O MARINHEIRO João Cândido. A Illustração Brazileira, Rio de Janeiro, n. 37, p. 176, 01 dez. 1910. (APESP).
João Cândido Felisberto nasceu no dia 15 de janeiro de 1880, na Fazenda Coxilha Bonita, no município de Encruzilhada do Sul, Rio Grande do Sul. Era filho de João Felisberto Pires e Ignácia Cândido Pires, ambos escravizados que pertenciam ao casal Gaspar Simões Pires e Florinda Cândida de Lima, proprietários de grandes extensões de terra na região. Seu pai trabalhava com o gado na fazenda e sua mãe provavelmente era escravizada doméstica, trabalhava como parteira e conhecia o uso da flora medicinal. Ignácia e Felisberto casaram-se em junho de 1879.
João Cândido nasceu nove anos após a Lei do Ventre Livre e, portanto, já não partilhava da mesma condição de seus pais. Não nasceu escravo, mas assim como muitos dos nascidos do ventre livre, sua liberdade constava apenas no papel assinado pela Princesa Isabel em 1871 e era fortemente desafiada pela dura realidade brasileira, ainda escravista. O caminho mais comum para os nascidos livres era continuar trabalhando para os senhores dos seus pais, em condições não muito distintas dos cativos. Alguns anos depois, em 1888, a escravidão seria abolida, porém a perspectiva para os ex escravos não apontava para uma inserção justa no mercado de trabalho.
Uma opção diferente para os jovens libertos estava na Marinha de Guerra. Ela representava uma oportunidade de soldo, moradia, alimentação e especialização profissional. Em 10 de dezembro de 1895, apresentou-se no Quartel General de Marinheiros, na cidade do Rio de Janeiro.
Nos anos que seguiram, João Cândido desempenhou diversas funções nos navios, o que lhe permitiu uma formação completa nas suas habilidades, como experiência em batalhas, municiamento e deslocamento de tropas, além de operar o maquinário nas embarcações. No início de 1910, aos 30 anos, ele já era um marinheiro experiente, capacitado para atuar em navios à vela, a vapor e mistos. Além disso, tinha se especializado em artilharia e havia rodado o mundo na década de 1900, navegando pelos mares e rios. Passou por locais como o Rio Amazonas, Argentina, Cabo Verde, Inglaterra e Estados Unidos.
Apesar da escalada na sua carreira, João Cândido conheceu também o outro lado da Marinha: os castigos físicos, sobretudo a chibata, o atraso tecnológico, a falta de higiene nos navios, a má qualidade da água e dos alimentos. Em suas viagens pelo mundo, teve contato com diversos marinheiros e pôde observar diferentes realidades das Marinhas. Ao mesmo tempo, viu de perto conflitos políticos e aprendeu, ele próprio, sobre política. Nos porões dos navios brasileiros em 1910, João Cândido se firmava como liderança. Aos 22 dias do mês de novembro, seu nome entraria para a História.
Naquele dia, os marinheiros – encabeçados por João Cândido no encouraçado Minas Gerais – tomaram quatro navios da esquadra brasileira após um marinheiro ser punido com 250 chibatadas Os rebeldes exigiam melhores condições de trabalho e o fim dos castigos corporais na Marinha de Guerra. Após expulsarem das embarcações os oficiais contrários ao movimento, os marinheiros – em sua maioria negros – navegaram pela Baia de Guanabara e realizaram disparos contra o Rio de Janeiro, demonstrando imenso conhecimento de manobras e organização. Depois de dias de negociação intensa das forças políticas na capital, decidiu-se pela anistia aos revoltosos. Mas o perdão durou pouco. Em dezembro foram presos muitos participantes da revolta, inclusive João Cândido.
No dia 22 de dezembro de 1910 ele foi mandado para o presídio da Ilha das Cobras. O marinheiro foi posto em uma solitária com mais 17 homens, também detidos pelo envolvimento na revolta. A cela, encravada em pedras, impedia a entrada de ar e luz natural. Os presos eram alimentados apenas com pão e água e não havia banheiro. Para desinfetar o local, era jogada por debaixo da porta uma mistura de cal e água. Naquela noite, o silêncio pouco a pouco abafava os ouvidos de João Cândido e indicava a trágica morte de seus companheiros. Apenas ele e mais um, ao amanhecer, haviam sobrevivido. Os demais morreram por asfixia, por aspirar a cal depois que a água evaporou.
Algum tempo depois, João Cândido foi enviado para o Hospital dos Alienados e lá permaneceu por dois meses. Mesmo após receber alta, ainda enfrentou mais dois anos preso na Ilha das Cobras e, depois de solto, um julgamento no Conselho de Guerra da Marinha. Ele e outros oficiais foram absolvidos, mas a instituição a qual serviram durante tantos anos foi gradualmente excluindo os remanescentes da Revolta da Chibata.
Agora livre, João Cândido estava amarrado ao peso do seu passado. De um lado, repórteres o achavam aonde ele ia. O marinheiro tornou-se notícia no mundo. Por outro lado, a dificuldade de conseguir um emprego, por conta da perseguição de oficiais da Marinha, que ameaçavam quem contratasse João Cândido como marinheiro, tornava sua vida muito mais árdua. Sem emprego fixo, sem aposentadoria, com uma família para sustentar, o herói que não saía dos holofotes da mídia lutava diariamente pela sua sobrevivência.
E assim foi, até o fim de sua vida. Mudou-se para São João de Meriti, na Baixada Fluminense. Trabalhou nos portos do Rio de Janeiro com movimentação de cargas e descarregando peixes. Em 1933 aderiu ao movimento Integralista, chegando a ser líder do núcleo da Gamboa, no Rio de Janeiro. João Cândido faleceu em 6 de dezembro de 1969, aos 89 anos.
A história e memória do Almirante Negro travam diversas batalhas entre heroismo e apagamento, desde 1910 até hoje. Sua atuação histórica na Revolta da Chibata foi retratada em filmes como “Cem anos sem chibata”, sob a direção de Marcos Manhães Marins e celebrada em canções, como a célebre “Mestre Sala dos Mares” de João Bosco e Aldir Blanc. João Cândido também foi samba enredo de escolas de samba, o mais recente em 2024, com “Glória ao Almirante Negro!” da Paraíso do Tuiuti. Na literatura, Edmar Morel – amigo pessoal de João Cândido – publicou o livro “A Revolta da Chibata”, que cunhou o nome pelo qual o movimento ficou conhecido e até hoje é referência para estudos sobre o episódio. O Almirante Negro também é Herói Municipal em São João de Meriti e ganhou estátuas em Encruzilhada do Sul, sua cidade natal, e na Praça XV, no Rio de Janeiro.
Por outro lado, na memória da Marinha do Brasil, João Cândido foi apagado e sua luta, deturpada na narrativa oficial da instituição, se resume a quebra de hierarquia.
Tramita atualmente na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei n° 4046/2021, de autoria do Senador Lindbergh Farias (PT/RJ) que propõe a inscrição do nome de João Cândido no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria.
Mesmo com diversos ataques à sua figura, o Almirante Negro inspirou e inspira movimentos políticos e representa uma resistência heroica do homem negro que acabou com a chibata na Marinha.
(Giovanna Wermelinger, graduanda no curso de História da Universidade Federal Fluminense, bolsista PIBIC – CNPq)
Fontes de referência para esse texto:
NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. “Contra a chibata, canhões.” Revista Impressões Rebeldes, Rio de Janeiro, ano 12, no. 1, Maio de 2024.
NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. João Cândido: o mestre sala dos mares. 1. ed. Niterói: EdUFF, 2020.
MOREL, Marco. “No calor da revolta”. Revista Impressões Rebeldes, Rio de Janeiro, ano 12, no. 1, Maio de 2024.
Sem Nome, "João Cândido". Impressões Rebeldes. Disponível em: https://www.historia.uff.br/impressoesrebeldes/pessoa/joao-candido/. Publicado em: 25 de maio de 2024.