AGUIAR, Patricia Figueiredo. Uma sedição no sertão – A rusga em Cuiabá (1834). EDUFMT: Cuiabá, 2020.
30 de maio de 1834 / agosto de 1834
A sedição de 30 de maio de 1834 foi articulada por uma elite emergente que almejava o controle político da Província de Mato Grosso. Executada por soldados e por uma pequena parcela da população, mobilizada sob o incentivo de seus líderes, a revolta representou uma tentativa de reorganizar o poder local. Durante cerca de três meses, essa elite nativa assumiu a liderança da Província, até ser afastada com a chegada do presidente nomeado pela Regência, Antônio Pedro de Alencastro. Com o desfecho do conflito, dezenas de portugueses e alguns brasileiros foram mortos e os envolvidos processados e condenados, mas todos os sentenciados recorreram da decisão, permanecendo na cadeia enquanto aguardavam o resultado de seus requerimentos. Contudo, em relação à camada social mais baixa dos participantes, não foi possível reunir informações que esclarecessem o destino desses prisioneiros após a interposição dos recursos, o que mantém em aberto parte importante da trajetória dos protagonistas dessa tentativa frustrada de mudança política.
O período regencial brasileiro foi uma época ao mesmo tempo rica e conturbada, quando aparecem associações políticas e acontece um acirramento de lutas que se espalharam por quase todo o Império. Em observância a tais fatos, Marco Morel considera esse o contexto da explosão da palavra pública e da manifestação da pluralidade das ideias. Um período que se não foi puramente “(…) ‘desordeiro’, também não significou somente expressão de posições monolíticas e definidas. (…) foi, portanto, tempo de esperanças, inseguranças e exaltações, tempo de rebeldia e de repressão.” (Morel, 2003, p. 10).
Em Mato Grosso, depois da abdicação de D. Pedro I, em 1831, a agitação política também se fez presente, especialmente em torno das reações contrárias à participação de portugueses na administração provincial, quando então houve “(…) a canalização das insatisfações contra os brasileiros adotivos, então considerados responsáveis pelos problemas socioeconômicos que afligiam a região.” (Corrêa, 2000, p. 54, grifo do autor).
No século XIX, especialmente após a independência do Brasil em 1822 e a Constituição de 1824, estabeleceu-se uma distinção legal entre o brasileiro nato (nascido na terra) e o naturalizado (também chamado de adotivo, na época). Essa diferenciação era usada para definir direitos civis e políticos, como ocupar cargos públicos, votar e ser votado.
A partir de 1833, a elite política de Cuiabá, que apresentava tendências nativistas, passou a ter maior participação na máquina administrativa, ocorrendo o mesmo por toda a Província na medida em que o partido nativista conquistou cadeiras na Câmara de Cuiabá, no Conselho Geral, Conselho de Governo e também na Assembleia Geral (Corrêa, 2000, p.61). No entanto, apesar dessa ampliação de influências no âmbito político, “(…) a presidência ainda estava em mão dos partidários da (…) antiga elite, cujos membros, fossem eles nascidos em Portugal ou no Brasil, eram chamados caramurus (…).” (Sena, 2009, p. 39).
A sedição de maio de 1834 foi resultado do embate entre grupos com interesses distintos dentro da elite local, organizados em duas associações políticas: a Sociedade dos Zelosos da Independência e a Sociedade Filantrópica. De tendência liberal, os Zelosos da Independência buscavam consolidar a separação de Portugal e evitar qualquer tentativa de restauração, combatendo especialmente os políticos portugueses que estavam no poder em Cuiabá. Defendiam, ainda, a retirada dos portugueses da Província na primeira metade da década de 1830. Já a Sociedade Filantrópica, de orientação conservadora, reunia os tradicionais detentores do poder, tanto portugueses quanto brasileiros – conhecidos como caramurus –, que compunham a elite dominante no momento da sedição.
Vale destacar que a idealização da sedição teve origem na Sociedade dos Zelosos da Independência de Mato Grosso. Ela surgiu em um período em que começavam a ser estabelecidas tentativas de mobilização e união nacional, expressas na ampliação da sociabilidade política, como a imprensa, as manifestações cívicas, os movimentos de protesto ou revolta e as associações. Principalmente essas últimas conheceram então uma inédita amplitude em termos de quantidade, diversidade e abrangência, revelando o esforço de diferentes grupos sociais em intervir nos rumos da política provincial e nacional no contexto pós-independência (Morel, 2003).
Diferente de outras associações espalhadas pelo Império Brasileiro, a Sociedade dos Zelosos da Independência era composta por membros com ideais liberais, reunindo tanto moderados quanto exaltados, que uniram forças em torno de objetivos comuns. Dos moderados, herdaram a defesa de uma liberdade moderna que não ameaçasse a ordem imperial, com maior autonomia para o Legislativo e o Judiciário, e respeito aos direitos civis conforme previsto na Constituição. Já dos exaltados, incorporaram ideias mais radicais, como a ampliação da cidadania política, reformas sociais mais profundas, o fim gradual da escravidão e uma relativa igualdade social (Aguiar, 2020).
A trajetória dos Zelosos da Independência deixou claro o predomínio do grupo exaltado, especialmente quando enfatizaram, em diversas ocasiões, que chegara o momento de construir um “Brasil para os brasileiros”, que no contexto dessa associação, significava a diminuição da influência dos portugueses nos espaços de poder.
Suas ações foram fundamentais para conquistar o prestígio político. Em 1833, ano de sua formação, a sociedade se tornou maioria na eleição para a Câmara de Cuiabá e elegeu seu idealizador, Antônio Luís Patrício da Silva Manso, para representar a Província como deputado na Câmara Geral no Rio de Janeiro, entre 1834 e 1837 (Sena, 2009, p. 38-39).
Naquele contexto, a associação dos liberais uniu os destinos de alguns participantes da sedição de 1834, que buscavam ascensão na política mato-grossense e compartilhavam o objetivo de garantir a independência do Brasil. Essa ideia não se referia mais ao rompimento formal com Portugal — ocorrido em 1822 —, mas à consolidação do projeto de nação brasileira. Para a Sociedade dos Zelosos da Independência, em 1834, garantir a independência significava fortalecer a soberania nacional frente à presença e influência, ainda forte, de portugueses que ocupavam cargos de prestígio e poder nas províncias, além de defender uma estrutura política que efetivasse os princípios liberais e assegurasse maior autonomia local dentro da ordem imperial.
Além disso, almejavam reestruturar o cenário político da Província, acreditando que essa transformação só seria possível caso assumissem cargos de prestígio, como o de comandante das armas e o de presidente da província.
Na noite de trinta de maio de 1834, os Zelosos da Independência reuniram cerca de oitenta homens, entre soldados da Guarda Nacional e cidadãos comuns, para colocar em prática o plano de expulsão dos portugueses da Província. Sob o comando do Tenente Sebastião Rodrigues da Costa e de seu ajudante, Eusébio Luís de Brito, o grupo se encontrou no Campo d’Ourique, então principal praça da cidade de Cuiabá e atual localização do Centro Geodésico da América do Sul.
O levante tinha como objetivo remover do Mato Grosso os principais representantes da elite tradicional, detentora de privilégios e que ocupava os mais altos cargos administrativos e militares, assim como exercia ampla influência política nas decisões locais. No entanto, devido ao clima de tensão, agravado por boatos e discursos inflamados, a intenção inicial foi substituída por uma onda de violência, marcada por perseguições e assassinatos contra portugueses e membros da elite local associados ao antigo governo. Após os ataques em Cuiabá, formaram-se expedições para procurar os fugitivos, que se estenderam aos principais núcleos urbanos da Província, como as Vilas de Diamantino e Poconé, além de distritos da capital, como Serra Acima (Chapada dos Guimarães), Rio Abaixo (Santo Antônio do Leverger), Rio Acima (Nossa Senhora do Rosário do Rio Acima) e a distante Miranda (Aguiar, 2020, p.77).
Durante os confrontos, onze casas de brasileiros adotivos foram arrombadas, evidenciando a intensificação da violência e a tentativa de desestruturar os símbolos de poder da elite local.
Segundo Valmir Batista Corrêa (2000, p. 103), os líderes da sedição “(…) souberam canalizar as insatisfações e frustrações dos soldados inferiores, da população urbana pobre e de vagabundos, visando a derrubada do grupo dominante na região e a tomada do poder”. No entanto, o autor destaca que a ação desses grupos dominados pela fúria fugiu ao controle dos idealizadores, desencadeando “manifestações incontroláveis de violência” (Corrêa, 2000, p. 103).
A Rusga teve seu auge entre o final de maio e os primeiros dias de junho de 1834, período marcado por confrontos intensos. Apesar da brevidade dos episódios mais sangrentos, as consequências políticas e judiciais do levante — incluindo prisões, julgamentos e represálias — prolongaram-se por vários meses, estendendo seus efeitos até o final daquele ano. Esse processo ocorreu após os rebeldes permanecerem no controle da Província por cerca de três meses, período em que tentaram implementar sua agenda política até serem destituídos.
Os sediciosos permaneceram no poder do Mato Grosso até a chegada do presidente nomeado pela Regência, Antônio Pedro de Alencastro. Durante esses três meses tentaram impedir a posse do novo presidente, buscando consolidar o controle político da Província. Contudo, apesar dos esforços para barrar a nomeação e manter sua influência, a posse de Alencastro foi inevitável, e ele governou de 29 de setembro de 1834 a 31 de janeiro de 1836. Em seus discursos oficiais destacava que pretendia restabelecer a estabilidade política que os revoltosos haviam interrompido.
O processo judicial decorrente da sedição foi conduzido pelo novo presidente da província, com o objetivo de restabelecer a ordem e a tranquilidade em Mato Grosso. O julgamento teve início em 31 de outubro de 1834, após o presidente encaminhar uma portaria ao promotor público de Cuiabá, o capitão Joaquim Fernandes Coelho, para que este desse início ao processo investigativo. Ao todo, foram envolvidos vinte e um réus, dos quais cinco foram acusados de liderar a sedição.
A acusação desses cinco indivíduos teve grande repercussão no cenário político mato-grossense, dada a influência dos réus junto ao grupo dirigente local. Entre os principais envolvidos estavam o comerciante e fazendeiro de gado José Alves Ribeiro, o vereador Bento Franco de Camargo, o professor de Lógica, vereador e membro do Conselho do Governo, Brás Pereira Mendes, o capitão e promotor público José Jacinto de Carvalho e o juiz de Direito Pascoal Domingues de Miranda.
O processo judicial foi marcado por momentos de tensão, em especial com a substituição de juízes de paz considerados parciais e a tentativa de manipular os rumos das investigações, pois, mesmo após a eclosão da sedição, os Zelosos da Independência ainda exerciam influência na Província.
A ação da justiça ocorreu de forma dessemelhante, haja vista os líderes da sedição – melhor posicionados socialmente – terem ganhado a liberdade pouco mais de um ano depois de enviados à Corte, enquanto os outros, que haviam se tornado prisioneiros em Mato Grosso e não possuíam nenhuma influência sobre as questões políticas, esperavam suas sentenças anos depois, esquecidos nas celas.
Essa busca por poder político na Província mato-grossense foi um dos fatores mais decisivos para a eclosão da Rusga, na noite de 30 de maio de 1834, em Cuiabá e arredores, um acontecimento que deu nova configuração ao cenário político-administrativo de Mato Grosso, de modo que antigas figuras saíram de cena para a entrada de outras.
Em suma, a sedição foi idealizada por uma elite emergente que buscava o controle político de Mato Grosso. Ela foi executada por soldados e uma pequena parcela da população, incentivada por seus líderes. No entanto, a elite nativa, que desejava consolidar seu poder e esteve no comando da Província por três meses, foi destituída de seu posto após a posse do presidente da província, Antônio Pedro de Alencastro, nomeado pela Regência.
(Patricia Figueiredo Aguiar, doutora em História pela Universidade Federal de Mato Grosso. Autora do livro: “Uma sedição no sertão – A rusga em Cuiabá (1834)”)
Desde 1822, No Mato Grosso, havia conflitos entre as elites políticas de Cuiabá e da cidade de Mato Grosso (atual Vila Bela), que disputavam o poder provincial. Um ano antes, em 1821, a elite cuiabana iniciou a reformulação do comando local, com a deposição do capitão-general Francisco de Paula Magessi Tavares, resultado da luta de militares, burocratas e comerciantes locais. Esses confrontos geraram instabilidade política contínua no século XIX. Após a abdicação de D. Pedro I, em 1831, a agitação aumentou, especialmente contra a participação de portugueses na administração. A partir de 1833, a elite nativista de Cuiabá ampliou sua influência, conquistando cadeiras na Câmara, no Conselho Geral, no Conselho do Governo e na Assembleia Geral, mas a presidência da província ainda estava sob controle da antiga elite.
O turbulento Período Regencial, marcado por instabilidade política e disputas entre facções locais. Em Mato Grosso, o antilusitanismo tornou-se estratégia de elites liberais em ascensão, que buscavam maior participação na política provincial e a afirmação de uma identidade nacional, rompendo com o passado colonial. Os portugueses foram convertidos em símbolo dos males da província, alvo da hostilidade popular.
3 meses de duração
18 condenados
Sedição de 30 de maio
AGUIAR, Patricia Figueiredo. Uma sedição no sertão – A rusga em Cuiabá (1834). EDUFMT: Cuiabá, 2020.
CORRÊA, Valmir Batista. História e Violência em Mato Grosso: 1817- 1840. Campo Grande, MS: Ed. UFMS, 2000.
MOREL, Marco. O período das Regências (1831-1840). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
SENA, Ernesto Cerveira de. Entre Anarquizadores e Pessoas de Costumes – a dinâmica política nas fronteiras do Império: Mato Grosso (1834-1870). Cuiabá: EdUFMT; Carlini & Caniato, 2009.
SIQUEIRA, Elizabeth Madureira. A Rusga em Mato Grosso: edição crítica de documentos históricos. 1992. 3 v. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), Universidade de São Paulo, São Paulo, 1992.
Sem Nome, "A Rusga". Impressões Rebeldes. Disponível em: https://www.historia.uff.br/impressoesrebeldes/revolta/rusga/. Publicado em: 03 de julho de 2025.