Rebeldes / Personalidade

Miguel Ferreira Pestana

  • Brasil
  • Capitania do Espírito Santo (1534 – 1821)

Biografia

Era 19 de julho de 1737 quando o padre José Ribeiro de Araújo deu início a uma devassa contra o indígena Miguel Ferreira Pestana. Ele foi surpreendido ao portar uma bolsa de mandinga e, dentro da mesma, uma carta de tocar, papel manuscrito considerado mágico por seus usuários e recorrente na religiosidade popular da América portuguesa, mas condenado pela ortodoxia católica. O caso, ocorrido na freguesia de Nossa Senhora da Piedade de Inhomirim, veio à tona durante uma visita sumária enviada ao Recôncavo da cidade do Rio de Janeiro por D. Antônio de Guadalupe, que estava à frente do bispado fluminense. Designado visitador pelo bispo, o padre Araújo tomou conhecimento dos delitos que recaíam sobre o tal Miguel por meio de testemunhos obtidos pelos interrogatórios instituídos desde a sua chegada e ordenou a prisão.

Mas, afinal, quem era esse sujeito? À primeira vista, Miguel Pestana não diferia dos inúmeros indígenas sob a tutela dos missionários. Ele nasceu no início do século XVIII e, quando foi condenado no Auto da Fé de 1744, tinha cerca de 40 anos. Miguel cresceu em Nossa Senhora da Assunção de Reritiba, célebre missão jesuítica do Espírito Santo onde o padre José de Anchieta passou seus últimos dias. Ele era parte de uma família estabelecida no aldeamento há várias gerações. Enquanto viveu em Reritiba, sua rotina envolvia a realização de tarefas sob a orientação dos jesuítas. Lá, aprendeu e exerceu a profissão de carpinteiro, seguindo os passos de seu avô paterno, que também possuía um ofício. Ele se casou pela primeira vez com a indígena Izabel, tornando-se viúvo algum tempo depois. Ainda na aldeia, contraiu matrimônio pela segunda vez com Ângela Gonçalves, com quem teve filhos.

A sua relação com os missionários, no entanto, era conturbada. Miguel e a esposa, Ângela, frequentemente fugiam da aldeia, pois não se conformavam com as diretrizes dos inacianos. Isso se devia à dificuldade que tinham em aderir ao estilo de vida pregado pelos padres. O casal, guiado por um catolicismo moldado pela realidade indígena na aldeia, não seguia estritamente as instruções dos jesuítas, o que gerava desavenças. A fuga, mesmo temporária, era uma opção extrema para aliviar as tensões cotidianas. Se a rotina sufocante os afligia, os castigos impostos pela pedagogia jesuítica inspiravam temor suficiente para que Miguel e sua esposa deixassem a aldeia por algum tempo. Insatisfeitos, o casal ia e vinha entre Reritiba e seus arredores, permitindo-lhes interagir com pessoas de fora e explorar diferentes costumes. Eles buscavam fora de Reritiba a liberdade negada pelos jesuítas: novas experiências e vivências. Em dada fuga, Miguel teve contato com uma carta de tocar. O padre superior, ao flagrá-lo, mandou queimar a carta em desaprovação. Foi a gota d’água no tenso relacionamento. Após o ocorrido, o casal decidiu deixar de vez o aldeamento e partir para o Rio de Janeiro em busca de uma vida menos restrita.

Após perambular por várias regiões do Rio, Miguel fixou-se com a esposa no Recôncavo da Guanabara. A localidade de Inhomirim, próxima ao início do caminho das minas que começava no fundo da baía, caracterizava-se pela produção de alimentos e pela ordem escravista. Embora tenha se afastado do controle missionário, ele perdeu a principal proteção perante a escravidão ou formas análogas: o status de “índio aldeado”. Um fator, no entanto, favoreceu a adaptação ao novo cenário: o ofício de carpinteiro. A profissão o alçou a um patamar diferenciado em relação a boa parte da população despossuída, já que em uma sociedade hierárquica como a que havia na América, este era um relevante fator de distinção social, pois lhe dava acesso a ofertas de trabalho mais convenientes.

Sem dispor de moradia certa, Miguel percorria o Recôncavo, buscando abrigo nas fazendas de colonos onde prestava serviços. Ele vivia nas senzalas, em contato direto com escravos. A proximidade com os cativos e com o mundo da escravidão contribuiu para que ele assumisse outra função: a de capitão do mato. Ao manter-se vigilante a possíveis fugas e revoltas nas senzalas, Pestana conquistou a confiança dos proprietários locais. Sempre atento a alternativas que pudessem melhorar sua condição, Miguel se mostrou capaz de obter vantagens a partir de conhecimentos cotidianos, favorecendo a sua nomeação como capitão do mato na freguesia de Inhomirim, um sinal de ascensão social. Em uma sociedade marcada pela escravidão, capitães como ele cumpriam papel crucial na defesa desse sistema, atuando em benefício dos senhores. 

Contudo, os contatos de Miguel com africanos não se limitaram às senzalas ou à perseguição de escravos fugitivos. Em uma ocasião, ao capturar um africano foragido no caminho das minas, Miguel encontrou com o negro uma bolsa supostamente mágica, capaz de conferir proteção a quem a possuísse. Foi o primeiro contato com a mandinga, que viria a ser parte essencial de sua vida. Crente nas capacidades da bolsa, Miguel converteu-se em ardente seguidor da mandinga, ensinando-a a negros com quem convivia e vendendo bolsas a interessados em obter poderes. O fiel objeto se tornou um catalisador das múltiplas influências culturais que ele vivenciou. Mais do que um item de proteção, a bolsa de mandinga funcionava como fonte de prodígios diversos. De acordo com seus relatos aos inquisidores, Miguel acreditava que a bolsa o protegia de perigos, incluindo facadas e tiros, conferia valentia, sorte e até poder de sedução sobre mulheres. Unindo elementos da simbologia cristã, crenças diversas com as quais teve contato e componentes materiais reinterpretados em torno de um artefato culturalmente híbrido, mas claramente de origem africana, a bolsa de mandinga era, acima de tudo, uma resposta às suas aspirações e às dificuldades do cotidiano colonial.

A grande mudança em sua trajetória, porém, ocorreu quando acabou preso na fatídica visita episcopal em Inhomirim, onde residia. Acusado de feitiçaria, Miguel foi alvo da investigação inquisitorial. De início, ele foi levado ao aljube (como se designavam as prisões eclesiásticas) do Rio de Janeiro, onde esperou cinco anos até ser transferido para Lisboa. Durante esse período, os depoimentos em seu processo afirmam unanimemente que Miguel, mesmo preso, continuava a vender bolsas de mandinga e cartas de tocar a quem o visitava. Seus clientes incluíam negros, mulatos e até mulheres brancas, que lhe pagavam pelos serviços. Inusitado, tal fato denota a difusão das crenças ligadas à religiosidade popular, bem como a fama de Pestana como mandingueiro.

Ao deixar o aljube, ele não teve muito o que comemorar. Até chegar a Lisboa e ser remetido aos cárceres secretos da Inquisição, Miguel passou por maus momentos nos meses de 1743 que esteve a bordo da nau São Lourenço. Ao embarcar em direção a Lisboa, foi a primeira vez que experimentou a travessia que séculos atrás havia possibilitado ao Santo Ofício estender os seus tentáculos até a América. No Velho Mundo, Miguel seria julgado e sentenciado às galés pela Inquisição em 1744, tornando-se um dos poucos indígenas da América portuguesa a ser condenado pelo Santo Ofício.

 

Fontes de referência para esse texto: CORRÊA, Luís Rafael Araújo. Feitiço caboclo: um índio mandingueiro condenado pela Inquisição. Jundiaí: Paco Editorial, 2018.

 

(Luís Rafael Araújo Corrêa, professor da Licenciatura em História do Colégio Pedro II e Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor de artigos e livros sobre História, como a obra “Feitiço Caboclo: um índio mandingueiro condenado pela Inquisição” e “Insurgentes Brasílicos: uma comunidade indígena rebelde no Espírito Santo Colonial”. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/1617387706503921 )

Nascimento

01/01/1701Data atribuída
Brasil Capitania do Espírito Santo (1534 – 1821)

Revolta

Origem Étnica

Etnia Indígena

Condição Social

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