Em 22 de novembro de 1910, os moradores da cidade do Rio de Janeiro acordaram sobressaltados. Tiros de canhão eram ouvidos por todos os lados. O que estaria ocorrendo dessa vez? Mais uma tentativa de golpe de Estado? Revoltas contra o aumento das passagens dos bondes? Uma nova vacinação obrigatória? Ou alguma outra atitude impopular do governo? Os rumores foram desfeitos na manhã seguinte, quando os principais jornais do Brasil e do mundo passaram a publicar as notícias da Revolta dos Marinheiros.
A Marinha de Guerra havia encomendado diversos navios aos estaleiros ingleses de Newcastle, como parte do seu projeto de reaparelhamento naval, e, em 1910, chegaram os modernos e poderosos encouraçados: Minas Gerais e São Paulo. Foram esses dois navios e mais duas embarcações – Deodoro e Bahia – que os marinheiros utilizaram para exigir o cumprimento das suas reivindicações. Aos gritos de “Viva a liberdade” e “Abaixo a chibata”, os amotinados foram matando e expulsando oficiais, sargentos e marinheiros contrários ao movimento. Logo após, apontaram os enormes canhões contra a cidade e atiraram, vitimando pessoas em duas residências.
As alternativas de contragolpe eram nulas. Sob a liderança de João Cândido Felisberto e Francisco Dias Martins, os marinheiros, negros em sua imensa maioria, mostraram-se habilidosos na condução das embarcações e na sobriedade com que encararam a luta por melhores condições de trabalho. O uso de bebidas, a prática dos jogos de azar e diversas outras atividades foram proibidas. Afinal, eles estavam planejando essa revolta havia meses e não poderiam comprometer seu sucesso.
Hermes da Fonseca fora empossado presidente apenas sete dias antes. Com a surpresa do ataque e a dimensão da organização, o marechal se viu obrigado a negociar, sob a pressão de retirar a capital federal da República — e o seu próprio governo — da estranha condição de reféns de centenas de marinheiros amotinados.
Os debates no Congresso foram fervorosos e puseram em lados opostos os senadores Rui Barbosa e Pinheiro Machado. O primeiro defendia a votação de um projeto imediato de anistia e o segundo entendia que tal direito só deveria ser satisfeito caso os marinheiros primeiro entregassem as armas. Rui Barbosa foi vitorioso, e a anistia encerrou a revolta dos marinheiros naquele mês de novembro. Pensaram os amotinados que os debates no Poder Executivo e a cobertura jornalística nacional e internacional seriam suficientes para terminar com seus problemas. Afinal, haviam conseguido revelar a humilhante realidade a que eram submetidos no interior da armada por seus oficiais superiores.
No entanto, em 27 de novembro, os oficiais ordenaram o desarmamento dos poderosos navios e, no dia seguinte, começaram a expulsar dezenas de ex-amotinados, desrespeitando a anistia. A tensão entre marinheiros e oficiais aumentou, e os líderes já não mais conseguiam comandar todos os colegas. Dias depois, em 9 de dezembro do mesmo ano, outra revolta estourou no navio Rio Grande do Sul e no Batalhão Naval da ilha das Cobras. O navio foi logo dominado pelos oficiais, e o Batalhão Naval passou a ser brutalmente bombardeado pelas forças do Exército. Sendo um alvo fixo e sem a liderança e a organização existentes em novembro, os amotinados do Batalhão Naval foram sendo mortos e feridos ao longo daquela intensa noite. Não há dados que revelem a quantidade de mortos, mas alguns jornais chegaram a noticiar mais de trezentos.
Tanto os marinheiros de novembro quanto os de dezembro foram sendo presos. Dezesseis deles morreram asfixiados numa masmorra da ilha das Cobras. Mais de cem outros foram enviados para o Acre, junto a mais de duzentos presos e presas da Casa de Detenção. Lá foram obrigados a trabalhar nos seringais e na construção da ferrovia Madeira-Mamoré. João Cândido foi um dos dois sobreviventes da cela da ilha das Cobras. Passou dois anos preso, incomunicável, e só conseguiu sua liberdade após um arrastado processo militar, que o acusava de participação no movimento de dezembro.
Raros eram aqueles que desejavam ser marinheiros. Os homens eram recrutados à força nas ruas ou prisões. Havia também o alistamento de menores pobres, órfãos e desvalidos que eram enviados por pais, juízes e tutores. O governo incentivava esse tipo de alistamento através do pagamento de prêmios aos responsáveis dos garotos. Entre os receios que afastavam voluntários para o serviço estavam o tempo de serviço militar obrigatório (entre nove e quinze anos), o baixo salário e as violências sexuais. No entanto, as formas de disciplinamento usadas pelos oficiais eram o que maior aversão gerava entre os possíveis candidatos.
Há diversos casos de cem, 250 e até quinhentas chibatadas num único dia. Embora o castigo da chibata em marinheiros seja facilmente associado à recém-abolida escravidão no Brasil, é importante ter em mente que esse tipo de disciplinamento era comum na maior parte das forças armadas no mundo (Inglaterra, Estados Unidos, Rússia). Mas não havia maiores questionamentos por parte dos marinheiros aos castigos considerados justos e sem excessos e, até a República, não ocorreram revoltas contra os castigos na armada
Com o fim da guerra do Paraguai, a Abolição e as mudanças no pensamento ilustrado, esse tipo de castigo começou a ser contestado. Além disso, um outro fato mexeu com as normas de punição. No segundo dia da República, o ministro da Marinha, Eduardo Wandenkolk, decidiu abolir os castigos corporais a bordo dos navios. Essa decisão não foi gratuita. Um ano antes, os marinheiros haviam conseguido pôr as ruas do Rio de Janeiro em estado de guerra, quando atacaram as forças da polícia, devido a antigas questões entre as duas corporações. O barulho foi tão grande e a oposição explorou tanto a situação pelos jornais que a princesa Isabel teve de sair de Petrópolis para dar um basta àquela situação. Wandenkolk estava nas ruas do Rio nesse dia e muito certamente notou a importância de ter os marinheiros avessos à monarquia e inclinados às iniciativas da jovem República.
No entanto, cinco meses após o fim dos castigos físicos, os oficiais passaram a pressionar Wandenkolk, que instaurou um novo regime de punição, mais rigoroso que o anterior, resgatando inclusive o castigo de chibata. As primeiras revoltas de marinheiros começaram a estourar em estados como Rio de Janeiro, Mato Grosso e Rio Grande do Sul ainda na década de 1890. A liderada por João Cândido, no entanto, foi a mais organizada, alcançou maior sucesso que as anteriores e demonstrou a consciência a que os marinheiros haviam chegado.
Não era somente uma revolta contra a chibata. Os marinheiros expuseram os problemas e apresentaram propostas concretas de mudança. De um lado, a chegada dos novos navios exigiu maior quantidade de homens, sobrecarregando o trabalho dos existentes. As irritações e os castigos aumentaram consideravelmente. Além disso, os oficiais receberam aumentos de salários, mas os marinheiros não tiveram a mesma sorte. O aumento dos salários e a criação de uma nova tabela de serviços, que diminuísse o excesso de trabalho, foram duas reivindicações reveladoras dessa insatisfação.
Por outro lado, exigiam o fim dos castigos físicos. Um código penal permitia tal punição, mas diversos oficiais castigavam mais que o ratificado nos seus parágrafos, impiedosamente. Daí exigirem a mudança do código penal e a demissão desses oficiais. Mas eles também sabiam que mudanças no comportamento dos marinheiros eram necessárias. Havia muitos colegas seus que se embriagavam com freqüência, implicavam com colegas, roubavam objetos do fardamento, trapaceavam no jogo. Eram essas atitudes que geralmente levavam o marinheiro indisciplinado e outros envolvidos por ele a sofrer castigos físicos, descontos de salários, rebaixamento de posto. Assim, exigiram “educação” para os marinheiros indisciplinados. As lideranças certamente discutiram estes problemas nas reuniões preparatórias para a revolta de novembro de 1910.
Em 1911, a maior parte dos envolvidos tinha sido desligada, morta ou fugira. Anos depois da revolta, os resultados começaram a aparecer. Em 1923, a Escola de Aprendizes da Bahia teve todas as 47 vagas preenchidas rapidamente. No entanto, o oficial comandante dessa instituição começou a reprovar diretamente todos os menores negros, dando lugar aos brancos. Segundo ele, esta era uma seleção “natural”. Parte dos oficiais, enfim, desejava embranquecer a armada.
Devido ao racismo na Marinha, negros não poderiam ser oficiais. Mesmo que distantes do oficialato, os marinheiros de 1910 desejaram construir uma nova realidade capaz de alavancar suas carreiras. Numa cidade onde a disputa por empregos no mercado de trabalho criou e recriou conflitos por nacionalidade, cor e gênero, os amotinados de 1910 tentaram garantir um espaço no qual assegurassem dias mais felizes para suas vidas.
(Publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, ano 1, no. 9, Abril de 2006, p 18-21)

Publicado em Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, ano 1, no. 9, p. 36-37, Abril de 2006

Publicado em Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, ano 1, no. 9, p. 36-37, Abril de 2006
Trecho da história bem esclarecedor mas, como é costume,as EP (pública e provada) com a anuência do MEC sempre omitem qdo não interessa aos burgueses “donos” do Estado…