Rebeldes / Personalidade

Damiana da Cunha e Manoel da Cunha

  • Capitania de Goiás (1748 – 1821)

Biografia

Apesar de sua relativa fama na região de Goiás, onde viveu, a indígena caiapó Damiana da Cunha ainda é um nome pouco conhecido. Vinda ao mundo por volta de 1779, ano em que seu irmão Manoel já era nascido, Damiana se tornaria uma liderança respeitada por muitos indígenas e brancos. A menina, de quem não sabemos o nome caiapó, recebeu o batismo católico em 1781, sendo apadrinhada por ninguém menos que Luís da Cunha Menezes, então governador da capitania de Goiás. 

O motivo de ter recebido o ilustre padrinho é que Damiana era neta de um grande líder caiapó, Angraí-oxá. Naquele momento, a Coroa portuguesa esperava que o governador seguisse as diretrizes traçadas anos antes pelo Marquês de Pombal, que previam, entre outras medidas, atrair os indígenas sem usar a violência aberta. A ideia era, através de promessas, presentes e agrados às lideranças nativas, incorporar à sociedade envolvente os muitos povos que permaneciam longe da submissão aos brancos. 

Cansados das duras batalhas contra os colonizadores e afetados por doenças e pela fome, muitos caiapós entenderam que viver em áreas demarcadas pelos lusos seria uma forma de sobreviverem. Tais áreas eram conhecidas como aldeamentos, onde os nativos deveriam trabalhar, aprender a religião católica, o idioma português, dentre outras transformações esperadas pelos colonizadores – mas não necessariamente acatadas pelos indígenas. Voltemos a Damiana e seu irmão, também afilhado do governador de Goiás. 

Escolhida para morar por um tempo na casa de seu padrinho, a pequena Damiana certamente recebeu ali instruções culturais e religiosas de acordo com a sociedade colonial. Nada é dito sobre a razão da preferência por Damiana em detrimento de Manoel. Talvez tenha sido pelo fato de a menina ser mais nova, portanto, mais “maleável” para receber uma educação não indígena. Deixando a casa de seu padrinho, provavelmente quando ele saiu do cargo, Damiana cresceu no aldeamento de São José de Mossâmedes, onde se casou sucessivamente com dois militares não indígenas. Não foram encontradas quaisquer referências a filhos nascidos destes casamentos. 

A posição ocupada por Damiana, enquanto neta de cacique e afilhada do governador, lhe permitiu exercer um papel diferente do esperado do gênero feminino naquela sociedade, associado às atividades domésticas, ao domínio privado e à subordinação social. Ela atuou ativamente na incorporação de indígenas aos aldeamentos. Ocorridas entre 1808 e 1831, as expedições por ela comandadas consistiam em se deslocar para a área dos rios Araguaia e Camapuã e convencer seus pares não aldeados a segui-la. Obtendo considerável sucesso, a cada ida Damiana retornava com dezenas de caiapós, adquirindo o respeito das autoridades de Goiás. Em 1831, a líder retornou doente, vindo a falecer no mesmo ano. 

Como vemos, Damiana não era exatamente uma rebelde, apesar de sua trajetória contrariar as expectativas – do passado e mesmo do presente – acerca de que papéis cabiam a uma mulher, sobretudo uma mulher indígena. Além disso, sua história enseja mais algumas palavras sobre seu irmão Manoel, muito mais marcado por atos de, digamos, rebeldia. 

Após a morte de Damiana, as condições do aldeamento de São José de Mossâmedes decaíram muito, acelerando o processo de esvaziamento do local. Nesse contexto, Manoel deixou de agir conforme o esperado pelas autoridades brancas. Até então, ele ocupava o cargo de diretor de Mossâmedes: administrava recursos, intervinha nos casos de fuga e aplicava penalidades. Mas, em 1833, Manoel foi preso, sob acusação de incitar os indígenas à fuga. 

Em certa carta, o presidente da então província de Goiás, José Rodrigues Jardim, afirmava ter descoberto que os índios se preparavam para fugir, “seduzidos por Manuel da Cunha”. Ao falar com Manoel, Jardim ficou convencido de que ele não apenas passara a incentivar fugas, como planejava fugir e o prendeu. Criado na convivência com os colonos, o irmão de Damiana cooperou com eles por muito tempo, mas, a certa altura da sua vida, considerou que tal cooperação não valia mais a pena. 

Aos olhos dos colonizadores, a carreira de Manoel terminou de uma forma nada louvável, o que explica que o foco de cronistas como Joaquim Norberto de Sousa e Silva tenha sido Damiana e não seu (rebelde) irmão, de quem não foi possível sequer saber as circunstâncias e a data de sua morte. 

A fragmentária biografia dos irmãos nos revela algo que, por muito tempo, não recebeu a devida ênfase: embora os planos e ações de extermínio dos indígenas existissem, os povos originários seguiam traçando múltiplas políticas de sobrevivência. Fosse fugindo, promovendo revoltas ou, como Damiana, agindo como seres hábeis, adaptáveis, capazes de conquistar um lugar no mundo dos brancos, encontramos atuações que contradizem a ideia de que os “índios” eram um bloco homogêneo, composto por meras vítimas fadadas a desaparecer. 

(Suelen Siqueira Julio, doutora em História pela Universidade Federal Fluminense e professora do Colégio Pedro II)

 

Fontes de referência para este texto:

JULIO, Suelen Siqueira. Damiana da Cunha: uma índia entre a “sombra da cruz” e os caiapós do sertão (Goiás, c.1780-1831). Niterói: Eduff, 2017. 

SOUSA E SILVA, Joaquim Norberto de. Biographia: Damiana da Cunha. RIHGB, Rio de Janeiro, v. 24, 1861. p. 525-537.

Nascimento

1779Data atribuída
Capitania de Goiás (1748 – 1821)

Revolta

Origem Étnica

Etnia Indígena

Condição Social

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