LIMA, Pablo Luiz de Oliveira. Marca de Fogo: O Medo dos Quilombos e a Construção da Hegemonia Escravista (Minas Gerais, 1699-1769). Belo Horizonte: UFMG, 2008.
1710 / abril de 1711
Data aproximadaNo labirinto de ruas de terra batida e ambições desmedidas que marcavam o Ribeirão do Carmo em 1711, um sopro de revolta ecoava entre o mar de montanhas e as senzalas. No alvorecer do século XVIII, enquanto o ouro escorria das serras de Minas Gerais para os cofres portugueses, o medo das elites coloniais crescia à sombra de uma ameaça invisível: a insurreição. Numa conspiração que pretendia eliminar seus senhores, os líderes, escravizados (designados “negros minas”) que pertenciam a Antônio Furquim da Luz, um poderoso local, tramaram um levante geral mas foram denunciados por cativos de um outro proprietário. As autoridades respondem com prisões e execuções.
No início daquele ano, no arraial do Ribeirão do Carmo (atual Mariana), eclodiu a primeira conspiração organizada por pessoas escravizadas de que se tem registro na região. Elaboraram um projeto audacioso que expunha a tensão latente em uma sociedade construída sobre o açoite. No entanto, antes que o primeiro golpe de faca fosse desferido, antes que o primeiro branco tombasse ao chão, o plano foi traído por delatores.
No coração das Minas Gerais, entre bateias e picaretas, um grupo de homens e mulheres escravizados tramava um levante. O objetivo era claro: assassinar os senhores, tomar o controle da região e instaurar uma nova ordem. A conspiração era liderada pelos escravizados de Antônio Furquim da Luz, um senhor de posses e influência. A delação partiu de um grupo de escravizados pertencentes a outro senhor, Pedro Monteiro de Mattos.
Convencidos – seja pelo medo, por promessas de benevolência ou, quem sabe, por disputas étnicas –, denunciaram os insurgentes às autoridades. A documentação em questão, em nenhum momento, descreve a etnia dessas pessoas, generalizando-as como “pretos minas”, uma designação que pode englobar diversas etnias que, com suas diferenças, compartilhavam conflitos e confluências.
A resposta foi imediata: os líderes foram capturados e a repressão se abateu sobre os suspeitos, selando, naquele instante, o destino de muitos e lançando um longo rastro de terror sobre a capitania. A conspiração frustrada não apenas ceifou vidas, mas também serviu como catalisador para políticas ainda mais repressivas contra a população negra escravizada, intensificando o cerco e a vigilância nos anos seguintes.
O início do século XVIII foi marcado pela corrida do ouro, um frenesi que transformou as Minas Gerais em um caldeirão fervente de tensões sociais. Milhares de africanos, como bantus, congoleses, iorubás, fons e hauçás eram desembarcados no Brasil e levados diretamente para as lavras, onde, sob o sol inclemente e o peso das correntes, moldavam a paisagem e a economia da colônia. Mas sua presença não se resumia ao trabalho forçado. Como bem aponta Lima (2016, p. 78), as Minas eram um espaço de protagonismo negro. Homens e mulheres escravizados circulavam, negociavam, tramavam. E isso assustava a elite branca. A rebeldia pairava no ar como a poeira levantada pelos cascos dos cavalos.
Foi nesse clima que, em 9 de maio de 1711, o governador da Capitania de São Paulo e Minas do Ouro ordenou uma devassa para investigar o que foi descrito como um “levantamento intentado por negros minas no Ribeirão do Carmo” (Goulart, 1972. Apud Lima, 2016, p. 81). A denúncia partira daqueles que haviam sido aliciados para a revolta, mas, por razões que só eles conheciam, decidiram trair seus irmãos de cativeiro, seus malungos. O documento oficial (Ordem do Sor. Govor. e Capam…, 1711) registrava um pacto entre os conspiradores, unidos pelo desejo de eliminar a elite senhorial. Seus alvos principais eram Pedro Monteiro de Mattos e Antônio Furquim.
A repressão veio com força. Quatro pessoas escravizadas foram imediatamente presas: duas pertenciam a Furquim, uma ao Padre Contri e outra ao próprio superintendente responsável pela investigação, Jozeph Rabello Perdigão. A documentação não apresenta nenhuma descrição dessas pessoas, tampouco menciona seus respectivos nomes. Mulheres escravizadas foram torturadas; açoites e interrogatórios violentos buscavam arrancar informações sobre a conspiração, a existência de quilombos e as rotas de fuga que serpenteavam pelas matas (Lima, 2008, p. 72-75). A brutalidade com que foram tratadas não era um desvio, mas sim a norma do regime escravista.
O governador-geral Antônio Albuquerque Coelho de Carvalho exigiu que o caso fosse conduzido com mão de ferro. As punições deveriam ser exemplares: mutilações, enforcamentos públicos, suplícios minuciosamente calculados para imprimir o terror no coração daqueles que, porventura, cogitassem seguir o mesmo caminho. A revolta foi esmagada antes mesmo de eclodir, mas seu rastro foi profundo.
Ainda que tenha sido sufocada antes de se concretizar, a conspiração de 1711 deixou marcas indeléveis na história da capitania. O medo de novas insurreições cresceu entre os brancos, levando ao endurecimento das políticas repressivas. Passou-se a restringir ainda mais a circulação de escravizados, proibindo-se, por exemplo, que as negras de tabuleiro vendessem alimentos e bebidas nas lavras – um comércio considerado subversivo, pois facilitava encontros e articulações rebeldes.
Entretanto, talvez o aspecto mais intrigante dessa história seja a ocorrência da traição. O fato de terem sido escravizados os responsáveis por denunciar o levante expõe as fissuras internas da experiência do cativeiro. O regime escravista não era apenas opressor; era perverso, capaz de lançar uns contra os outros, de criar dilemas morais impossíveis. A sobrevivência, muitas vezes, exigia pactos dolorosos, escolhas que retumbavam para sempre.
A conspiração ia além dos homens que a encabeçavam; suas raízes estavam fincadas em territórios que, ainda hoje, carregam os ecos daquela resistência. A região onde se situavam as sesmarias de Furquim – atualmente um distrito de Mariana com o mesmo nome – abriga, nos dias atuais, quatro comunidades quilombolas certificadas: Vila Santa Efigênia, Embaúbas, Crasto e Engenho Queimado. O solo que um dia recebeu os passos firmes dos conspiradores de 1711 continuaria, ao longo do século XVIII, a ser palco de rebeliões, fugas e resistências, numa luta ininterrupta contra o cativeiro.
A conspiração de 1711 não foi um evento isolado. Não se sabe, ao certo, o desfecho dessa conspiração. Porém, poucos anos depois, em 1719, ocorreria a maior conspiração quilombola conhecida no Ribeirão do Carmo. Portanto, esses movimentos se inscrevem em uma longa tradição de resistência negra na América Portuguesa. A repressão que se seguiu não conseguiu extinguir o desejo de liberdade. Quilombos continuaram a se formar, novos levantes foram tramados. O espírito insurrecional jamais foi domado, apenas adiou-se até o momento certo. Os autos judiciais preservaram a conspiração de 1711 como um testemunho de luta. O que se perdeu foram os rostos, as vozes, os olhares dos que ousaram desafiar a ordem. Mas, se há algo que a história ensina, é que revoltas nunca morrem. Elas apenas esperam a hora certa para ressurgir.
(Vittor Policarpo Souza Martins, mestrando no Programa de Pós-Graduação em História (PPGHIS/UFOP) pesquisa identidade e território na comunidade quilombola Vila Santa Efigênia (Mariana, MG). Graduado em História pela UFOP, integra o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (NEABI) e o Grupo de Pesquisa Justiça, Administração e Luta Social (JALS))
O início da exploração aurífera na região de Ribeirão do Carmo trouxe para região um grande contingente de pessoas, principalmente escravizados. A exploração de sua força de trabalho e a violência cotidiana, somado a uma circulação relativamente autônoma, que tornava possível a comunicação e articulação de revoltas, culminou na conspiração descoberta em 1711.
No início do século XVIII, Minas Gerais viveu um intenso crescimento populacional e econômico com a descoberta do ouro, atraindo portugueses, bandeirantes, comerciantes e claro, movimentando grande número de escravizados para diferentes tipos de trabalho. A sociedade se estruturou em camadas distintas, cuja base estava no trabalho forçado dos negros trazidos da África e de outras regiões da colônia. As longas jornadas nas minas, péssimas condições e castigos violentos fomentaram revoltas e conspirações de escravizados ao longo de todo o Setecentos, criando uma tensão latente na sociedade e um medo recorrente na elite.
LIMA, Pablo Luiz de Oliveira. Marca de Fogo: O Medo dos Quilombos e a Construção da Hegemonia Escravista (Minas Gerais, 1699-1769). Belo Horizonte: UFMG, 2008.
MARTINS, Vittor Policarpo Souza. Os batuques do silêncio: patrimônio e educação quilombola no município de Mariana (Minas Gerais): uma análise transecular. 2023. 122 f. Monografia (Graduação em História) – Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de Ouro Preto, Mariana, 2023.
Ordem do governador Antônio Albuquerque ao superintendente Jozeph Rabello Perdigão para investigar a conspiração dos escravos. Arquivo Público Mineiro, APM-SC07, 09/05/1711
Ordem ao capitão Domingos Ferreira Pinto para prender escravos fugidos. Arquivo Público Mineiro, APM-SC07, 21/02/1711
Sem Nome, "Conjuração de escravizados". Impressões Rebeldes. Disponível em: https://www.historia.uff.br/impressoesrebeldes/revolta/conjuracao-de-escravizados/. Publicado em: 04 de janeiro de 2022.