A corrupção é um fenômeno social que perpassa sociedades e épocas. Desde a antiguidade clássica ela tem sido debatida e, nos últimos anos, esse problema voltou ao interesse público, especialmente por envolver a alteração do quadro político-partidário de algumas nações. Entretanto, não devemos nos esquecer que casos de corrupção envolvendo pessoas poderosas do poder no Brasil e no mundo foram frequentes, alguns até com revezes interessantes. A historiografia recente que estuda a corrupção e os tratos ilícitos dos altos administradores da América portuguesa, se debruça em sua grande maioria, sobre as redes clientelares em conflito e as artimanhas de cada grupo no afã de conseguir cada vez mais benefício material e político. Evidencia-se que a correlação entre corrupção e redes clientelares dos dignitários monárquicos tem sido considerada direta em muitos casos, seja na América portuguesa, seja na hispânica. A seguir, exemplificamos três casos notórios à luz dessa perspectiva: Jerônimo de Mendonça Furtado, Sebastião de Castro e Caldas e D. Pedro de Miguel de Almeida (Conde de Assumar).
O governador de Pernambuco, Jerônimo de Mendonça Furtado (1664-1666), apelidado de Xumbergas, foi deposto por uma junta de vereadores e oficiais da Câmara de Olinda. Os revoltosos alegavam que o governador havia atuado como um tirano, interferindo no funcionamento do judiciário, executando dívidas, sequestrando bens e, pior ainda, embolsando parte do donativo da Rainha da Inglaterra e mais o montante das contribuições para a negociação de paz com a Holanda. Além disso, o acusaram de cunhar moeda em sua casa e de conivência com devedores da fazenda real. A acusação mais grave foi a de estar em conluio com franceses para entregar a terra ao rei da França.
Em termos de defesa de interesses particulares e sua rede clientelar, constatou-se que Xumbergas estava associado com seu irmão, Luís de Mendonça, em vários negócios, encontrando-se em sua casa ouro, prata e jóias. Isso tudo auferido, segundo os acusadores, com o tráfico de escravos que o irmão fazia com Angola. O irmão também se metia em questões de heranças e adiantava cobranças de dívidas de comerciantes que constantemente viajavam. Ao mesmo tempo, seu irmão se envolvia em desavenças com o vice-rei do Brasil, D. Vasco Mascarenhas, Conde de Óbidos, sobre cargos e postos numa clara intromissão de jurisdição. Segundo Evaldo Cabral de Mello, nessa querela os cargos e postos eram negociados às escusas, pois constituíam fontes de poder político e de renda. Enfim, o governador Xumbergas, sem conseguir uma reação efetiva, acabou sendo mesmo expulso. Cogita-se que os poderosos da Câmara de Olinda contavam com o apoio do vice-rei, Conde de Óbidos, para que seu levante tivesse aspecto de legitimidade.
Na conjuntura da guerra dos Mascates (1710-1711), resultado da rivalidade de senhores de engenhos (Olinda) e comerciantes mascates (Recife), encontramos o caso de outro governador que também foi expulso no Pernambuco colonial, o fidalgo português Sebastião de Castro e Caldas. Seu governo ficou marcado pelo alinhamento e oposição de forças particulares: de um lado, o governador e os mascates; do outro, o ouvidor, o juiz de fora e a câmara de Olinda, representando, pois, a oposição entre o comércio e a dita “nobreza da terra”. Entre seus abusos, desmandos e demais acusações, o governador mandou prender devedores por pedidos de seus credores sem ter sentença para tal; autorizou empréstimos a juros com recursos do cofre dos órfãos e interferiu nos negócios de particulares de transporte e armazenamento do açúcar. Além do comércio que praticou por meio de terceiros, também se intrometeu na arrematação de cobrança de impostos em favor de amigos. Até no abastecimento de carne se envolveu, coagindo os criadores a vender o gado para o Recife no preço estipulado pelos contratadores. Também foi acusado de vender cargos, fossem civis ou militares. Tal qual muitos governadores, se meteu no comércio de escravos, enviando-os para o Rio de Janeiro, de onde eram encaminhados para Minas. A acusação mais grave que pesou contra ele foi a de ter desrespeitado as ordens régias de expulsão dos franceses dando a alguns residência mediante grande pagamento.
Como consequência, Castro e Caldas enfrentou muitas revoltas entre os comerciantes e os fazendeiros. Nesse ínterim, a elevação do Recife à condição de vila, com pelourinho e os recursos de praxe, piorou a situação dele, culminando na invasão dos poderosos de Olinda com suas forças na recém-criada vila. Em outubro de 1710 acabou ferido no conflito. A sindicância aberta não conseguiu apurar o autor do atentado. No dia sete de novembro, o governador, acuado em Recife por um exército de revoltosos de Olinda, fugiu na madrugada daquele dia.
Por fim, o próximo exemplo de governante que se envolveu em redes de clientela não foi um verdadeiro aventureiro na busca de fortuna, mas um nobre de linhagem: D. Pedro Miguel de Almeida Portugal, o famoso Conde de Assumar. D. Pedro foi nomeado para o governo da então capitania de São Paulo e Minas do Ouro em março de 1717. Sua administração procurou diminuir o poder dos potentados locais, fortalecer a presença do Estado na capitania e aumentar a arrecadação fiscal. Tornou-se o “protótipo dos indesejáveis governadores”. Através do testamento de seu pai temos uma boa evidência dos negócios, comércios e visão dos lucros durante a estadia do jovem nobre em Minas. Já a partir de Portugal, para assumir o posto de governador, D. Pedro trouxe uma “carregação de fazendas de importância de vinte e dois contos quinhentos e noventa e quatro mil duzentos e sessenta e hum réis.” Seus parceiros nesse negócio foram o pai, sua esposa e o poderoso e rico Francisco de Amaral Coutinho, governador interino da capitania do Rio de Janeiro (1709-1710).
Muitos negócios do Conde de Assumar foram feitos através de três procuradores: Manuel Antunes Collaço, Domingos Rodrigues Cobra e um primo do procurador Manuel Antunes, chamado Matheus Collaço. Este foi testemunha da negociação dos escravos do Conde, sendo ele o “portador seguro” dos negócios que Manuel Antunes realizava no Rio de Janeiro em nome de D. Pedro. O outro procurador, Domingos Rodrigues Cobra, permaneceu nas Minas e foi feito sargento-mor das ordenanças do distrito de Santa Bárbara, além de ter recebido uma sesmaria em Itabira em janeiro de 1719. Em nome do Conde, Domingos realizou a compra e venda de terras, lavras e escravos com os poderosos das Minas. Além desses, a documentação indica outros participantes das redes de negócios do Conde nas Minas, gente importante como o futuro vice-rei da Índia, Antônio Furtado de Mendonça, e do governador da capitania do Rio de Janeiro, D. Antônio de Brito Freire de Menezes.
Mesmo não sendo possível chegar a um valor exato do montante dos negócios que o Conde de Assumar tinha nas Minas, sabe-se que, após regressar a Lisboa, pagou as dívidas da Casa dele e as da casa de seu pai, incluindo as antigas, ainda do tempo em que o pai servia nas embaixadas da Espanha. Pagou, também, o que devia aos seus criados e as contas de uma das principais propriedades da família, a Quinta de Almada. Posteriormente, mandou dinheiro para a compra da Quinta de Almeirim.
Além disso, mesmo após seu regresso a Portugal os procuradores de Assumar continuaram a enviar remessas de pagamento. Com tal montante, D. Pedro fez negócios em Lisboa com Gaspar Dias de Oliveira Ceutta Marreca, para adquirir “todas as terras e prazos, moxas e as que pertencem ao morgado sitas todas junto ao campo de Monção pelo preço de cincoenta e cinco mil cruzados, livres de cizas, e laudeiros”. Ao final dessa negociação que previa pagamento de juros e mais, o Conde afirmava: “poderá ser maior a quantia e o resto de toda ela o satisfará na chegada da frota próxima do Rio de Janeiro”. (Arquivo Nacional da Torre do Tombo – Inventários Orfanológicos, letra C nº 60)
Apesar de seus muitos negócios nas Minas, ninguém de sua rede impediu a revolta de 1720, aquela na qual ele mandou executar Filipe dos Santos e queimar casas no morro, onde se diziam que os amotinados de Vila Rica estariam. Fica claro que o capital político de uma rede local não pode ser equiparado, em especial no Brasil colonial, ao capital financeiro movimentado por essa rede. Assumar respondeu ao levante de forma muito mais enérgica e não foi deposto pelas elites locais, mesmo que posteriormente tenha enfrentado graves acusações políticas – abuso de poder na linguagem atual – e corrupção em Lisboa. Tais denúncias resultaram num ostracismo na Corte Real que durou mais de uma década. Chamamos a atenção para as reações que provocaram outros governadores ao voltar ao reino em comparação com o que aconteceu com Assumar em 1720. De D. Pedro de Almeida, dizia-se que regressou a Lisboa com mais de 100.000 moedas de ouro. Sua grande fortuna levantou suspeitas e fez com que ficasse afastado da Corte enquanto suas contas eram investigadas.
Percebe-se que a origem dessas situações narradas está na própria dependência que parte da fidalguia e mesmo da nobreza portuguesa tinha dos postos e mercês conquistados na Corte e no ultramar. Muitos que ocupavam os postos de comando nos domínios ultramarinos enriqueciam através de negócios coloniais adquirindo sesmarias, lavras e escravos através do comércio. Diante de tantos casos como esses citados, em 1720, D. João V tentava impedir que seus servidores do Reino e do ultramar se envolvessem direta ou indiretamente no comércio e demais negociações:
“Daqui em diante nenhum vice-rei, Capitão-general ou governador, ministro ou oficial de justiça ou fazenda, nem também os de guerra que tiverem patente que são do posto de capitão para cima inclusive, assim deste reino como de suas conquistas, possam comerciar per si, nem por outrem, em lojas abertas, assim em suas próprias casas, como fora delas, nem atravessar fazendas algumas (Instituto Histórico Geográfico Brasileiro – Arq. 17201. 3 nº 1)”
Anos mais tarde, Assumar foi acusado novamente de atos corruptos. As denúncias ocorreram após sua estadia no Oriente como vice-rei da Índia, em Goa (1744-1751), e partiram do Frei Lourenço que dizia: “o Vice-rei Marquês de Alorna depois que chegou a este estado em 19 de setembro de 1744, em nenhuma couza tem cuidado mais como em ajuntar cabedais para enriquecer a sua casa.” (ANTT – AHMF, caixa nº 3578)
Muitos outros exemplos poderiam ser citados aqui, mas escolhemos essas trajetórias de servidores da Coroa na América não apenas pelas redes das quais participaram, mas também pelo desfecho de suas histórias. Vimos que Xumbergas e Castro e Caldas enfrentaram a oposição dos poderosos de Pernambuco, sendo por eles expulso e até ferido. Pergunta-se: por que estes não mandaram, como Assumar, prender os amotinados com o apoio de outras autoridades e poderosos para reagir aos seus algozes? Entendemos que as redes locais não eram fortes o suficiente para assegurar a autoridade nestes casos. Além disso, há de se considerar outras circunstâncias como os meios físicos – tropas armadas – disponíveis para o exercício do poder. Portanto, o contexto do Conde de Assumar nas Minas setecentistas era diferente.
O que se percebe é que inexistia uma política clara de punir os governantes envolvidos no comércio ou em outras redes de interesse que concorressem direta ou indiretamente com a Coroa – especialmente na arrecadação do fisco e provimento de cargos estratégicos. Obviamente é preciso averiguar até que ponto as redes clientelares formadas no ultramar encontravam apoio no reino e que tipo de benefícios gerava aos seus membros.
Nossa intenção com os casos aqui mostrados foi comparar as redes dos governadores da América. O resultado, a cobrança e a forma de relação com os poderosos foram diferentes e a Coroa atuou em cada caso de uma maneira.