Revoltas

Resistência religiosa entre católicos e protestantes

Capitania Real do Rio de Janeiro (1567 – 1821)Baía de Guanabara | Rio de Janeiro

Início / fim

21 de março de 1557 / 04 de janeiro de 1558

De armadura Villegagnon assiste à primeira missa celebrada no Rio de Janeiro em 1554 - Mural de Oswaldo Carvalho, Palácio de São Joaquim (RJ)

No interior da Baía de Guanabara, no dia 27 de março de 1557, uma discussão religiosa foi iniciada entre o comandante da colônia francesa e protestantes recém-chegados. Esses calvinistas tinham a missão de analisar a terra brasileira e prepará-la como refúgio para outros protestantes que se encontravam perseguidos diante dos conflitos religiosos na França. Nicolas Durand Villegagnon, líder do projeto colonial e adepto de perspectivas católicas, divergiu constantemente da opinião dos huguenotes a respeito de doutrinas religiosas de modo que a relação se tornou insustentável. No dia 4 de fevereiro de 1558, os calvinistas optaram por voltar à Europa. Como a nau estava em péssimas condições, alguns preferiram fazer a travessia enquanto outros cinco optaram em permanecer na Guanabara. Estes se encontraram novamente com Villegagnon e, após se recusarem a negar sua fé, três deles foram executados.

Dois anos antes, Villegagnon, comandante da colônia francesa no Brasil, no dia 2 de fevereiro de 1556, enviou seu sobrinho, Bois-le-Comte, de volta à sua pátria com a finalidade de trazer reforços que o auxiliassem em seu projeto colonizatório. Estando em guerra com Carlos V, o Rei Henrique II não pôde corresponder à petição de Villegagnon. O almirante Coligny, ministro do Assuntos do Além-Mar, no entanto, persuadiu alguns protestantes para participarem desta expedição. Incentivados por João Calvino, os huguenotes demonstraram profundo interesse em fazer uma missão de reconhecimento da América com a finalidade de que, no futuro, milhares de calvinistas, apreensivos diante dos conflitos religiosos franceses, pudessem encontrar refúgio nessa colônia.

O líder dessa missão foi um idoso protestante francês chamado Phillipe de Corguilleray, amigo pessoal de Gaspar de Coligny. Junto dele estavam dois pastores: Pierre Richier e Guillaume Chartier. Além disso, contavam com outros onze fiéis. Entre eles estava um sapateiro de 23 anos, chamado Jean de Léry, que futuramente escreveria um famosíssimo relato do Brasil quinhentista. Léry embarcou, junto de outras 120 pessoas, no navio Grande Roberge. Bois-le-Comte foi o comandante da frota da embarcação chamada Petite Roberge, que levava outros oitenta tripulantes. O último navio, chamado La Rosée, transportou noventa pessoas. No total, 290 reforços partiram de Honfleur no dia 19 de novembro de 1556 ao meio-dia em direção a Guanabara.

No dia 10 de março de 1557, a expedição francesa desembarcou na ilha Serigipe. O encontro inicial entre os protestantes e Villegagnon foi pacífico e amigável. Pierre Richier relatou a boa acolhida do comandante em uma carta a Calvino, dizendo que “o fundador do forte Coligny [nos] recebeu como um pai que acolhe seus filhos ou a irmãos menores.” Os calvinistas demonstraram profunda aprovação e respeito ao líder da França Antártica. Ao contrário dos colonos que haviam se insurgido, meses antes, contra ele por conta de sua disciplina rígida e autoritária, os huguenotes permaneceram trabalhando de bom grado, ainda que recebessem apenas uma pequena ração diária para labutar compulsoriamente.

Villegagnon também admitiu ter ficado profundamente animado com a chegada dos huguenotes ao fazer o seguinte relato na Epistola ad Ecclesiam Christianam, em 1562: “Não quero negar que tenha ficado encantado com a chegada deles. Tinham uma aparência de santidade que pude acreditar haver tombado do céu um tesouro da divindade sobre nosso solo”. A primeira impressão, no entanto, não foi a que permaneceu. Villegagnon deixou bem claro sua decepção ao dizer que “eles não mantiveram por um longo tempo aquela aparência”

O clima amistoso entre ambos os grupos foi rompido no dia 27 de março do mesmo ano, num domingo de Páscoa em que os franceses celebravam a ressurreição de Cristo. No momento da ceia, Villegagnon realizou uma demorada prece e, por fim, partiu o pão e serviu o vinho afirmando que aqueles elementos eram o sangue e o corpo de Jesus Cristo. O pastor Chartier, rapidamente protestou. Segundo a perspectiva calvinista, o pão e o vinho são representações do corpo e sangue de Cristo e jamais atingem uma perspectiva transubstancial, como assim defende o catolicismo. A essência da Santa Ceia foi deixada de lado quando o comandante e os huguenotes passaram a discutir calorosamente a respeito dessa doutrina específica. O debate terminou com Villegagnon proibindo eles de se posicionarem sobre essa questão teológica em seus sermões.

Apesar da amarga discussão, os protestantes não perderam sua confiança no comandante. Quatro dias após a Páscoa, Chartier e Richier escreveram uma carta a Calvino tecendo inúmeros elogios a ele: “Como nós, ele invoca um único Deus. Ele crê que Jesus Cristo é o único mediador entre os homens e Deus. O Espírito Santo está nele. É um novo São Paulo, um novo Salomão.”

Mas esse discurso iria mudar em breve já que as dissensões doutrinárias se multiplicaram nos meses seguintes. No dia de Pentecostes, em outra ceia, um católico sugeriu que a água fosse misturada ao vinho, que estava escasso, deixando assim, os calvinistas horrorizados. A discussão sobre a mistura dos santos óleos foi tão intensa que Villegagnon e Phillipe Corguilleary quase engalfinharam-se. Villegagnon teria exclamado: “Calvino é um herético. Ele não pode espalhar seu dogma ímpio na cristandade. E vocês dois são falsos profetas.” Corguilleray respondeu à altura: “Minha mão vos fará sentir a vingança de Deus.”

Em outra situação, enquanto Pierre Richier discursava sobre algumas crenças próprias do calvinismo, o comandante o interrompeu furiosamente afirmando, após uma longa discussão, que não mais participaria dos cultos e tampouco forneceria alimento de graça para eles. Além disso, restringiu a duração dos sermões dos calvinistas para apenas meia hora por dia e os proibiu de pregarem sobre temas polêmicos.

A relação entre eles se tornou insuportável. No dia 4 de junho de 1557, Chartier decidiu voltar à Europa com a intenção de submeter pessoalmente a Calvino as objeções que Villegagnon havia feito ao dogma reformista. O comandante havia afirmado que consentiria com as respostas do reformador mas, na verdade, queria apenas se livrar de seu principal opositor que o importunava tanto. Longe de apaziguar os ânimos, a partida de Chartier apenas enfraqueceu o lado dos protestantes nos debates, e as desavenças teológicas tornaram-se ainda mais constantes.

Em meados de junho, o comandante, furioso com os protestantes que não respeitavam suas ordens, afirmou que Calvino era um herege e transviado da verdadeira fé. Os protestantes não suportaram mais um insulto. Reagiram através de um duro repúdio formal, afirmando que não se consideravam mais seus súditos e que, tampouco, trabalhariam para ele. Além disso, afirmaram que retornariam para a Europa no próximo navio possível.

Diante de novas hostilidades, Villegagnon os expulsou do forte em que estavam no fim de outubro de 1557. Foi durante esse período de expulsão do forte, que Jean de Léry conheceu intimamente a cultura dos índios brasileiros, que o capacitou a escrever seu famoso relato chamado “Viagem a terra do Brasil”, publicado em 1578. Finalmente, no dia 4 de janeiro, os franceses embarcaram no navio Jacques, carregado de pau-brasil, que retornaria à Europa. Essa embarcação estava em péssimas condições, de modo que cinco deles optaram em retornar para a Guanabara enquanto os outros ousaram realizar a travessia. A viagem foi dificílima. Os recursos eram tão escassos, que os franceses comeram um papagaio que levavam e até o couro de suas roupas. Alguns tripulantes morreram, mas o navio conseguiu chegar ao porto de Audierne, em 24 de maio. Apesar da dura jornada, eles tiveram um destino melhor daqueles que permaneceram no Brasil.

Os cinco huguenotes, ao retornarem à ilha de Serigipe, encontraram Villegagnon novamente. Desconfiado, o comandante os acusou de heresia e deserção. Além disso, ordenou que eles abdicassem da fé reformada ameaçando-lhes com morte. Três deles, Pierre Bourdon, Jean Bourdel e Mathieu Verneuil, não renegaram sua fé e o comandante não hesitou em condená-los. Ordenou que seus pés e mãos fossem amarrados a bolas de ferro e, depois mandou que fossem jogados do alto de um monte, direto ao mar.

(Daniel Freitas , graduando no curso de História da UFF e pesquisador do projeto “Um Rio de Revoltas” – FAPERJ-CNE/2018-2021)

Antecedentes

Requerimento de Villegagnon para que mais homens fossem destinados à colônia francesa na Guanabara.

Conjuntura e contexto

Expedição colonizatória francesa no Rio de Janeiro liderada por Villegagnon. Chegada de protestantes normandos que tinham a missão de analisar a terra brasileira que serviria de refúgio para os calvinistas em meio a um contexto de conflitos religiosos na França.

Números da Revolta

10 meses de duração
15 participantes
3 condenados
3 executados

Outras designações

Crise Religiosa na Guanabara

Grupos sociais

Autoridades

Lideranças

Réus e Condenados

Ações de protesto não-violentas

  • Abaixo-assinado
  • Desobediência
  • Sermões

Repressão

Contenção

  • Ameaças Verbais
  • Prisões

Punição

  • Afogamento
  • Execução

Bibliografia Básica

DORIA, Pedro. 1565 – Enquanto o Brasil nascia: a aventura de portugueses, franceses, índios e negros na fundação do país. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012, p. 61-72.

HOLANDA, Sérgio Buarque. História Geral da Civilização Brasileira. Vol 1. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, p. 172-176.

MARIZ, Vasco. Os franceses na Guanabara: Villegagnon e a França Antártica (1555-1567). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.

SILVA, Rafael Freitas. O Rio antes do Rio. Rio de Janeiro: Babilônia Cultural Editora, 2015, p. 370-380.

Fontes impressas

LÉRY, Jean de. Viagem à Terra do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980, p. 69-84.

LISBOA, Balthazar da Silva. Annaes do Rio de Janeiro: contendo a descoberta e conquista deste paiz, a fundação da cidade com a historia civil e ecclesiastica, até a chegada d’El Rey D. João VI; além de noticias topographicas, zoologicas, e botanicas. Tomo I. Rio de Janeiro: Na Typ. Imp. e Const. de Seignot-Plancher e Ca. 1834, p. 64-69.

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