Rebeldes / Personalidade

Ângela Maria Gomes

  • Reinos de Uidá e Grande Popo, golfo do Benim
  • Capitania de Minas Gerais (1720 – 1821)

Biografia

Nascida, provavelmente, no primeiro quartel do século XVIII, na região dos reinos de Uidá e Grande Popo, situados no golfo do Benim, na África ocidental, Ângela Maria Gomes, de nação courana, foi capturada e traficada ainda jovem como escrava para a América portuguesa. Após uma longa e penosa travessia atlântica, foi levada à região central da capitania de Minas Gerais, então em pleno auge da exploração aurífera. Estabeleceu-se na freguesia de Nossa Senhora da Boa Viagem de Itabira (atual cidade de Itabirito), pertencente ao termo e à comarca de Vila Rica, onde viveu como escrava e, algum tempo depois, obteve sua alforria.

À semelhança de muitas mulheres africanas que transitaram do cativeiro à liberdade, Ângela Maria Gomes vivia de seu “trabalho e agência”. Os ganhos auferidos por meio do seu ofício de padeira e da venda dos pães e quitandas que produzia lhe permitiram tornar-se senhora de sua casa e de escravos. Essa nova condição, aliada à inserção em vantajosas redes de solidariedade, conferiu-lhe respeitabilidade e reconhecimento social. Passou, desse modo, a ocupar postos de destaque na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de Itabira do Campo, a mais importante confraria negra da localidade. Documentos históricos revelam que Ângela Maria foi eleita rainha do Rosário para os anos de 1751 e 1752. Esse título, reservado a mulheres de proeminência, conferia-lhe uma posição central na organização e condução das celebrações religiosas promovidas por aquela irmandade católica, combinando prestígio, liderança e influência no âmbito devocional da comunidade. Tempos mais tarde, ela voltaria a ocupar novamente o posto. 

A atuação de Ângela Maria Gomes no interior da confraria também se evidencia quando viabilizou o ingresso de sua escrava Ana como membro da Irmandade do Rosário, e ao fazer-lhe doação de uma “vara de prata” para que ela pudesse exercer o cargo de juíza da mesa da administração com dignidade e galhardia. Como devota ativa e benemérita colaboradora, a courana Ângela Maria prestou apoio financeiro em diversas oportunidades, custeando missas e festejos religiosos. Antes de sua morte, deixou ainda como legado uma “moradinha de casas”, incorporada ao patrimônio da confraria.

Todo esse envolvimento, no entanto, não foi suficiente para afastar Ângela Maria Gomes da vigilância da Inquisição. Seu destacado protagonismo na Irmandade do Rosário e a autonomia que alcançou parecem ter provocado desconfiança e incômodo em alguns homens livres daquela sociedade escravista. Prova disso é que, em 1760, a africana foi denunciada ao Tribunal do Santo Ofício, inclusive por alguns de seus confrades, por práticas de feitiçaria, que teriam provocado malefícios, envenenamentos e mortes de senhores, escravos e animais.

Tida como “a mestra das feiticeiras”, Ângela Maria Gomes foi acusada de promover calundus horrendos. Esses rituais, de origem africana, frequentemente eram acompanhados por cantos, danças e batuques, e tinham como intuito estabelecer conexões com divindades ou o sobrenatural. Era dito que tais cerimônias, realizadas em sua casa, se prolongavam durante a noite e eram marcadas por sons que causavam grande temor, semelhantes aos de diversos animais. Além disso, a africana de nação courá teria sido vista no adro da igreja desenterrando um defunto, com o propósito de obter meios para seus sortilégios. Circulavam também rumores sobre o enterramento de uma panela com seus trabalhos e sobre danças realizadas ao redor da árvore da gameleira em noites de lua cheia.

O conteúdo dessas denúncias estava impregnado de preconceitos e estereótipos acerca das práticas religiosas africanas. Contudo, para além dessas acusações, é possível identificar, nos elementos simbólicos e materiais envolvidos, aspectos essenciais da cosmovisão e da experiência espiritual de mulheres como Ângela Maria Gomes, oriunda da Costa da Mina e praticante da religião dos voduns. Sua crença fundamentava-se numa dinâmica fluida, que permitia, e até incentivava, a incorporação de novos elementos. Assim, não havia qualquer contradição ou oposição em integrar a seu universo religioso práticas e devoções da fé católica. Em outros termos, era plenamente admissível vivenciar o catolicismo e as tradições africanas de maneira complementar, adotando uma abordagem inclusiva que harmonizava ambas as expressões espirituais.

Nenhuma das denúncias contra Ângela Maria Gomes avançou, tampouco resultou na abertura de um processo inquisitorial. Enfrentando as adversidades e mantendo-se firme diante de seus opositores, a courana foi reeleita para o posto de rainha do Rosário mais uma vez, em 1771, reafirmando sua autoridade e prestígio dentro da comunidade. No ano seguinte, consta ter concedido liberdade a seu escravo Félix, de nação mina, a quem havia coartado (modalidade de alforria paga em parcelas) pela quantia de 234 oitavas de ouro. Nessa mesma ocasião, enquanto rainha do Rosário, confirmou a realização dos festejos em honra de Nossa Senhora, destacando-se como uma de suas principais patrocinadoras.

A trajetória de Ângela Maria Gomes personifica a experiência de inúmeras mulheres africanas – escravas e libertas –, que souberam transitar com habilidade entre os universos africano e ocidental-católico. Ao conjugar esses mundos de forma estratégica, ela não apenas garantiu sua presença ativa em ambos, mas também se destacou como figura central nas engrenagens sociais e religiosas de sua comunidade. A história dessa personagem revela, portanto, sua notável capacidade de resistência, adaptação e agência, assim como sua inserção nas dinâmicas desiguais e hierarquizadas da escravidão.

(Bruno Martins de Castro, doutorando em História Social pela UFRJ, bolsista FAPERJ Doutorado Nota 10 e professor efetivo de História da SEE/MG.)

Fontes de referência para o texto:

MAIA, Moacir. De reino traficante à povo traficado: a diáspora dos courás do golfo do Benim para Minas Gerais (América portuguesa, 1715-1760). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2022.

RODRIGUES, Aldair; MAIA, Moacir (orgs.). Sacerdotisas voduns e rainhas do Rosário: mulheres africanas e Inquisição em Minas Gerais (século XVIII). São Paulo: Chão Editora, 2023.   

Nascimento

1720Data atribuída

Morte

1780Data atribuída
Reinos de Uidá e Grande Popo, golfo do Benim Capitania de Minas Gerais (1720 – 1821)

Revolta

Origem Étnica

Etnia Africana e portos de procedência

Condição Social

Profissão/Ocupação

Comentários

  1. Maria Drummond disse:

    Apesar de citar aas obras do historiador Moacir Castro Maia, que levantou a documentação para o estudo da biografia da courana Angela Maria Gomes em sua tese de doutorado, fica confuso para mim, depois da leitura desse texto, se Bruno Martins “parafraseou” (CC) os textos de Moacir – pois a forma é muito próxima, quase colada nos escritos desse historiador ( me parece que sim) ou se desenvolveu outra pesquisa sobre a Ângela. O texto do Bruno é dúbio ou omisso. Gostaria de ver esclarecimentos.

  2. Bruno Martins de Castro disse:

    O professor Moacir Maia é, indiscutivelmente, a maior autoridade no estudo da trajetória de Ângela Maria Gomes, figura histórica de notável complexidade e fascínio. A biografia que aqui se apresenta fundamenta-se, de maneira exclusiva, nas contribuições do referido autor, especialmente nas duas obras referenciadas ao final do texto.

    Importa destacar que não realizei pesquisa direta em fontes primárias sobre Ângela Maria. Meu primeiro contato com essa personagem se deu por ocasião da resenha que escrevi sobre o livro “Sacerdotisas voduns e rainhas do Rosário”, publicada na Revista de História da Sociedade e da Cultura, da Universidade de Coimbra.

    Embora eu me dedique à pesquisa da história social da escravidão e da liberdade, minha aproximação a Ângela Maria é mediada pelos trabalhos do professor Maia, nos quais me baseio integralmente. Foi, portanto, com surpresa — e sincero reconhecimento pela confiança — que recebi o convite do portal Impressões Rebeldes para apresentar ao público mais amplo a história dessa mulher extraordinária.

    A referência aos trabalhos do historiador Moacir Maia é apresentada com rigorosa honestidade intelectual e está em plena consonância com os princípios éticos da divulgação científica.

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Como Citar

Sem Nome, "Ângela Maria Gomes". Impressões Rebeldes. Disponível em: https://www.historia.uff.br/impressoesrebeldes/pessoa/angela-maria-gomes/. Publicado em: 05 de junho de 2025.

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