Revista Impressões Rebeldes

CONTINUAMOS AQUI

Povos indígenas partiram para a guerra contra a conquista portuguesa. Sua habilidade para resistir nessa história de lutas ainda está bem viva no Piauí.

José Guilherme, cacique do povo Tabajara e figura central na luta pelo reconhecimento dos povos indígenas do Piauí. Foto: Moura Alves
21 de dezembro 2022 Ano 10, n. 2 (jul-dez), 2022

Fernanda Aires Bombardi

Doutoranda em História Social pela USP, professora do IFPA e co-criadora da página História Indígena Hoje (Facebook e Instagram). É autora de “Pelos interstícios do olhar do colonizador: descimentos de índios no Estado do Maranhão e Grão-pará (1680-1750).” Dissertação (Mestrado em História Social), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.

Acessar Lattes

Até agosto de 2020, não se reconhecia oficialmente a existência de povos indígenas no estado do Piauí. Foi só com a promulgação da Lei 7.389 que foi possível estabelecer os parâmetros para se demarcar a comunidade Serra Grande dos Kariri, no município de Queimada Nova, localizado no sudeste do Estado. A importância desse reconhecimento fica clara nas palavras de Francisca Pereira, cacica da comunidade: “Enquanto uma terra não é demarcada, [os indígenas que nela habitam] não possuem direito à educação, nem saúde e nenhum outro” (PEREIRA apud COSTA, 2020).

Um longo processo histórico de genocídio e etnocídio contribuiu decisivamente para que os povos indígenas do Piauí chegassem até 2020 com a sua existência negada pelo Estado. Em finais do século XVII, quando uma colonização mais sistemática se iniciava na capitania do Piauí, há registro de numerosas populações indígenas habitando os rios Parnaíba, Canindé, Gurguéia, Uruçuí Preto, entre outros. 

Nesse período, uma frente de expansão vinda da Bahia resultou na criação da vila de Mocha que, em 1718, tornou-se a sede do Piauí, momento em que a capitania estava sob jurisdição do antigo Estado do Maranhão e Grão-Pará. Segundo o padre Miguel de Carvalho, em relato de 1697, a colonização do Piauí estava impossibilitada pela resistência dos povos indígenas

[…] alguns moradores meteram lá gados e se retiraram com medo e os que moram nas fazendas acima ditas andam sempre em contínua guerra e muitos perderam as vidas nas mãos daqueles bárbaros por cuja causa se não tem aumentado muito esta povoação pelas beiras daqueles famosos rios Parnaíba e Gurguéia […]. Esta abundância faz com que naquela terra habitem muitos tapuias, os mais bravos e guerreiros que se acharam no Brasil […] (CARVALHO, 1697, 386).

Para fazer frente a essa resistência, os colonizadores se valeram de dois dispositivos legais para submeter e integrar os povos indígenas do Piauí. O primeiro dispositivo eram as chamadas guerras justas, que poderiam ser realizadas sob a justificativa de que determinado povo estava impedindo a pregação do evangelho, estava realizando ataques contra vassalos do rei ou havia quebrado pactos de paz e amizade previamente celebrados com o colonizador. Os prisioneiros dessas guerras eram tidos como escravos e vendidos aos moradores. O segundo eram os descimentos, que consistiam em acordos firmados entre grupos indígenas e missionários ou diretores dos aldeamentos para que aqueles saíssem de seus territórios e aceitassem ser evangelizados por religiosos em aldeamentos próximos às vilas portuguesas.

O conflito armado, nas primeiras décadas de colonização, foi a principal estratégia que garantiu a colonização do Piauí. Além das frequentes guerras que estavam sendo promovidas nas capitanias do norte do Estado do Brasil, denominadas de Guerras dos Bárbaros, várias outras eram também organizadas a partir do Estado do Maranhão e Grão-Pará. 

Isso porque na capitania do Piauí e no sul da capitania do Maranhão se desenvolveu uma economia fortemente voltada à pecuária. Uma das características dessa atividade era a necessidade de extensos pastos e o baixo emprego de mão de obra. Isso fez com que, em um primeiro momento, a política colonial se centrasse em expulsar os povos originários de suas terras, sem grandes esforços de incorporá-los por meio da criação de missões religiosas. Quando praticada, essa incorporação se deu, até meados do século XVIII, prioritariamente por meio da escravização das populações indígenas. No Piauí, como dissemos, essas escravizações resultavam das guerras justas que eram sistematicamente realizadas principalmente contra aquelas populações indígenas que resistiam mais fortemente à colonização. Os indígenas prisioneiros dessas guerras eram considerados escravos e, portanto, eram vendidos aos colonos portugueses para trabalhar em suas casas, fazendas e plantações. Assim, a guerra era um mecanismo útil tanto para expulsar os indígenas dos seus territórios quanto para arregimentar mão de obra indígena escravizada.

Tal era o empenho de despovoar a região de sua população indígena que, na década de 1730, o governador do Estado do Maranhão e Grão-Pará Alexandre de Souza Freire solicitou ao rei que este autorizasse a realização de uma grande guerra contra todos os “índios do corso” do Piauí (aqueles considerados mais hostis aos portugueses). O pedido, por não ser previsto em lei, foi negado pela metrópole, mas só a sua existência demonstra os interesses de destruição das populações originárias por parte do governo local, o que, seguramente, resultou em ações nesse sentido. 

Relataremos a seguir algumas das guerras realizadas contra os indígenas do Piauí que ilustram bem os objetivos desses conflitos. Em 1737, denúncias foram apresentadas ao rei solicitando a organização de uma guerra contra os acroás-açú, acroás-mirim, timbiras e guegues por terem atacado os moradores das Aldeias Altas, Parnaguá e campos do Gilbués, numa extensão de 900km. Esses grupos eram acusados de serem responsáveis pelo despovoamento de “muitas fazendas de gado, e com os seus repetidos ataques, de [terem] feito muitas mortes, queimado muitas fazendas, destruído e roubado cavalos e gados vacuns com grande ruína e desarranjo dos mesmos vassalos” (ATA, 1737). 

Em 1739, o rei autorizou a formação de um arraial de guerra no rio Parnaguá, ao sul do Piauí. A expectativa era que a guerra durasse seis meses e, para tanto, o governador pediu que os moradores doassem mantimentos para abastecer a tropa, composta por 60 soldados de infantaria paga e mais 450 indígenas. Apesar dos altos investimentos portugueses, as estratégias de combate e resistência dos indígenas eram muito eficientes. Segundo o religioso frei Braz de Santo Antônio, “sabendo o dito gentio que qualquer terra ou fazenda está reforçada de armas, vai fazer o seu projeto por outras partes”, já que eram acostumados a atacar os colonos quando estavam “solitários, dispersos ou desarmados” (ATA, 1738).

Em virtude disto, a guerra durou bem mais do que o esperado, tendo a resistência indígena obrigado os portugueses a mudarem de estratégia. Em 1743, o capitão da infantaria recebeu ordens do governador de oferecer acordos de paz aos nativos, prometendo-lhes terra e proteção contra ataques dos portugueses ou outros grupos indígenas inimigos. 

Os guegues, além de estarem sendo atacados pelos portugueses, estavam também em guerra contra os acroás-açú, conflito provavelmente motivado por disputas territoriais. Por isso, foram os primeiros a aceitar a proposta. Assim, mais de dois mil guegues teriam se deslocado ao arraial na expectativa do envio de mantimentos para se aldearem. 

Com a tropa fortalecida com os guegues recém-descidos, o capitão realizou novo ataque contra os acroás-açú que estavam habitando a terra que anteriormente era de domínio dos guegues. Para evitar outro ataque, os acroás-açú propuseram um acordo de paz, estipulando, contudo, que se os portugueses tivessem meios para sustentá-los por um ano “viriam para os confins desta povoação, porque dentro daquele espaço plantariam os seus ranchos de forma que se sustentassem dali em diante” (SILVEIRA, 1735).

Com o estabelecimento do acordo, em 1746 mais de oito mil acroás chegaram ao arraial, exigindo o fornecimento de enorme quantidade de alimentos para sustentar tanto os acroás quanto os guegues que permaneciam no local. A conhecida rivalidade entre os dois grupos e a falta de recursos para sustentar milhares de indivíduos culminaram na sublevação dos guegues, que mataram o missionário capucho da Conceição, que os estava doutrinando, fugindo, em seguida, pelos interiores do Parnaguá. 

Diante das ações dos guegues relatadas pelos portugueses, é difícil supor quais eram as suas intenções ao aceitarem ir para o arraial. Tinham o real propósito de serem aldeados ou estavam somente aceitando o acordo para boicotar a realização de novos ataques (tanto dos portugueses quanto dos acroás) e, ao aguardar que a tropa portuguesa se enfraquecesse, poderem se sublevar? Apesar disso, o que fica claro é que, ao perceberem as condições a que estavam sendo submetidos e o tempo de demora para que as promessas do comandante da expedição fossem cumpridas, resolveram romper com os portugueses e, a partir de então, retomar os ataques. Os acroás seguiram na mesma direção.

Entre 1747 e 1750, foram reportadas dezenas de denúncias sobre os ataques que os guegues, em aliança com timbiras e acroás, estavam promovendo não só no sul do Piauí, como também nas ribeiras do rio Itapecurú e Parnaíba. Nesse momento, as rivalidades entre guegues e acroás foram suplantadas para garantir uma eficiente resistência contra as tropas portuguesas. Após algumas tentativas de ataques mal sucedidos, somente em 1763 foi organizada uma nova guerra contra esses grupos. Duas tropas foram destacadas. A primeira partiria de Oeiras e a segunda do rio Uruçuí, resultando, no ano seguinte, na captura de 143 prisioneiros e na morte de inúmeros indígenas.

Diante da ofensiva, os guegues aceitaram mais uma vez se aldear. Em 1764, chegaram à cidade de Oeiras 400 guegues para serem congregados no aldeamento São João de Sande (atual cidade de Tanque do Piauí). Em 1772, a população desse aldeamento não passava de 252 indivíduos. Isso se deve ao fato de muitos meninos e meninas terem sido retirados do aldeamento e entregues aos moradores para trabalharem como aprendizes de ofícios mecânicos. 

Em 1771, uma nova guerra foi declarada e uma tropa foi expedida da vila de Jerumenha com 150 homens, dos quais 50 eram guegues do aldeamento São João de Sande, para combater os acroás. As três entradas realizadas pela expedição conseguiram capturar 124 timbiras e 74 acroás. Um grupo de acroás-açú, após os ataques, estabeleceu acordo de descimento junto ao comandante da tropa. Cem indígenas foram descidos nesse ano e os demais se comprometeram a fazer o mesmo depois. Assim como acontecera com os guegues, parte dos acroás descidos (principalmente crianças) foi logo distribuída aos moradores.

A retirada de crianças e jovens de suas famílias tinha como intenção enfraquecer os laços internos das comunidades indígenas, além de permitir que fossem submetidos a jornadas de trabalho compulsório ao entregá-los aos colonos. Tal política se revelaria como uma escravização velada, tendo em vista que a escravidão indígena foi abolida em toda a América portuguesa em 1755. 

Ainda em 1771, alguns guegues, que não haviam sido aldeados em 1764, enviaram seis homens para selar um novo acordo de paz, organizando o descimento de 434 indivíduos. Em 1772, há notícia de que 876 acroás estavam na cidade de Oeiras, com a intenção de se aldearem. No ano seguinte, a missão de São Gonçalo do Amarante (localizada no atual município de Regeneração) já estava estabelecida com indígenas acroás. 

O pequeno número de acroás presente nos últimos relatos destoa bastante com os oito mil acroás que se instalaram no arraial quase 30 anos antes. Essa discrepância pode ser explicada por um acentuado decréscimo demográfico, migração e dispersão territorial fruto das guerras com portugueses e com outros grupos indígenas, que passaram a disputar um território cada vez menor. Mas também pode indicar um silenciamento proposital na documentação, que buscava esconder a existência de acroás que não concordaram em residir na nova missão. Essa hipótese é reforçada pelo fato de a maior parte do grupo ter fugido logo após o descimento.

Os motivos dessa fuga podem ter sido vários. Mas acreditamos que, assim como os guegues fizeram na década de 1740, os acroás aceitaram o acordo de descimento com vistas a conseguir um armistício até que a tropa portuguesa fosse dissolvida, possibilitando que uma fuga coletiva pudesse ser realizada sem a chance de ter de enfrentar uma tropa organizada. 

Dessa forma, podemos observar como vários povos indígenas jogaram com a condição de aliado e inimigo, presente na legislação indigenista colonial, para conseguir criar estratégias de guerra e resistência às investidas do colonizador. Diante da iminência de ataques de tropas portuguesas, grupos nativos estabeleciam acordos de descimentos para, depois de um tempo, já com a tropa desgastada e enfraquecida, organizarem novas sublevações e fugas coletivas. A união de grupos rivais, como os acroás e os guegues, para combater os portugueses, demonstra também como inimizades poderiam ser superadas com vistas a fortalecer a defesa indígena sobre os seus territórios. 

Mas, como vimos, as constantes guerras, deslocamentos compulsórios, fugas coletivas, escravização e exploração do trabalho indígena foram responsáveis pelo decréscimo demográfico, desagregação e dispersão territorial de vários povos. Essa parece ser a chave para entender as dinâmicas do etnocídio e genocídio pelos quais passaram os povos indígenas do Piauí colonial, mecanismos esses que permitiram as insistentes tentativas de apagar a sua existência até o período atual. 

Em movimentos de sublevação contemporânea, em diversas localidades do Piauí, os Kariris de Serra Grande, os Guegues do Sangue, os Gamelas de Santa Filomena, os Tabajaras de Piripiri ou de Lagoa de São Francisco, entre outros, vêm reocupando seus territórios, reconectando suas histórias, reforçando seus vínculos com a sua ancestralidade e reivindicando o seu reconhecimento como povos originários do Piauí. Suas histórias se cruzam, muitas vezes, em processos de (re)emergência étnica e se fortalecem com a construção de inovadoras estratégias de guerra contra as políticas colonizadoras de silenciamento, que, longe de terem ficado no passado, seguem ativas até o presente. 

 

Bibliografia Básica

BOMBARDI, Fernanda Aires. Jogos de alianças e inimizades: guerras justas, descimentos e políticas indígenas no Piauí colonial. In: LIMA, Nilsângela Cardoso. (Org.). Páginas da História do Piauí colonial e provincial. Teresina: EDUFPI, 2020, p. 41-70. Disponível em: <https://educapes.capes.gov.br/handle/capes/570203>

COSTA, Glayson. Índios Cariri são o 1º povo indígena com território demarcado no PI; ‘primeiros habitantes das terras’. G1, 10 set. 2020. Disponível em: < https://g1.globo.com/pi/piaui/noticia/2020/09/10/indios-cariri-sao-o-1o-povo-indigena-com-territorio-demarcado-no-pi-primeiros-habitantes-das-terras.ghtml> 

MELO, Vanice Siqueira de. Cruentas Guerras: índios e portugueses nos sertões do Maranhão e Piauí (primeira metade do século XVIII). Dissertação (Mestrado em História Social da Amazônia), Universidade Federal do Pará, Belém, 2011. Disponível em: < http://repositorio.ufpa.br/jspui/handle/2011/4593>

MOTT, Luís. Piauí Colonial: População, economia e sociedade. Teresina: Projeto Petrônio Portella, 1985. 

OLIVEIRA, João Pacheco de. Uma etnologia dos “índios misturados”? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais. MANA, Rio de Janeiro, n. 4, p. 44-77, 1998. Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93131998000100003>

Fontes Impressas

CARVALHO, Padre Miguel de. “Descrição do sertão do Piauí…” [1697]. In: ENNES, Ernesto. As guerras nos Palmares. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1938.

Fontes Primárias

ATA de reunião da Junta das Missões. 12 de julho de 1737. [anexo]; ATA de reunião da Junta das Missões [anexo]. 14 de julho de 1738. “Consulta do Conselho Ultramarino ao rei D. João V”. 15 de março de 1740. Arquivo Histórico Ultramarino (Avulsos), Piauí, Cx. 3, Doc. 157.

SILVEIRA, Mathias Pinheiro da. Carta do ouvidor geral do Piauí. 20 de agosto de 1745. [Anexo]. “Consulta do Conselho Ultramarino ao rei D. João V”. 24 de julho de 1745. Arquivo Histórico Ultramarino (Avulsos), Piauí, Cx. 4, Doc. 235.

Comentários

  1. Suzy Maciel disse:

    Texto riquíssimo! Parabéns pelo trabalho.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Leia também

    Imprimir página

Compartilhe