BEATTIE, Peter M. Tributo de sangue: exército, honra, raça e nação no Brasil, 1864-1945. Campinas: Ed. da Unicamp, 2009.
01 de novembro de 1875 / 01 de novembro de 1875
No dia 1 de novembro de 1875, por volta das 11 horas da manhã, a cidade de Franca, localizada na província de São Paulo, foi surpreendida por um movimento armado sedicioso. Aproximadamente 80 pessoas, armadas de cassetetes, invadiram a paróquia local, interromperam os trabalhos e rasgaram as listas com a relação geral dos cidadãos alistados para o Exército, bem como o exemplar da Lei nº 2.556, de 26 de setembro de 1874. Essa legislação estabelecia o recrutamento obrigatório para homens livres e libertos entre 19 e 30 anos, com base no sorteio universal.
Tal fenômeno ficou conhecido como “rasga-listas”, uma reação direta a uma alteração no funcionamento do recrutamento militar no Brasil — movimento que ocorreu em várias localidades do país, como por exemplo, nas províncias de Pernambuco, Ceará, Alagoas, Sergipe, Bahia e Rio Grande do Norte.
O recrutamento militar no Brasil, além de ser forçado, era sinônimo de arbitrariedades e violência, constituindo-se em um mecanismo de controle social. Denominado “Tributo de Sangue”, o serviço militar era amplamente rejeitado pela população, sendo associado a um castigo reservado aos considerados “vadios”, “desonrados” e “ociosos” pela sociedade da época.
A Lei nº 2.556 e o Decreto nº 5.881, de 27 de fevereiro de 1875, garantiram as condições para a implementação da nova legislação, alterando a lógica do recrutamento até então vigente. Os sediciosos consideravam que a nova lei não diferenciava os homens ditos “honrados” daqueles tidos como “sem honra”, já que o mecanismo do sorteio universal se baseava na imprevisibilidade (SANTOS, 2021, p. 9).
A desconfiança em relação à nova legislação não se restringiu à população mais pobre, atingiu também as elites. Líderes locais, responsáveis pela execução do recrutamento — como juízes de paz, delegados, subdelegados, o pároco local e inspetores de quarteirão —, deveriam garantir as exigências mínimas do Estado sem perder sua influência sobre a população pobre da localidade. O temor desse estrato social era de que a nova lei atingisse a distribuição de mão-de-obra, tendo em vista que, pobres livres eram subordinados dessa elite em atividades de ofícios.
Uma característica específica dos protestos dos “rasga-listas” na província de São Paulo foi sua ocorrência nas proximidades da província de Minas Gerais. As paróquias atingidas foram Batatais, Casa Branca, Cajuru, Rifaína e Franca.
A ocupação da região de Franca teve início no século XVIII, sendo um importante entreposto comercial da “Estrada de Goyases” (CHIACHIRI, 1986, p. 18). Em 1804, Franca foi elevada a distrito; em 1805, tornou-se freguesia, denominada “Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Franca”; e, em 1824, foi elevada à categoria de vila, passando a se chamar Vila Franca do Imperador. A principal atividade econômica da região até meados do século XIX foi a criação de gado. Com o advento da cultura do café, a partir da segunda metade do século XIX, e sua consolidação na década de 1870, a pecuária passou a ocupar posição secundária.
Em Franca, os sediciosos, sob a liderança de Theodósio Ferreira Lopes, lavrador conhecido na freguesia como Tico, foram responsáveis por organizar o movimento. Cerca de 80 pessoas invadiram a paróquia de Nossa Senhora da Conceição, rasgaram as listas de recrutamento e evadiram-se do local. Contudo, apenas 32 pessoas foram identificadas e autuadas por crime de sedição, previsto no artigo nº 111 do Código Criminal do Império do Brasil de 1830.
Inicialmente, os sediciosos foram presos e, posteriormente, aguardaram o prosseguimento do processo em liberdade. O processo durou até 1882, e os 32 acusados eram moradores locais, integrados à dinâmica social da região. Entre os participantes, a maioria era composta por lavradores, mas havia também negociantes e comerciantes.
O primeiro réu a ser julgado, a apresentar testemunhas de defesa e o único a ter o processo conduzido individualmente foi Pedro Garcia Duarte, filho do então subdelegado Francisco Garcia Duarte — o que demonstra a influência dos potentados locais na maneira como eles interpretaram da Lei nº 2.556 e como eles conduziram todo o processo. Ao término do processo, todos os indiciados pelo crime de sedição foram absolvidos. A justificativa da absolvição foi a de não punir indivíduos com base em uma legislação que, à época, já não era executada.
A Lei nº 2.556, ao estabelecer um caráter de imprevisibilidade, acabou por gerar reação entre os homens livres pobres, que a consideravam opressora, e também entre as autoridades locais, que a viam como uma possível limitação de suas áreas de influência. Assim, a Lei nº 2.556 tornou-se, no Império brasileiro, uma “letra morta”, não sendo efetiva em nenhum momento ao longo dos anos.
(Vinícius Tadeu Vieira Campelo dos Santos – É mestre em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), professor da rede pública e privada no município de Araras-SP e coordenador dos cursos de Ciências Humanas do Centro Universitário de Araras –UNAR. É autor do livro: A Revolta dos rasga-listas: a subversão do recrutamento militar na província de São Paulo (1875-1889). )
Criação da lei nº 2556, de 26 de setembro de 1874, que ficou conhecida como a Lei do Sorteio Militar. Transformou as práticas de recrutamento que havia até então, atingindo a todos que procuraram garantir os seus interesses quanto ao serviço das armas (poder central, agentes administrativos e população).
Após o conflito contra o Paraguai (1864-1870, maior conflito armado da América do Sul, tornou-se evidente a indisposição da nação brasileira em relação ao serviço das armas. As dificuldades enfrentadas durante o desenrolar da guerra evidenciaram a fragilidade da instituição militar. Críticas ao recrutamento forçado já eram recorrentes entre os militares desde a primeira metade do século XIX; contudo, foi apenas em 1866 que se apresentou o primeiro projeto de lei que previa o sorteio militar.
Depois de anos de debates e discussões no Parlamento brasileiro, foi promulgada a Lei nº 2.556, de 26 de setembro de 1874. A nova legislação estabelecia a obrigatoriedade de que todo homem livre ou liberto, entre 19 e 30 anos, estivesse disponível para o serviço militar, seja no Exército, seja na Armada.
A Lei nº 2.556, ao instituir o sorteio, alterou profundamente a lógica de recrutamento vigente até então, marcando uma mudança significativa na relação entre Estado, sociedade e serviço militar, resultando em movimentos sediciosos em diversas províncias do Império.
Essas revoltas ocorreram em Pernambuco, Ceará, Alagoas, Sergipe, Bahia, Rio Grande do Norte e Minas Gerais. Embora cada movimento apresentasse características próprias, todos compartilhavam a aversão à nova lei de recrutamento, considerada arbitrária e tirânica por atingir diretamente o seio familiar das populações afetadas.
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BEATTIE, Peter M. Tributo de sangue: exército, honra, raça e nação no Brasil, 1864-1945. Campinas: Ed. da Unicamp, 2009.
CHIACHIRI FILHO, José. Do Sertão do rio Pardo à vila Franca do Imperador. Ribeirão Preto: Ribeirão Gráfica e Editora, 1986.
KOWARICK, Lúcio. Trabalho e vadiagem: a origem do trabalho livre no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.
MENDES, Fábio Faria. Recrutamento militar e a construção do Estado no Brasil imperial. Belo Horizonte: Argvmentum, 2010.
SALDANHA, Flávio Henrique Dias. Os oficiais do povo: a Guarda Nacional em Minas Gerais oitocentista, 1831-1850. Annablume/Fapesp, 2006.
SANTOS, Vinícius T. V. C. A lei nº 2.556 e a subversão do recrutamento militar no nordeste da província de São Paulo (1875-1889). 2019. 160 f. Dissertação (Mestrado em História e Cultura Política) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista, Franca, 2019.
Sem Nome, "Revolta dos Rasga-listas". Impressões Rebeldes. Disponível em: https://www.historia.uff.br/impressoesrebeldes/revolta/revolta-dos-rasga-listas-2/. Publicado em: 04 de dezembro de 2025.