Revoltas

Revolta de Carrancas

Província de Minas Gerais (1821-1889)Freguesia de Carrancas

Início / fim

13 de maio de 1833 / 16 de maio de 1833

Vista aérea da Fazenda Bela Cruz, onde ocorreu o massacre, no atual município de Cruzília-MG. Imagem por Ricardo Melo (Filme Fazendas Pilares - Bela Cruz. Disponível no YouTube).

A tarde do dia 13 de maio de 1833 seria fatídica e traçaria um novo rumo para alguns escravos das fazendas da família Junqueira, na Freguesia de Carrancas, Minas Gerais. Após assassinarem um dos membros da família na fazenda Campo Alegre, o grupo de escravos insurretos tomou rumo para outra propriedade dos Junqueira, a fazenda Bela Cruz. Nela realizaram um verdadeiro massacre, matando todos os brancos ali existentes. O levante foi motivado por rumores de que a escravidão fora abolida em Ouro Preto. Parte do grupo de rebeldes, que a essa altura já ultrapassava 30 pessoas, seguiu para a fazenda Bom Jardim, onde o proprietário aguardava o ataque e havia armado seus cativos de confiança. Ventura Mina, o principal líder da rebelião, foi morto nessa ocasião. Já no dia 15 de maio as autoridades, assustadas com a proporção e violência da revolta, comunicavam os acontecimentos e trabalhavam na punição, que foi exemplar. Dezessete participantes foram condenados e dezesseis deles enforcados. Mas o medo gerado pelo que se passou em Carrancas não cessou com a morte dos envolvidos e assombrou os senhores de escravos e a elite imperial brasileira.

As fazendas Campo Alegre e Bela Cruz na província de Minas Gerais onde esses escravos viviam faziam parte de uma grande extensão de terra concedida pela Coroa a João Francisco, português de São Simão da Junqueira, por volta de 1750. Na terceira década do século XIX, as propriedades de seus filhos estavam entre as melhores e as mais bem equipadas, com grande escravaria para os padrões da época (entre 30 e até mais de 100 cativos), centenas de cabeças de gado, cavalos e porcos e vendiam grande parte de sua produção na Corte. A importância socioeconômica da família também se refletiu no campo da política, pois um de seus membros, Gabriel Francisco Junqueira, tornou-se deputado geral da província de Minas por várias legislaturas seguidas ao longo da década de 1830.

Os escravos das fazendas cuidavam dos animais, trabalhavam nas roças, cuidando das lavouras de milho, feijão, arroz, fumo, etc. Alguns deles exerciam a atividade de tropeiro e estabeleciam contato frequente com a Corte. Com isso ficavam sabendo, a seu modo, dos últimos acontecimentos do período das Regências, dos conflitos entre brasileiros e lusitanos e dos significados da liberdade, além de se tornarem responsáveis, não só pelo transporte de mercadorias, mas também de notícias. 

A fazenda Campo Alegre estava sob a responsabilidade do filho do deputado, Gabriel Francisco de Andrade Junqueira, que, na ausência do pai, conduzia todos os negócios da fazenda, além de supervisionar o trabalho dos escravos. No dia 13 de maio de 1833 seu pai se encontrava na Corte, cuidando de suas funções no parlamento nacional. Antes do meio-dia, como de costume, foi até a roça fiscalizar o trabalho de seus escravos. Como sempre fazia, solicitou a um cativo da casa que arriasse o seu cavalo, montou-o e seguiu em direção à roça. Ao chegar, nada percebeu de estranho e, como sempre, encontrou os escravos preparando a terra, cuidando das lavouras de milho e feijão, dentre outras. A tranquilidade era apenas aparente. Sem condições de oferecer nenhuma reação, ainda montado em seu cavalo, Gabriel Francisco foi surpreendido por Ventura Mina, que o retirou à força de cima do animal, e, juntamente, com Julião e Domingos, deram-lhe várias porretadas na cabeça, levando-o à morte alguns instantes depois.

Naquele instante, alguns dos escravos que estavam trabalhando na roça formaram um grupo e seguiram em direção à sede da fazenda Campo Alegre, todos liderados por Ventura Mina. Além de Julião e Domingos, o grupo agora era bem maior e contava com a participação de Antônio Resende, João, cabundá, André, crioulo, e José, mina, dentre outros. Só não atacaram a sede da fazenda porque um escravo, de nome Francisco, havia saído às pressas em direção à sede da fazenda, montado a cavalo, e avisou aos outros familiares do deputado o que havia acontecido na roça. Os escravos chegaram até ao terreiro da fazenda, mas perceberam que ela estava guarnecida por capitães do mato. 

Os insurgentes, então, “arrepiaram a carreira tomando a direção da fazenda Bela Cruz”. A fazenda ficava, aproximadamente, uma légua de distância da de Campo Alegre.  Ao chegarem na roça da Bela Cruz, os insurgentes relataram aos outros escravos o que ocorrera em Campo Alegre, convocando-os a fazer o mesmo com os brancos dali. A partir daquele momento o grupo se ampliara bastante, ultrapassando o número de 30 cativos, que logo se dirigiu à sede da fazenda.

Os escravos invadiram a casa grande, investindo diretamente contra José Francisco Junqueira, sua mulher, Antônia Maria de Jesus, que se recolheram rapidamente e se trancaram num quarto. Mas nem por isso escaparam da violência dos cativos. O escravo Antônio Retireiro buscou um machado e o “entregou a Manoel das Vacas o que ficou trabalhando para arrombar a porta, enquanto aquele (…) trouxe uma pistola carregada saltando o muro, e foi arrombar a outra porta de trás”. Depois de arrombarem a porta do quarto, Antônio Retireiro, com a arma que tinha na mão, disparou na face de seu senhor, ficando mortalmente ferido e “ainda teve que sofrer muitos maiores tormentos, com sua mulher, filha e neta, os quais foram todos massacrados com inaudita crueldade dentro daquele quarto a olho de machado, tendo parte nesta incrível matança todos os escravos vindos de Campo Alegre (…) e grande parte dos da Bela Cruz”. No auto de corpo de delito consta que a mulher de José Francisco Junqueira, além de apresentar ferimentos no rosto, couro cabeludo e grande efusão de sangue, cujas feridas foram feitas com instrumentos cortantes, também se encontrava bastante ensanguentada da cintura para baixo, causando certo constrangimento às testemunhas, impedindo que dessem prosseguimento ao exame.

Ana Cândida da Costa, viúva de Francisco José Junqueira e duas crianças seriam as próximas vítimas dos escravos. Esta foi morta a golpes de foice e cacetadas no quintal da dita fazenda pelos escravos Sebastião, Pedro Congo, Manoel Joaquim e Bernardo. O estado em que foi encontrada era lastimável, pois sua cabeça e rosto estavam irreconhecíveis e não se achava “unida ao corpo”. Já o menino José “foi morto pelo crioulo Andre, e o mesmo Pedro Congo e Manoel Joaquim, a menina Antonia (…) foi morta pelo Manoel das Caldas, Sebastião e Bernardo, e a criança de peito (…) foi morta pelo crioulo Quintiliano que a mandou lançar pelo Euzébio no cubo do Moinho”.

Os escravos utilizaram-se de instrumentos de trabalho – paus, foices e machados – e mesmo armas de fogo para cometer os assassinatos nas duas fazendas. A crueldade com que foram executadas as mortes, relatadas com detalhes no auto de corpo de delito, certamente contribuiu para extremar o pavor em relação às insurreições escravas, reforçar os mecanismos de controle e repressão e revelar o caráter aterrador da violência coletiva em si. 

Os escravos estavam determinados a exterminar todos os brancos daquela propriedade, tanto que parte deles permaneceu na Bela Cruz e preparou uma emboscada para também assassinar o genro de José Francisco, Manoel José da Costa, mandando avisá-lo “do sucesso ali acontecido, e que todos tinham já partido para o Jardim e acudindo ele a casa sem refletir no engano assim que foi entrando pela porteira saíram os que estavam de emboscada, e o mataram com paus”. Ele estava na fazenda Campo Alegre, quando foi assassinado o filho do deputado. Alguns escravos ficaram atrás da senzala, outros, atrás de uma casa de carros e um terceiro grupo, encostados no muro, pela parte de dentro. Assim que Manoel José da Costa atravessou a porteira estes “caíram sobre ele e o mataram a bordoadas, e por fim não ficando ainda bem morto deram lhe um tiro”.

Liderados pelo escravo Ventura, o outro grupo seguira em direção à fazenda Bom Jardim, para ali fazerem o mesmo e darem prosseguimento à insurreição. Encontraram, pelo caminho, um agregado da mesma fazenda que se dirigia à Bela Cruz em busca de mantimentos, que foi assassinado. Ao chegarem nesta fazenda encontraram forte resistência por parte do proprietário e de seus escravos, sendo o líder Ventura ferido gravemente. João Cândido da Costa já havia sido informado dos trágicos acontecimentos de Campo Alegre e Bela Cruz e, rapidamente, armou parte de sua escravaria de confiança e a reuniu em uma sala e ficou à espera dos insurgentes. A maioria dos escravos ficou trancafiado na senzala. Depois de um tempo, Ventura Mina e os insurgentes apareceram, sendo recebidos à bala, o que causou a imediata dispersão do grupo.

O confronto teve como resultado a morte do líder Ventura Mina e de mais quatro companheiros, João Inácio, Firmino, Matias e Antônio Cigano e o fim da revolta. A convocação da Guarda Nacional e o esquema repressivo foram acionados logo após esse último combate. Embora o líder tenha sido morto, havia um receio de que a insurreição se estendesse, uma vez que muitos escravos se embrenharam nas matas da região, sendo capturados alguns dias depois.

No dia 15 de maio de 1833, o juiz de paz de Pouso Alto colocou a câmara municipal de Resende a par dos acontecimentos de Carrancas, pois os escravos planejavam atacar outras fazendas, como a do Favacho e Traituba, ambas também pertencentes à família Junqueira, e depois se dirigir a Baependi e outros lugares.

Os escravos rebeldes de Carrancas foram exemplarmente punidos, sendo que 16 deles foram condenados à pena de morte por enforcamento e executados em praça pública (12 sofreram a pena capital em dezembro de 1833 e os quatro últimos em abril de 1834), com o cortejo da Irmandade da Misericórdia, na vila de São João del Rei. Alguns escravos foram condenados como cabeças de insurreição, de acordo com o artigo 113 do Código Criminal de 1830, que estabelecia a pena capital para crimes dessa natureza. Outros foram condenados pelo crime de homicídio qualificado, artigo 192 do mesmo código. O escravo Antônio Rezende também foi condenado à pena máxima, que foi comutada em galés perpétua, depois de exercer a função de carrasco dos 16 companheiros de insurreição.

Trata-se da maior condenação coletiva à pena de morte e efetivamente aplicada a escravos na história do Brasil Império.

Entre os meses de março a maio do ano de 1833, a elite moderada da Província de Minas Gerais estava dividida e um grupo alcunhado de “caramurus” tomou o poder em Ouro Preto, por um período de dois meses. A revolta de Carrancas está intimamente ligada a este acontecimento. Nos autos, todos os réus justificaram a sua participação na insurreição por acreditar que estariam livres ao se associarem aos caramurus, pois estes haviam acabado com a escravidão em Ouro Preto. Pelo que indicam as fontes, esse boato teria sido veiculado por Francisco Silvério Teixeira, homem branco, negociante, acusado de ser o incitador dos escravos, juntamente com o líder Ventura Mina. Não é relevante discutir se de fato os caramurus propunham a abolição da escravidão na província de Minas Gerais e a tivessem consumado em Ouro Preto, o que historicamente não tem nenhuma veracidade, mas sim de compreender a importância dos boatos no fomento das insurreições escravas, na medida em que insulavam a expectativa da liberdade entre os cativos. À sua maneira, os escravos de Carrancas atribuíram significados próprios à liberdade naquele contexto e se apropriaram das identidades políticas em disputas, das quais os seus senhores e oponentes faziam parte, e se lançaram numa tentativa dramática e extremamente arriscada para se livrarem do cativeiro. O depoimento de uma das testemunhas é revelador da percepção do que teria dito um dos escravos antes de chegar à fazenda Jardim, quando tomou as armas que havia na casa de uma agregada: “vocês não costumam falar nos caramurus, nós somos os caramurus, vamos arrasar tudo”.

Os acontecimentos de Carrancas também tiveram profunda repercussão no Império e no governo da Regência. Dentre os quatro projetos enviados à Câmara dos Deputados, no dia 10 de junho de 1833, um se referia ao julgamento dos crimes praticados por escravos, encaminhado pelo Ministro da Justiça Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho. Os estudos historiográficos mais recentes, dentre os quais incluo o meu, têm trazido claras evidências de que o projeto de 1833 tem ligação direta com os acontecimentos de Carrancas e que foi amplamente discutido na Câmara e no Senado e antecipou em muitos pontos o texto da “lei nefanda”, como ficou conhecida pelos seus críticos décadas mais tarde, a Lei n. 4, de 10 de junho de 1835, que estabeleceu a pena de morte para escravos envolvidos no assassinato de seus senhores, familiares e prepostos.

O 13 de maio aqui retratado marcou profundamente a história dos negros da região sul de Minas Gerais, na luta desesperada pela liberdade, em um contexto em que essa palavra era repetida à exaustão, tanto no prelo quanto nas ruas e nas bocas, mas com múltiplos significados e apropriações, em uma época de construção das bases do Estado Imperial brasileiro.

(Marcos Ferreira de Andrade, doutor em História pela Universidade Federal Fluminense. Professor Associado dos cursos de graduação e pós-graduação em História da Universidade Federal de São João del-Rei.)

Antecedentes

A Sedição Militar de 1833 ou a Revolta do Ano da Fumaça, conforme explicado abaixo.

Conjuntura e contexto

A revolta ocorreu nos anos iniciais do período das Regências (1831-1840), especialmente no contexto pós-abdicação do Imperador D. Pedro I (07/04/1831). A conjuntura política da província de Minas Gerais foi sobressaltada por uma sedição militar que ocorreu entre março e maio de 1833, que também ficou conhecida como a Revolta do Ano da Fumaça (período em a cidade de Ouro Preto permaneceu sob uma neblina durante meses). A Revolta de Carrancas está intimamente ligada à Sedição Militar, que ocorreu entre 22 de março a 23 de maio de 1833. Tratou-se de uma disputa de poder e conflito entre os liberais moderados e os caramurus, também conhecidos no Rio de Janeiro como restauradores (aqueles que acreditavam na restauração do trono de D. Pedro I). Os caramurus tomaram o poder na capital em Ouro Preto. Francisco Silvério Teixeira, inimigo político da família Junqueira, que em sua maioria fazia parte do grupo liberal moderado alijado do poder, propagou o boato entre os escravos da família Junqueira, sobretudo com Ventura Mina, de que os caramurus haviam abolido a escravidão em Ouro Preto. Essa foi a motivação principal da insurgência entre os cativos rebeldes. Do lado de Francisco Silvério Teixeira parece ter sido uma estratégia para por fim ao domínio da família Junqueira na região e mobilizar parte da Guarda Nacional que se encontrava aquartelada em São João del-Rei e retardar a derrota dos caramurus que se sinalizava na primeira semana de maio de 1833.

Números da Revolta

Menos de 24h de duração
60 participantes
17 condenados
16 executados

Outras designações

Massacre em Carrancas

Massacre da Bela Cruz

Levante de Bela Cruz

Revolta de Bela Cruz

Grupos sociais

Lideranças

Ações de protesto não-violentas

  • Desobediência
  • Fuga de escravizados

Ações de protesto violentas

  • Destruição de propriedade
  • Emboscada
  • Execuções
  • Invasão de propriedade
  • Linchamento
  • Mobilização de escravos armados
  • Morte de inimigos
  • Tiros

Repressão

Contenção

  • Capitães do mato
  • Cerco
  • Envio de autoridade
  • Mobilização da Guarda Nacional
  • Prisões

Punição

  • Açoite e castigos público
  • Enforcamento
  • Execução
  • Exposição apenas da cabeça
  • Venda de escravos em leilão
  • Venda de escravos para fora da região

Instâncias Administrativas

  • Câmara Municipal
  • Juiz de Paz
  • Juiz Municipal
  • Ministério da Justiça

Bibliografia Básica

ANDRADE, Marcos Ferreira de. A pena de morte e a revolta dos escravos de Carrancas: a origem da “lei nefanda” (10 de junho de 1835). Tempo. 23 (2), Mai-Ago 2017, 265-289.

ANDRADE, Marcos Ferreira de. “Nós somos os caramurus e vamos arrasar tudo”: a história da Revolta dos escravos de Carrancas, Minas Gerais (1833). In REIS, João José & GOMES, Flávio. (Orgs.) Revoltas escravas no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 2021. p. 302- 310.

ANDRADE, Marcos Ferreira de. Rebeliões escravas na Comarca do Rio das Mortes, Minas Gerais: o caso Carrancas. Afro-Ásia. Salvador, no 21-22 (1998-1999), 45-82.

PIROLA, Ricardo. Escravos rebeldes nos tribunais do Império: uma história social da Lei de 10 de junho de 1835. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2015.

RIBEIRO, João Luiz. No meio das baratas as galinhas não têm razão: a lei de 10 de junho de 1835: os escravos e a pena de morte no Império do Brasil (1822-1888). Rio de Janeiro: Renovar, 2005.

Arquivos e fontes manuscritas

Fonte Primária

Arquivo Histórico do IPHAN. Seção São João del-Rei: Processo-crime de Insurreição (1833), caixa PC 29-01; Inventário de José Francisco Junqueira, 1833, cx. 377; Petição de Antônio Resende (1848), cx. 05-14.

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Como Citar

Sem Nome, "Revolta de Carrancas". Impressões Rebeldes. Disponível em: https://www.historia.uff.br/impressoesrebeldes/revolta/revolta-de-carrancas/. Publicado em: 20 de dezembro de 2024.