Na vila de Nova Pombal (atual município de Ribeira do Pombal), no sertão da Bahia, após a ocorrência de um levante em julho de 1797, uma segunda rebelião aumentaria o temor dos portugueses e a insegurança das autoridades locais com a situação a ponto de o governador da capitania precisar intervir.
Esse segundo levante teve início depois que Victoriano Francisco, sobrinho de José Félix Cabral, líder do primeiro levante, tendo se certificado da morte do tio, reivindicou para si o posto de capitão-mor. Victoriano parece ter reunido um número menor de seguidores, mas suas ações tiveram um desfecho mais dramático. Isso porque os portugueses que se encontravam na sede da vila no momento que Vitoriano e seus apoiadores ingressaram ali conseguiram prendê-lo, dispersando o movimento. Contudo, antes que Victoriano estivesse devidamente encarcerado, um pequeno grupo de seguidores voltou à vila, disparou dezenas de flechas e tiros em direção à cadeia e conseguiu libertá-lo.
Durante a ação, um português ficou ferido e um indígena morto. A vítima fatal foi identificada pelas testemunhas como José Mandinga, tendo sido descrito como “valentão” e “mandingueiro” – termo usado para se referir às pessoas que fabricavam ou portavam objetos de proteção pessoal conhecidos como “bolsas de mandinga”. Após o resgate, o grupo se refugiou na vila de Mirandela, local onde se encontrava ainda quando foram concluídas as investigações, no dia 29 de novembro daquele ano, para apurar os fatos e punir os culpados, conforme ordenado pelo governador da Bahia, D. Fernando José de Portugal.
A concentração dos seguidores de Victoriano na vila de Mirandela deu ares de conjuração (ou conspiração) ao movimento, pois os indígenas mantiveram-se mobilizados e armados, sem expressar, de forma clara, suas intenções. Dizia-se que o principal objetivo de Victoriano, com o apoio de Constantino, capitão-mor de Mirandela, era reunir um número maior de apoiadores, mobilizando outras vilas e aldeias indígenas da região, a exemplo de Massacará e Aramari. Apesar de não se ter notícias do desfecho desta conjuração, os dois levantes ocorridos na vila de Pombal revelam aspectos fundamentais das tensões e conflitos envolvendo portugueses e indígenas na segunda metade do século XVIII, evidenciando a ação política indígena, ou seja, seu protagonismo enquanto sujeitos históricos.
A população indígena predominante na região em que ocorreram os levantes era pertencente ao grupo étnico Kiriri e falantes do idioma Kipeá, os quais foram agrupados pelos jesuítas nos aldeamentos de Jeru, Natuba, Canabrava e Saco dos Morcegos. Em Massacará e Aramari registra-se também a presença de indígenas do grupo étnico Kiriri, o que reforça a hipótese de uma conjuração mais ampla, envolvendo diversas povoações kiriris do sertão baiano.
A motivação explícita dos dois levantes ocorridos na vila de Pombal foi a indicação de um novo ocupante para o posto de capitão-mor, autoridade máxima da hierarquia militar nas localidades onde não havia tropas regulares ou regimentos de milícias. Competia a ele o recrutamento e a mobilização das chamadas “tropas de ordenanças”, que reuniam a população adulta masculina da localidade, apta a fazer uso de armas. A ocupação desse posto era extremamente importante, pois proporcionava uma posição de liderança reconhecida tanto pela comunidade quanto pelas autoridades coloniais. Porém, no decorrer do processo investigativo, mostrou-se claro que os indígenas mobilizados por Cabral e Victoriano almejavam mais do que simplesmente a nomeação do capitão-mor.
Os relatos e testemunhas informam que os indígenas sublevados pretendiam retomar as terras que vinham sendo progressivamente ocupadas pelos portugueses com fazendas e criações de gado. Algumas testemunhas ouvidas no inquérito dão conta de que os indígenas tinham o propósito de demarcar em seu favor as cinco léguas de terra que podiam ser medidas da sede de uma vila até a sede da outra expulsando dali os moradores indesejados. Outras testemunhas falam de uma possível investida contra todos os portugueses da região, mas tal alegação parece um tanto exagerada. O mais provável é que a nomeação de Cabral (e, posteriormente, de Victoriano) para o posto de capitão-mor de Pombal fosse o meio buscado pelos sublevados para, na sequência, expulsar uma parte dos portugueses e retomar as terras em benefício das duas vilas.
A criação de vilas indígenas, como Pombal e Mirandela, teve início na segunda metade do século XVIII, no do Estado do Grão-Pará e Maranhão, após a promulgação da Lei de Liberdade dos Índios, de 6 de junho de 1755, e do Diretório dos Índios, de 1757. Tais medidas foram estendidas para o Estado do Brasil por meio dos alvarás de 8 de maio e de 17 de agosto de 1758, respectivamente. Os antigos aldeamentos missionários fundados ao longo dos séculos anteriores passaram a ser regidos como povoações civis, evoluindo do status de “aldeias” para o de “lugares” e “vilas”. No primeiro caso, a autoridade civil competia aos chamados “principais”, líderes indígenas reconhecidos pelas autoridades portuguesas por meio de cartas patentes e provisões. No caso das vilas, a autoridade recaía sobre câmaras de vereadores e juízes, a exemplo do que era observado nas vilas portuguesas, conforme legislado nas Ordenações do reino. Ambas as situações implicavam na entrega da autoridade religiosa, até então exercida pelos missionários, ao clero secular, que nomearia párocos para as igrejas já existentes, as quais evoluiriam do status de “missões” para o de “freguesias”.
Outro aspecto fundamental da política do período foi o incentivo à presença de portugueses nas povoações indígenas, algo que, supostamente, seria uma forma de “adiantar” o processo de “civilização dos índios”, terminando por acelerar a intrusão das terras antes destinadas aos aldeamentos. Assim, se, por um lado, as mudanças trazidas pela legislação proporcionaram novas possibilidades de atuação dos indígenas frente à sociedade colonial, por outro, favoreceram a dispersão e a desarticulação de muitas comunidades. Este processo se intensificou na etapa final do período colonial a partir da expansão territorial provocada pela retomada do crescimento do setor agroexportador, que levou a uma maior ocupação das terras sertanejas.
Por fim, é significativo atentarmos que, passados dois séculos, o antigo aldeamento de Canabrava, transformado em vila de Nova Pombal, tenha deixado de existir enquanto território indígena, dando origem ao município de Ribeira do Pombal, enquanto o antigo aldeamento de Saco dos Morcegos, transformado em vila de Nova Mirandela, tenha sobrevivido às invasões e esbulhos, dando origem à Terra Indígena Kiriri, reconhecida e homologada pelo Estado brasileiro nos anos 1990.
Pelo pouco que sabemos sobre a Conjuração dos Kiriris podemos afirmar que ela constitui um episódio de evidente protagonismo por parte daqueles sujeitos e daquelas comunidades, contribuindo para a sua longa trajetória de luta e resistência.
(Fabricio Lyrio Santos, Professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq e autor do artigo “A conjuração dos Kiriris: sublevação indígena e disputa de terras no sertão da Bahia no final do século XVIII (1797-1798)”, Boletim do Museu Goeldi Ciências Humanas, Belém, v. 19, n. 1, 2024)
Antecedentes
Governo de D. José I (1750-1777), com destaque para a atuação do Marquês de Pombal, e para as reformas que buscaram fortalecer o controle da Coroa portuguesa sobre o Brasil. A Lei de Liberdade dos Índios do Maranhão (1755) proibiu a escravização indígena, mas impôs sua integração forçada ao trabalho colonial. Em 1757, o Diretório dos Índios regulamentou essa política, buscando assimilar os indígenas à cultura europeia e reduzir a influência da Igreja em suas comunidades. Nessa direção em, 1759, D. José I determinou a expulsão dos jesuítas, confiscando seus bens e desmantelando suas missões, o que conferiu plenamente ao Estado a administração indígena.
Conjuntura e contexto
A ocupação das terras demarcadas em favor das comunidades indígenas na colônia se intensificou na segunda metade do século XVIII, incentivada pela legislação que visava “integrar” e “civilizar” os habitantes nativos mediante a miscigenação e a interação com os colonos portugueses. As mudanças trazidas pela legislação proporcionaram maior autonomia frente à sociedade colonial, mas também favoreceram a dispersão e a desarticulação de algumas comunidades. Ao mesmo tempo, os territórios que haviam sido destinados aos aldeamentos foram alvo do interesse econômico regional, impulsionado pelo crescimento do setor agropecuário no período.