Revista Impressões Rebeldes

A TRAGÉDIA DE LUÍS FERREIRA FREIRE

Para não se render às pressões da câmara local, no início do século XVIII, um capitão-mor em Natal fez de tudo: prendeu um vereador e sequestrou familiares de opositores. Ele acabaria provocando um desfecho nefasto.

Fortaleza dos Reis Magos na capitania do Rio Grande retratada em 1655 na pintura “Kasteel Keulen aan Rio Grande in Brasil” do artista holandês Johannes Vingboons. Karten Collection, Arquivo Nacional dos Países Baixos

Marcos Arthur Viana da Fonseca

Marcos Arthur Viana da Fonseca é doutorando em história pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e autor da dissertação: Sob a sombra dos governadores de Pernambuco? Jurisdição e administração dos capitães-mores da capitania do Rio Grande (1701-1750). 2018. 196f. Dissertação (Mestrado em História) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2018.

O ano de 1720 foi marcado pelo último confronto militar entre os indígenas e as tropas militares da capitania do Rio Grande, no engenho Ferreiro Torto. Era o fim da Guerra dos Bárbaros (1680-1720), um conflito que já assolava a região há mais de trinta anos. A derrota dos índios significou uma vitória simbólica para o capitão-mor Luís Ferreira Freire, governador entre 1718 e 1722.

Apesar deste sucesso, o governo do capitão-mor, iniciado no ano de 1718, não foi fácil. Mesmo após assumir os louros proporcionados pelo período final da guerra, a sua administração foi marcada por uma grande tensão com a elite local da capitania, representada pelos oficiais da Câmara do Natal.

As tensões latentes, provocadas sobretudo pelo próprio Luís Ferreira Freire, transformaram-se em um conflito aberto entre a Câmara e o capitão-mor no mesmo ano do fim da guerra, em 1720. Os oficiais camarários escreveram sistematicamente diversas cartas para o ouvidor-geral da Paraíba (responsável pela administração da justiça na capitania do Rio Grande) e para o governador de Pernambuco (autoridade a qual a capitania estava subordinada) relatando os descomedimentos, insolências e a má gestão de Ferreira Freire.

Os abusos descritos nas cartas eram inúmeros. O primeiro era o ato de proteger os soldados considerados criminosos da capitania, impedindo que os oficiais da justiça ordinária tomassem providências contra aqueles militares. O segundo era a intromissão de Luís Ferreira Freire na jurisdição da Câmara, apoderando-se do contrato das carnes, bem como da concessão dos chãos de terras dentro da cidade do Natal. O terceiro abuso estava relacionado à malversação dos postos públicos, sobretudo pela venda de provisões de ofício e patentes militares a pessoas consideradas incapazes de ocupar os cargos, transformando o ofício de capitão-mor em mercancia. E, por fim, o monopólio sobre a mão de obra dos índios aldeados da capitania, na construção de obras particulares do capitão-mor, como curtumes e carpintaria naval.

De todos os abusos cometidos por Luís Ferreira Freire, o mais sensível aos interesses da elite local era o monopólio sobre o trabalho indígena. Essa problemática ocorria em virtude dos índios serem utilizados como a principal mão de obra na capitania Rio Grande, atuando tanto nos serviços em prol do bem comum, como no reparo de pontes e da cadeia da cidade, quanto em serviços particulares, como na atividade pesqueira, por exemplo. Nestes casos, os índios recebiam um pequeno salário que era pago ao religioso administrador da aldeia em que viviam.

Nos anos posteriores à Guerra dos Bárbaros, com o aumento dos índios aldeados, a mão de obra indígena tornou-se questão fundamental dos interesses econômicos da capitania. Desta forma, a acusação de monopólio do trabalho indígena arranhava diretamente a frágil aliança política do capitão-mor com a câmara, pois tal ação criava obstáculos aos negócios particulares dos oficiais camarários. O capitão-mor privava os principais grupos de moradores da capitania de ter acesso à tradicional mão de obra indígena enquanto monopolizava os índios aldeados para trabalharem em projetos de seu próprio interesse, como a construção de barcos.

A ferrenha oposição dos oficiais camarários contra o governo do capitão-mor não tardou. Além de novas cartas enviadas ao ouvidor-geral da Paraíba e ao governador de Pernambuco, a Câmara do Natal também enviou cartas para o rei, D. João V (1707-1750), acusando o capitão-mor de exercer um mau governo, ser absoluto, despótico e “tirano”. Diante dessa ofensiva política, Luís Ferreira Freire mobilizou uma rede de aliados para que pudesse garantir a sua governabilidade dentro da capitania e assegurasse o término do seu mandato. Esta governabilidade foi construída com o apoio das tropas militares pagas da capitania, sobretudo das duas companhias de guarnição que protegiam a cidade do Natal e a Fortaleza dos Reis Magos. Esta aliança solidificou-se com a relação e proximidade mantida entre o capitão-mor e Francisco Ribeiro Garcia, capitão de infantaria e comandante de uma das companhias de guarnição. Outras autoridades também se aliaram ao grupo construído pelo capitão-mor, como Antônio de Andrada Araújo, vigário coadjutor da Matriz de Nossa Senhora da Apresentação.

A política adotada por Luís Ferreira Freire foi a da utilização do medo e do terror para garantir não só a continuidade do seu mandato como dos seus atos administrativos controversos enquanto capitão-mor da capitania. As tropas pagas seriam utilizadas como o sustentáculo do seu governo, impedindo que ele enfrentasse qualquer obstáculo e servindo como meio de pôr em prática os seus interesses; mesmo que as medidas fossem consideradas autoritárias por seus opositores. Os oficiais camarários prontamente protestaram contra as alianças do capitão-mor e enviaram novas cartas ao ouvidor-geral da Paraíba, ao governador de Pernambuco e à Coroa, reclamando das atitudes arbitrárias do capitão-mor. O contra-ataque também veio por vias mais enérgicas: elevando o nível de tensão política, os camaristas, prenderam um escravo, acusado de homicídio, pertencente a Francisco Ribeiro Garcia, capitão de infantaria da companhia da guarnição da cidade do Natal e aliado de Luís Ferreira Freire, em fevereiro de 1721.

Ferreira Freire considerou a prisão do escravo do seu aliado um ato ultrajante e em resposta liderou uma assuada, acompanhado de seu filho, João Antônio Freire, e do proprietário do escravo, Francisco Ribeiro Garcia. Os soldados, liderados pelo capitão-mor, atacaram a cadeia da cidade do Natal, libertaram o escravo preso e seguiram de porta em porta de cada uma das casas dos oficiais camarários, com o objetivo de espancá-los e prendê-los. De acordo com o relato dos camarários, os soldados portavam espadas e armas de fogo enquanto bradavam: “Morra a toda coisa viva”. Por fim, Luís Ferreira Freire ordenou a prisão do vereador Manuel de Melo e Albuquerque, o principal opositor do seu governo, na câmara escura da Fortaleza dos Reis Magos. A câmara escura era uma cela subterrânea do presídio que ficava completamente submersa com as águas das marés.

Os oficiais da câmara protestaram formalmente contra as atitudes do capitão-mor e suplicaram a intervenção do ouvidor-geral da Paraíba e do governador de Pernambuco. Os camarários enviaram uma carta ao provedor da Fazenda Real do Rio Grande, José Soares, solicitando que este não atendesse à portaria do capitão-mor de conceder pólvora aos soldados da capitania, com receio dos estragos que o capitão-mor poderia causar. Diante da tensão e dos acontecimentos, o provedor José Soares escreveu a Luís Ferreira Freire informando que não concederia a pólvora sem antes consultar o governador de Pernambuco e solicitou que soltasse o vereador preso, Manuel de Melo e Albuquerque, antes que este episódio culminasse em “toda a perdição desta capitania”.

Com o acirramento dos conflitos, o governador de Pernambuco, D. Francisco de Sousa (1721-1722), e o ouvidor-geral da Paraíba, Manuel da Fonseca e Silva (1720-1726), escreveram a Luís Ferreira Freire, em maio de 1721, ordenando a liberação imediata do vereador Manuel de Melo e Albuquerque da prisão. O capitão-mor não atendeu a esta ordem, mantendo o vereador em cativeiro por quase todo o ano de 1721. O camarário somente foi posto em liberdade por ordens diretas do governador de Pernambuco aos comandantes da Fortaleza dos Reis Magos, Mateus Mendes Pereira e Belchior Pinto, que libertaram Manuel de Melo e Albuquerque sem o conhecimento do capitão-mor. Para não admitir uma derrota moral de suas ações e de seus aliados perante a Câmara do Natal, Luís Ferreira Freire sequestrou a sobrinha do vereador Manuel de Melo e Albuquerque, Maria Rodrigues de Sá, com o intuito de viver com ela como sua concubina; para escândalo público e notório da população da cidade, que passou a reconhecer o capitão-mor como um bígamo.

A situação política entre os oficiais da Câmara e o capitão-mor e seus aliados continuou insustentável até o fatídico dia 22 de fevereiro de 1722. Nesta data, entre às 19 e 20 horas , Luís Ferreira Freire sofreu um atentado à sua vida, recebendo 7 tiros de espingardas. Como as balas fragmentaram-se, o capitão-mor ficou ferido em 18 partes do seu corpo, sofrendo em agonia durante uma semana até falecer no dia 28, como consta nas informações enviadas pelos camarários ao ouvidor-geral da Paraíba, ao governador de Pernambuco e à Coroa, ao relatarem a morte do capitão-mor do Rio Grande.

No período imediatamente posterior à morte de Ferreira Freire, os camarários assumiram o governo interino da capitania até a chegada do novo sucessor nomeado pelo rei. Em Lisboa, a notícia do assassinato do capitão-mor levou a uma imediata reação e à abertura de uma devassa para apurar os acontecimentos. De acordo com os próprios camarários, em correspondência com o rei, os responsáveis pelo atentado à vida do capitão-mor foram os parentes da moça sequestrada para viver como concubina. Um detalhe fundamental omitido pelos camarários, entretanto, foi a relação de parentesco entre Maria Rodrigues de Sá e Manuel de Melo e Albuquerque. O vereador preso na Fortaleza dos Reis Magos e principal opositor do capitão-mor era tio materno, via casamento, da jovem raptada. Nas palavras dos camarários, o assassinato do capitão-mor foi considerado como uma questão menor, ligada a limpeza da honra familiar. A omissão dos detalhes, contudo, sugere uma opção consciente feita pelos oficiais camarários, prováveis aliados de Manuel de Melo e Albuquerque, em abafar os verdadeiros motivos do mandante do assassinato do capitão-mor e suas ligações com a própria câmara.

A morte de Luís Ferreira Freire, nesse sentido , serviu como um aviso para todos os capitães-mores posteriores sobre as dificuldades de governabilidade da capitania do Rio Grande e das relações com a Câmara do Natal dados os perigos de importunar os interesses da elite local. O capitão-mor José Pereira da Fonseca (1722-1728), sucessor imediato de Luís Ferreira Freire, escreveu cartas a Coroa relatando a certeza de que oficiais da Câmara haviam participado da eliminação do seu antecessor. Uma década e meia depois, Francisco Xavier de Miranda Henriques (1739-1751) escreveu a Coroa sobre como os oficiais camarários se opunham aos capitães-mores da capitania, chegando à possibilidade de assassiná-los com o objetivo de eliminar obstáculos aos seus interesses.

Bibliografia Básica

BARBOSA, Kleyson Bruno Chaves. A Câmara do Natal e os Homens de Conhecida Nobreza: governança local na capitania do Rio Grande (1720-1759). Dissertação (Mestrado em História) – Natal, RN, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2017. 322f.

CASCUDO, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, Serv. de Documentação, 1955.

FONSECA, Marcos Arthur Viana da. ‘A perdição de toda a capitania’: jurisdições e governabilidade na administração do capitão-mor Luís Ferreira freire (1718-1722). In: V Seminário Internacional História e Historiografia, 2016, Recife. Anais Eletrônicos do V Seminário Internacional História e Historiografia. Recife: Editora UFPE, 2016. p. 1266-1276.

LOPES, Fátima Martins. Os indígenas aldeados na capitania do Rio Grande na primeira metade do século XVIII: terra e trabalho. In: Helder Alexandre Medeiros de Macedo; Rosenilson da Silva Santos. (Org.). Capitania do Rio Grande: história e colonização na América Portuguesa. 1 ed.João Pessoa; Natal: Ideia; EDUFRN, 2013, v. 1, p. 73-90.

PUNTONI, Pedro. A guerra dos bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: Editora Hucitec, 2002.

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Como Citar

Marcos Arthur Viana da Fonseca, "A TRAGÉDIA DE LUÍS FERREIRA FREIRE". Impressões Rebeldes. Disponível em: https://www.historia.uff.br/impressoesrebeldes/revista/a-tragedia-de-luis-ferreira-freire/. Publicado em: 30 de maio de 2022. ISSN 2764-7404

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