de todos os tipos, costurar velas, era com ele mesmo. Daí a bordar era apenas um passo. As longas horas de inatividade na prisão forneceram a oportunidade para o exercício do hobby.
Os bordados foram feitos no pior momento da vida de João Cândido. Preso em 13 de dezembro de 1910, foi levado, às vésperas do Natal, com 17 companheiros, para uma solitária na ilha das Cobras. Na noite de Natal, todos os prisioneiros, menos João Cândido e um soldado naval, morreram sufocados pela falta de ar e pela poeira causada pelo ressecamento da cal com que tinham lavado a cela. O marinheiro ficou duramente marcado pelo trágico episódio e disse mais tarde que a cena da agonia daqueles homens jamais saiu de seus olhos. Removido em 18 de abril de 1911 para o Hospital Nacional de Alienados, os médicos registraram seu profundo abatimento.
Os bordados foram feitos em toalhas de rosto, após a morte dos companheiros e antes da remoção para o hospital. Traumatizado pela tragédia e sentindo-se injustiçado pela traição do governo, João Cândido deve ter encontrado neles um meio de extravasar sua dor.
“O adeus do marujo” traz, na parte de cima, do lado esquerdo, as letras JCF, iniciais de João Cândido Felisberto. No centro, ainda em cima, está o título “O adeus do marujo”. À direita, a palavra “Ordem”. No centro da toalha, duas mãos se cumprimentam, atravessadas por uma âncora. Circundando as mãos e parte da âncora, dois ramos que lembram os de café e tabaco da bandeira imperial e das armas da República. Abaixo da âncora, o nome F. D. Martins, referência a Francisco Dias Martins, comandante rebelde do cruzador Bahia. Embaixo, do lado esquerdo, a palavra “Liberdade”; do lado direito, a data “XXII de novembro de MCMX”, dia do início da revolta.
A leitura mais óbvia do bordado é que ele retrate a despedida de João Cândido e Francisco Dias Martins. Este era marinheiro de primeira classe, paioleiro do cruzador Bahia. Tinha apenas 21 anos, alguma educação, e foi por muitos considerado a cabeça pensante da revolta. Ele a teria preparado em várias reuniões realizadas nos navios e em uma casa de cômodos da rua dos Inválidos. Esteve preso na ilha das Cobras com João Cândido e estavam sempre juntos. Aparentemente, mantiveram relações cordiais após a libertação de ambos em 1912.
A dificuldade com essa leitura é que uma das mangas é branca e tem no pulso botões e galões de almirante, ao passo que a outra é de simples marinheiro. Estaria João Cândido se representando como almirante, posto a que a imprensa o promovera? No regresso do Minas Gerais da Europa, houve a festa tradicional da passagem da linha do equador em que um marinheiro, geralmente o mais respeitado a bordo, é escolhido para interpretar Netuno, a divindade que governa o mar, e presidir a festa. Escolhido para o papel, João Cândido vestira um uniforme branco com os galões de comandante nas mangas. Abatido como estava após a prisão, seria compreensível que se consolasse da desgraça com a fantasia do breve momento de glória vivido na passagem do equador.
Há uma estranheza no desenho. Registrar a palavra “Liberdade” é o que se esperaria de um rebelde. Durante a revolta ela foi usada muitas vezes. Em um dos manifestos ao Ministro da Marinha, os revoltosos “imploram de S. Excia. a Liberdade”. Uma foto dos paioleiros do São Paulo, publicada pela revista Careta, mostra um marinheiro segurando uma faixa com um “Viva a liberdade”. No uso dessa palavra, era clara a referência à escravidão a que muitos marinheiros ainda se sentiam reduzidos. Alguns tinham sido escravos ou eram filhos de escravos. Pedir o fim da chibata era pedir o fim da escravidão, a instauração da liberdade. No mesmo manifesto, exprimiam o desejo de que a Marinha fosse “uma Armada de cidadãos e não uma fazenda de escravos que só têm dos seus senhores o direito de serem chicoteados”.
Mas, e a palavra “Ordem”? Como entendê-la na voz — ou no bordado — de um rebelde? Há aí uma indicação da complexidade da alma de João Cândido. Nada em sua biografia aponta para o rebelde de 1910. Ele era protegido do almirante Alexandrino de Alencar. Quando preso, afirmou que nunca sofrera o castigo da chibata. Na Inglaterra, quando aguardava os últimos retoques no encouraçado Minas Gerais, encomendado pela Marinha do Brasil, mandara pintar a carvão o perfil de Nilo Peçanha, então presidente da República (o ministro da Marinha era Alexandrino). De volta ao Rio, foi recebido por Nilo Peçanha para a entrega do retrato. Na revolta do Minas Gerais, só apareceu no convés quando o navio já tinha sido tomado pelos rebeldes, ao custo das vidas de três oficiais e alguns praças. Sua conduta durante todo o movimento foi de moderação, resistindo sempre às pressões dos marinheiros mais radicais. Após a anistia, entregou aos oficiais uma lista dos companheiros mais exaltados para que fossem desembarcados. Durante a revolta do Batalhão Naval, deu várias demonstrações de lealdade ao governo. Tudo isso, mais a convivência diária com a disciplina de bordo, faziam dele também um homem da ordem, como o Bom Crioulo do romance de Adolfo Caminha. Quinze anos de Marinha não podiam deixar de marcar profundamente seus valores e seu estilo de vida. Sintomaticamente, no dia 26, depois de arriada a bandeira vermelha da revolta, o Minas Gerais ainda ostentava uma faixa branca com os dizeres “Ordem e Liberdade”. O bordado reproduzia fielmente a faixa exibida durante a revolta.
O outro bordado é ainda mais intrigante. Vêem-se duas pombas que sustentam pelo bico uma faixa com a inscrição “Amôr”. Abaixo da inscrição, um coração atravessado por uma espada jorra rubras gotas de sangue. Dos dois lados do coração, flores, borboletas e um beija-flor. Não há nomes nem datas. O desenho é ingênuo e tosco como no primeiro bordado. Mas a composição é mais límpida e o uso do vermelho lhe confere maior dramaticidade. O coração de João Cândido sangrava por alguém. Sobre quem seria esse alguém, pode-se apenas conjeturar.
Há referência a um amor de João Cândido durante o período de sua prisão. Tratava-se de uma viúva, residente à rua da Passagem, com quem ele se teria encontrado algumas vezes quando estava internado no Hospital de Alienados, aproveitando-se da tolerância dos enfermeiros. Mas, nesse caso, o romance com a viúva teria acontecido depois dos bordados.
Seria Dias Martins? Não parece provável. Sabe-se que a pederastia era generalizada na Marinha. O próprio João Cândido foi acusado da prática, embora sem nenhuma evidência. Poderia facilmente enquadrar-se no modelo do Bom Crioulo. Mas o típico amor de marinheiro, segundo se depreende do romance de Adolfo Caminha e de depoimentos da época, era o de um veterano, um conegaço, como se dizia, ou de um oficial, por um jovem grumete, em geral um “menino bonito”. O amor de marinheiro envolvia relação de hierarquia de função, de idade e de experiência. Como lembra Gilberto Freyre, o conegaço era um protetor, um tutor, um pai, além de amante, do jovem grumete.
Embora fosse Dias Martins um jovem de 21 anos, de boa aparência, simpático, diante de quem os próprios juízes do Conselho de Guerra se enterneceram, as relações entre os dois não poderiam ter tido a característica de amor de marinheiro. Apesar da pouca idade e da aparência modesta, Dias Martins fora o organizador da revolta e era superior aos companheiros em capacidade intelectual. Além disso, era marinheiro de primeira classe, como João Cândido, igual na hierarquia. Não consta também que os dois tivessem servido juntos.
Seria algum grumete do Minas Gerais? É uma possibilidade. O desenho, apesar de lidar com um tema geral — o amor —, não deixa de ser “marinheiro”. João Cândido deve ter-se inspirado nas representações de Nossa Senhora das Dores, em que o coração de Maria aparece atravessado por punhais. Mas ele amarinheirou a representação, substituindo o punhal por uma espada de oficial da Marinha. Ao fazer o desenho, poderia estar pensando em algum Aleixo, o belo grumete que transtornou a vida do Bom Crioulo.
A propósito, é intrigante a presença de um marinheiro jovem e bem afeiçoado ao lado de João Cândido em fotos de jornais e revistas da época da revolta. Numa das fotos, ele está ao lado de João Cândido quando este lê no Diário Oficial o decreto de anistia. É sempre apresentado como “assistente” ou “imediato” do chefe da revolta. Seu nome nunca é revelado, nem mesmo na legenda das fotos. Mais tarde, quando João Cândido já estava preso, ele aparece no noticiário pedindo baixa da Marinha. Mesmo nesse momento seu nome não aparece. É apenas o “imediato” de João Cândido. Seria o seu Aleixo? Ou o amor de João Cândido era simplesmente uma mulata do cais do porto?
Mas, afinal, talvez não importe tanto saber quem sangrou o coração do Almirante Negro. O mais importante é o que os bordados nos mostram: um grande coração que vertia sangue por todos os lados, pela saudade do Minas Gerais, pela despedida de um marujo amigo, pela perda de uma paixão secreta. Os bordados revelam ainda que, do fundo de sua dor, João Cândido retirava corações, flores borboletas, beija-flores. Em sua forma ingênua e espontânea, em seu rico simbolismo, as toalhas de São João del Rei nos bordam um João Cândido maior do que o construído por seus detratores e mais autêntico e humano do que o mito em que o pretendem transformar seus admiradores.
(Publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, ano 1, no. 9, Abril de 2006, p 26-29)
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