O projeto Memória e Comunidades de Sentido: percursos historiográficos se orienta por uma perspectiva, fundamentalmente teórico-metodológica, com vistas a possibilitar a composição de uma rede de pesquisa que contribua para uma abordagem crítica e renovadora da História do Brasil, tendo como pressuposto valorizar a diversidade social e cultural e a pluralidade das dinâmicas sociais, fazendo a crítica das abordagens que enfatizam a linearidade do tempo histórico e a unidade das estruturas sociais. Destaca-se, ainda, a interrogação sobre a pluralidade dos sujeitos sociais da história, promovendo a análise das comunidades de sentido (Baczko, 1985), compreendidas nas suas dimensões sensíveis e significativas e caracterizadas, para fins analíticos, de acordo com as suas diferenças étnicas (dentre as quais, destacam-se as populações afrodescendentes e dos povos indígenas), regionais, políticas, entre outras.
A rede de pesquisa proposta se apoia na experiência institucionalmente consolidada dos laboratórios de pesquisa que integram o PPGH-UFF, notadamente, o LABHOI, o NUPHEC, o NEC, o NEAF e a Companhia das Índias, cujas estratégias teórico-metodológicas fundamentam a implementação da proposta de abordagem da História do Brasil com destaque para os temas da história da imagem, da história oral e da história da cultura material no seu entrecruzamento com a história política, a história cultural, a história das comunidades étnicas e a história pública. Contempla-se, ainda, na proposta o debate e estudos que se organizam em torno de linhas de pesquisa do PPGH-UFPA (“História e Natureza” e “Trabalho, Cultura e Movimentos Sociais”) e PPGH-UFSJ (“Cultura e Identidade” e “Poder e Relações Sociais”).
Delimitação do tema
O projeto proposto pretende promover estudos e pesquisas que tomem a problemática da relação entre memória e comunidades de sentido, a partir dos campos de pesquisa da História da Imagem, História Oral e da História da Cultural Material como objeto de interrogação histórica, sustentados numa rede de pesquisa colaborativa de pesquisadores de três centros brasileiros de pós-graduação em História, com o sentido de contribuir para a renovação de enfoques sobre a história do Brasil.
Nesse sentido, a história da memória implica em inventariar e interrogar as representações do passado, analisando suas expressões e os processos de invenção da história (Bann, 1996), bem como colocando em questão as práticas e os contextos que envolvem os usos políticos do passado (Hartog & Revel, 2001). Além disso, trata-se de tomar a memória não como dado naturalizado, mas como construção de grupos sociais que conformam quadros sociais comuns em torno da dinâmica da lembrança e do esquecimento (Halbwachs, 1990). O que pode ser abordado a partir da análise dos suportes, agentes e representações, que apesar de tomarem o passado como objeto se situam em outro tempo histórico (Meneses, 1992). Compreende-se, assim, a existência de memórias plurais produzidas historicamente pelos grupos sociais e a partir de seu tempo e de sua experiência social, ensejando a construção de comunidades de sentido. Os agentes da memória são dentro dessa lógica todos os sujeitos envolvidos nos trabalhos de memória onde se desenrola o exercício continuado de relacionar passado e presente, por meio de práticas sociais de construção de representações do passado. Tais representações se sustentam em suportes investidos de significado histórico e que provocam a rememoração por meio de diferentes expressões, como a imagem, as narrativas orais e os artefatos da cultural material (Halbwachs, 1990; Pollak,1989)
Assim, como o estudo da história da memória, a afirmação do estudo da história da imagem, da história oral e da história da cultura material também tem sido um dos vetores de renovação a partir do qual a historiografia vem afirmando sua atualização. Nesse contexto de mudanças historiográficas, a imagem, as narrativas orais e os objetos da cultura material têm sido tratados não apenas como fontes para o estudo da história, mas também como objetos de estudo da história, reconhecendo a cultura visual, a tradição oral e a cultura material como territórios de representações e práticas sociais que envolvem a produção social de sentidos e que permitem interrogar a sociedade e suas dinâmicas.
Especificamente, o estudo da história da imagem tem sido redefinido em tempos recentes a partir do conceito de cultura visual que define o olhar como construção, entendendo que a visão não é um fato meramente físico ou biológico, mas antes o resultado de práticas de ver (Sturken & Cartwright, 2001) e que envolve a produção de regimes escópicos (Jay, 1993), resultado de experiência histórica. O pressuposto permite novas perspectivas de tratamento da história da fotografia e da história da arte (Knauss, 2006; e Mauad, 2008).
De outra parte, pode-se considerar que a história oral permite discutir as possibilidades de uma história da memória, ao reunir narrativas que se caracterizam como representações do passado A partir do diálogo com a obra de Maurice Halbwachs que salienta a construção social da memória (1990), Henry Rousso (1996) rejeita a caracterização unívoca da memória. Alessandro Portelli (1996) destaca a noção de “memória dividida”, ao considerar que a lembrança é materialização do controle social. Longe de ser produto da espontaneidade, a recordação é ideológica e culturalmente mediada, segundo o autor. A ideia de memória dividida valoriza a identificação de narrativas paralelas e que competem umas com as outras, fazendo do campo da memória território de disputas que traduzem disputas sociais. A memória caracterizada pelas narrativas acerca do passado apresenta-se como terreno de narrativas interpretáveis, abrindo a possibilidade para a investigação social.
Por sua vez, desde a década de 1970, o estudo dos objetos sofreu uma reviravolta ao buscar trata-los como parte de um sistema social de significação (Lévi-Strauss,1975; Barthes, 2001), propondo leituras das sociedades a partir do que Jean Baudrillard conceituou como sistema de objetos (Baudrillard, 2008). Estas novas abordagens favoreceram a compreensão de que a produção material de objetos ultrapassa a ordem da economia do uso ou do lucro, promovendo a interrogação sobre a conexão entre a esfera material e o sistema cultural das sociedades, de modo que os mesmos participem da vida social (Appudarai, 2008). Nesse sentido, o conceito de cultura material, tal como propõe Ulpiano Bezerra de Meneses, deve ser entendido a partir do elemento do meio físico apropriado socialmente na ordem de padrões sociais, definindo-se como o suporte material, físico, concreto da produção e reprodução da vida social, sendo produto e vetor das relações sociais. (Meneses,1983). Desse modo, a cultura material e seus objetos participam num sistema de representação e como expressão de comunidades de sentido.
Importa ainda sublinhar que, no contexto do processo de redemocratização da sociedade brasileira a partir dos anos de 1980, o tema da memória entrou na pauta de discussão de diferentes grupos sociais organizados promovendo novas leituras da história do Brasil. Um amplo espectro de movimentos sociais (ambientalistas, negros, mulheres, homossexuais, sem-teto, sem-terra, comunidades indígenas, entre outros), partidos políticos, associações civis, etc., se dedicou à produção de memórias. Multiplicaram-se centros e iniciativas consubstanciando, ao longo do tempo, aquilo que Pierre Nora (1993) chamou de memória-dever. Essa preocupação denotava claramente o processo de apropriação do passado na construção de identidades sociais ao afirmar o papel de grupos sociais como sujeitos históricos e promover a emergência da consciência política, reavaliando o significado de fatos históricos consagrados e propondo novos enfoques para análise histórica, dialogando com a renovação da historiografia acadêmica.
Portanto, o estudo da memória e de sua relação com os processos sociais por meio de seus suportes, agentes e representações é o cerne da reflexão proposta, entendendo-se que o historiador é responsável pela construção de um tipo de discurso e conhecimento específicos, controlado academicamente, mas movido pelo senso crítico. Assim, o conhecimento histórico produzido sobre o passado - categoria sempre definida e reconstruída como objeto - tem, na própria produção de memórias, uma de suas fontes e também um de seus objetos privilegiados de estudo.
A crise dos espaços legítimos de representação, a mundialização da cultura, a fragmentação dos sujeitos sociais são temas colocados na pauta da contemporaneidade, adensados por uma sempre renovada reflexão sobre a nação e seu significado histórico (Anderson, 1995). Sendo assim, o estudo de diferentes comunidades de sentido a partir da história da memória, na sua relação com a história da imagem, história oral e da História da cultura material, permite ultrapassar os lugares comuns naturalizados sobre o passado, no qual a memória se ancora e onde encontra sua inspiração primeira ao abrir caminho para a crítica da historiografia e da história.
Justificativa
O exercício de pesquisa apoiado em reflexão conceitual inovadora e em estratégias metodológicas consolidadas em ampla experiência acadêmica da UFF, permitirá as equipes envolvidas neste projeto - UFPA e UFSJ - consolidar uma plataforma de debate historiográfico que contemple um conjunto de demandas, em relação ao meio ambiente, aos usos da terra, ao desenvolvimento humano, entre outras, que a sociedade brasileira nos coloca para enfrentarmos os desafios contemporâneos. A extensão das pesquisas acadêmicas desenvolvidas no âmbito do PROCAD para a educação básica nas regiões envolvidas na proposta é uma de nossas metas.
Vale ressaltar que o PROCAD 2013 oportuniza a formalização de parcerias que os núcleos e laboratórios de pesquisa do PPGH- UFF vêm desenvolvendo, ao longo dos últimos anos, com ambas as IES envolvidas na proposta. Destacam-se as pesquisas sobre memória do cativeiro desenvolvidas na região sudeste, pelos pesquisadores do NUPHEC e do LABHOI em parceria com pesquisadores da Federal de São João Del Rey, que podem agora serem estendidas a região Norte, com a interface que se estabelece com a Federal do Pará. Por outro lado, os estudos sobre paisagem e população originária que tem destaque nos diálogos entre a UFF e a UFPA poderão ser incrementados com a entrada de novos interlocutores. Passamos a apresentação do perfil acadêmico de cada um dos programas que reforça a sua reunião no PROCAD 2013.
Objetivos
a) Geral:
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Composição de uma rede de pesquisa voltada para temáticas e estratégias metodológicas compartilhadas pelos Programas de Pós-Graduação – UFF, UFPA e UFSJ – localizados em três estados brasileiros, em duas regiões (sudeste e norte) com trajetórias históricas específicas, que se reúnem com vistas a consolidar uma plataforma de ação acadêmica e pedagógica nos níveis da Pós-Graduação, da Graduação e da Educação Básica.
b) Específicos:
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Contribuir para renovação das abordagens da História do Brasil a partir da discussão e estudos das relações entre memória e comunidades de sentido numa perspectiva histórica na sua dimensão teórica, historiográfica e documental.
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Incrementar a mobilidade acadêmica de pesquisadores, professores e alunos com o sentido de promover o intercâmbio de experiências e o diálogo acadêmico no campo da pesquisa da História do Brasil.
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Promover eventos, publicações e disseminação de informação para a pesquisa e o ensino de História.
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Promover a qualificação de professores e pesquisadores de modo a superar as diferenças regionais entre os programas de pós-graduação e cursos de graduação.
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Incentivar a formação de futuros pesquisadores.
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Fomentar a consolidação dos laços acadêmicos entre graduação e pós-graduação com vistas à capacitação continuada de pessoal em nível superior.
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Desenvolver ações visando a integração entre a Universidade e a Educação Básica .
Metodologia
O estudo e a pesquisa sobre a relação entre memória e as comunidades de sentido numa perspectiva histórica se orienta metodologicamente por três percursos: teórico; documental e historiográfico.
1. Percurso teórico: orienta-se pela abordagem teórica do eixo estrutural da proposta, ou seja, da relação entre memória e comunidade de sentido, explorando o debate conceitual sobre os dois termos numa perspectiva da História, com o objetivo a promover uma plataforma teórica de referência compartilhada. Cabe destacar ainda que a interrogação geral proposta destaca o debate sobre os sujeitos sociais da história e suas representações do passado por meio de imagens, narrativas orais e artefatos materiais. Nesse sentido, o percurso proposto deve contemplar igualmente a interrogação os campos da história da imagem, da história oral e da história da cultura material no contexto da historiografia e da pesquisa histórica contemporânea, procurando identificar tradições e inovações, bem como a relação com outros campos disciplinares. Este percurso se caracteriza como momento de mobilização geral em cada uma das instituições envolvidas por meio da promoção de colóquios de interrogação teórica e conceitual estimulada pela ampla participação discentes e docentes dos cursos de pós-graduação e graduação de outras IES.
2. Percurso documental: orienta-se por promover a identificação documental de acervos e coleções de imagens, entrevistas e/ou artefatos materiais específicos a serem tratados no âmbito do desenvolvimento de projetos de pesquisa específicos sobre a história das relações entre memória e as comunidades de sentido. Trata-se de compartilhar o desenvolvimento de pesquisas focadas no campo da história da imagem, da história oral e da história da cultura material a partir da definição de recortes e delimitação de objetos de estudo, criando condições para integrar e articular pesquisas correlatas entre os três programas de pós-graduação envolvidos. Um desdobramento deste percurso volta-se para a criação, disseminação e preservação de acervos documentais resultantes das atividades de pesquisa das equipes envolvidas eventualmente por base de dados acessíveis em sítio eletrônico, centrada na experiência consolidada do Laboratório de História Oral e Imagem da UFF. Este percurso se caracteriza como momento de oficinas de grupos de trabalho interinstitucionais de acordo com os campos de pesquisa (história da imagem, história oral e história da cultura material), estimulando o desenvolvimento das pesquisas em andamento e o envolvimento de discentes de graduação.
3. Percurso historiográfico: orienta-se pela associação dos debates conceituais do primeiro percurso ao trabalho de identificação documental realizado no segundo, objetivando a produção historiográfica original promovendo uma nova abordagem e uma leitura inovadora da história do Brasil ao colocar em relevo as relações entre memória e comunidade de sentido. Este percurso se caracteriza como momento de integração geral dos trabalhos de pesquisa desenvolvidos pelos participantes por meio de seminários ao longo do período de realização da proposta. Destaca-se, ainda, que todo o investimento historiográfico proveniente do projeto servirá de plataforma de debates contínuos.
Cada um destes percursos apresentará produtos diferenciados que serão compartilhados em eventos dirigidos.