SAAVEDRA, Renata Franco. Recenseamento e conflito no Brasil imperial: o caso da Guerra dos Marimbondos. Clio. Série História do Nordeste (UFPE), v. 1, p. 90-113, 2015.
dezembro de 1851 / fevereiro de 1850
Data aproximadaEm Pernambuco, no século XIX, o povo se revoltou porque seria contado. Os decretos nº 797 e 798 de 18 de junho de 1851 mandavam executar o Regulamento do Registro de nascimentos e óbitos, anunciado para janeiro do ano seguinte, e o Censo geral do Império, a se realizar no mês de julho de 1852. Às vésperas da execução do primeiro, homens livres pobres da província de Pernambuco e seu entorno se revoltaram contra as medidas, mobilizados, segundo relatos oficiais, pelo boato de que o interesse do Estado ao registrá-los seria o de escravizá-los. Os decretos foram apelidados de “Lei do Cativeiro”. Essa foi a Guerra dos Marimbondos, assim chamada, segundo Mário Melo, pioneiro no registro historiográfico da revolta, por causa do barulho (semelhante ao de um enxame de marimbondos) que anunciava a aproximação da multidão, que marchava a rasgar os editais das leis afixados nas portas das igrejas e a invadir fazendas e delegacias exigindo a suspensão das medidas. Os revoltosos tiveram sucesso em seu movimento: os decretos foram suspensos, o primeiro censo geral do Império só aconteceria duas décadas depois.
Duas grandes características do contexto são fundamentais para compreender a revolta: a primeira é a “expansão para dentro” operada pelo Estado Imperial em meados do século XIX. A expressão é usada por Ilmar Rohloff de Mattos e Wilma Peres Costa e se refere a um conjunto de ações do Estado Imperial no sentido de “apossar-se efetivamente do território, incorporá-lo pelo exercício de uma hegemonia política” (COSTA, 2005). Procedimentos de registro e medição da população são instrumentos indissociáveis dessa capilaridade do poder pretendida na época – que envolveu ainda o recrutamento de homens, a cobrança de impostos, a padronização de medidas, etc., medidas que enfrentaram diversas formas de resistência.
A história das estatísticas e de um controle demográfico no Brasil é atravessada por resistências e dificuldades. O processo de implementação de um controle demográfico no país foi primeiramente anunciado pelo Papado, em Roma. Desde o Concílio de Trento (1545-1563), que marcou a reação à Reforma Protestante e foi um momento de reafirmação da autoridade da instituição e do Papa e de dogmas católicos, a Igreja Católica instituiu formas de controle da sua população, definindo normas para padronizar os registros dos principais sacramentos que marcam o ciclo de vida dos cristãos católicos. A gradativa passagem dos cuidados desse controle para as mãos do Estado deu-se de forma bastante lenta: embora houvesse levantamentos censitários já no século XVIII (as chamadas listas nominativas), eles enfrentavam diversos obstáculos, tais como o temor da população ao fisco e ao recrutamento militar, a extensão dos territórios e o isolamento da população rural. Maria Luiza Marcílio (1974) destaca a precariedade das estatísticas na fase imperial brasileira. Em 1829, chega-se a criar uma comissão de estatística para organizar o censo imperial, mas ela é dissolvida após cinco anos, confirmando a intermitência de ações governamentais no sentido de padronizar e ampliar levantamentos demográficos. Assim, os registros de nascimentos e óbitos, realizados desde a época colonial pelo pároco – a certidão do batismo indicava data de nascimento, filiação e condição de livre ou escravo –, só viriam a ter seus procedimentos alterados com o decreto imperial de 18 de junho de 1851. Depois disso, os cartórios seriam os novos guardiões dessas informações. Logo, na Guerra dos Marimbondos, estava em jogo também a credibilidade e a autoridade das instituições civis, se comparadas às eclesiásticas.
A segunda característica do contexto a se considerar é a precariedade da liberdade, que dá sentido ao medo de escravização – frente a um Estado escravista em crise que poderia ter homens e mulheres pobres não brancos como potencial mão de obra escrava. Em grande medida, o medo se justifica. Primeiramente porque, como a historiografia demonstra (GRINBERG, 2007), a escravidão no país, principalmente ao longo do século XIX, estava longe de constituir condição estática: ao contrário, inseria-se numa teia de negociações altamente marcada por idas e vindas, em que alforrias, ações de liberdade e reescravizações eram relativamente comuns, em especial entre os escravos urbanos e de ganho, que tinham maior margem de manobra e estabeleciam contato com um leque mais variado de pessoas e informações.
Analisando o sertão mineiro, por exemplo, Judy A. Bieber Freitas encontrou mais de 50 denúncias de escravidão ilegal de livres entre 1850 e 1860. O fim do tráfico atlântico em 1850 potencializou esse processo (OLIVEIRA, 2005, p.122). Guillermo Palacios explora esse imaginário marcado por constantes ameaças à liberdade ao analisar a Guerra dos Marimbondos. O historiador escreve que, pelo fato de Pernambuco (como a maior parte do Nordeste) ter chegado a meados do Oitocentos contando com uma massa camponesa pauperizada que sobrevivia a grande custo frente aos avanços da plantation escravista, forjou-se na região “um imaginário coletivo fortemente condicionado – e delimitado – pelo contexto social e ideológico do cativeiro” (PALACIOS, 1997, p.123). Segundo Palacios, por conta da combinação de processos repressivos constantes, explorações comerciais intensas e grande ingerência do Estado no universo das comunidades rurais, construiu-se no imaginário dos cultivadores livres pobres “uma identidade umbilicalmente ligada à ideia da escravidão e à realidade empírica da emergência de um Estado hostil” (Idem, p.128).
Em janeiro de 1852, quando eclodiu a revolta, os rebeldes, caminhando em grupos, armados com pedaços de pau, facões e objetivos similares, rasgaram editais dos decretos que estavam em portas de igrejas e ocuparam fazendas e delegacias exigindo a suspensão das medidas. Como escreve Maria Luiza Oliveira, “havia uma noção própria de justiça, expressa nas ordens de soltar os presos não sentenciados, assim como os recrutas – alvo daquela que era percebida como sendo a maior injustiça de todas, o recrutamento obrigatório. Em Campina Grande levaram, além dos livros, as caixas de cordas e as palmatórias – assim não seriam nem registrados como escravos, nem tratados como tal. Seus atos estavam relacionados com seus objetivos, ao saquearem não buscavam dinheiro, mas alimentos, armas, munições. Isso ficou provado no assalto que fizeram ao 9º. Batalhão em São Lourenço da Mata, quando não tocaram no baú que tinha dois contos de réis, levando toda a bagagem “de guerra e boca”. O articulista do jornal liberal O Paladim, usou dessa notícia para refutar a ideia de que o povo era ignorante e fanático. Tinham um objetivo claro: não queriam a execução daquela lei. E falavam outra língua quando as autoridades tentavam explicar a razão da lei. Nas reuniões e nos momentos de soltar a voz, de gritar na praça, falavam contra os impostos, contra os poderosos e pela liberdade. E davam vivas ao rei. Houve mortes (cerca de 10), sendo que a mais propalada de todas foi a do juiz de paz de Vitória. Para a quantidade de homens armados andando “sem comando”, os “facinorosos”, “foram muito pouco violentos”. (OLIVEIRA, 2011, p.8).
O foco principal do movimento foi em Pernambuco, mas o mesmo foi expressivo também na província da Paraíba e se estendeu pelas províncias de Alagoas, Sergipe e Ceará. Os governos de Alagoas, Sergipe, Paraíba e Pernambuco lidaram com as revoltas de maneira diferenciada. Nas duas primeiras províncias se instauraram processos contra os “criminosos”. Segundo Maria Luiza Oliveira, “em Alagoas, foram quatro cabeças e sete “comprometidos”, todos absolvidos pelo “Jury do Termo da Imperatriz” em março. Em Sergipe houve a prisão de dois “sediciosos” e em seguida o pronunciamento de 30 pelo crime de sedição” (OLIVEIRA, 2010, p.363). Já nas províncias de Paraíba e de Pernambuco, o esforço do governo se deu no sentido de pacificação. A ordem era a de que os governantes se pautassem pela negociação, “afim de faserem desapparecer pelos meios legaes, e com toda a prudencia e moderação qualquer disposição hostil à execução do Regulamento”. Em Pernambuco, a tais recomendações soma-se a preocupação de “abafar” os ataques e difundir a ideia de que a província “goza de paz”. O discurso oficial buscava reduzir o levante a boatos espalhados por “noveleiros”, “partos de imaginações esquentadas, ou de refinada maldade”.
O fato de ser um movimento sem lideranças dificultou seu controle e abafamento. Dadas tais limitações, o combate “prudente” passou pela convocação do Frei Caetano de Messina para que ele atuasse como um mediador entre os governantes e os sublevados – mas não foi tão instantâneo e pacífico como alguns relatos dão a entender. As fontes mostram que juízes de paz e delegados pediam apoio ao presidente da província para conter os revoltosos. Ofício do Quartel do Destacamento de Vitória, por exemplo, confirma o clima de medo e declara que “não há munição” para lutar contra os revoltosos, afirmando que “todos os dias esperamos por algum açalto”, e destacando que “mesmo as mulheres andão todas armadas de faca de ponta, facões, canivetes e navalhas”.
Frente à revolta, sem condições de avançar com o cumprimento dos decretos naquele momento, o governo recuou e suspendeu os decretos.
(Renata Saavedra, jornalista e pesquisadora, Doutora em Comunicação e Cultura (UFRJ), Mestra em História (UNIRIO))
Promulgação dos decretos nº 797 e 798 de 18 de junho de 1851. Essas leis estabeleciam o Regulamento do Registro de nascimentos e óbitos, previsto para janeiro de 1852, e o Censo geral do Império, que deveria ser realizado em julho do mesmo ano.
A Guerra dos Marimbondos se insere em um contexto de aumento do controle estatal sobre o território e a população, como o recenseamento. Simultaneamente, havia um medo por parte da população livre e pobre de que esses registros seriam usados para escravizá-los. Esse receio, somado à desconfiança das instituições civis em relação às eclesiásticas, que tradicionalmente cuidavam desses registros, inflamou a revolta.
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Ronco da Abelha
SAAVEDRA, Renata Franco. Recenseamento e conflito no Brasil imperial: o caso da Guerra dos Marimbondos. Clio. Série História do Nordeste (UFPE), v. 1, p. 90-113, 2015.
PALACIOS, Guillermo. Imaginário social e formação do mercado de trabalho: o caso do Nordeste Açucareiro do Brasil no século XX. Revista Brasileira de Ciências Sociais, No. 31, pp. 123-139, 1997.
OLIVEIRA, Maria Luiza Ferreira de. Respostas do Estado à revolta contra a lei do Registro Civil ou a lei do cativeiro, 1851-1852. In: Wilma Peres Costa; Cecília Helena de Salles Oliveira; Vera Lucia Nagib Bittencourt. (Org.). Soberania e conflito: configurações do Estado Nacional no Brasil do século XIX. 1 ed. São Paulo: Hucitec, 2010, v. 1, p. 363- 388.
OLIVEIRA, Maria Luiza Ferreira de. O Ronco da Abelha: resistência popular e conflito na consolidação do Estado nacional, 1851-1852. In Almanack braziliense n.01, maio de 2005.
Mattos, Ilmar Rohloff de. Construtores e herdeiros: a trama dos interesses na construção da unidade política. Almanack Brasiliense nº1, maio de 2005; Costa, Wilma Peres. O império do Brasil: dimensões de um enigma. Almanack Brasiliense nº1, maio de 2005
MARCÍLIO, Maria Luiza. “Evolução da população brasileira através dos censos até 1872”. Anais de História, v. VI, 1974; pp. 115-37.
GRINBERG, Keila. “Senhores sem escravos: a propósito das ações de escravidão no Brasil Imperial”. Almanack brasiliense, n°6, novembro de 2007.
COSTA, Wilma Peres. O império do Brasil: dimensões de um enigma. Almanack Brasiliense nº1, maio de 2005.
Diário de Pernambuco. Edições de 1851/1852. Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro), Seção de periódicos, B1,3,03 e B1, 3, 02.
Pernambuco – Ofícios dos presidentes ao Ministro da Justiça (1850 a 1853), Arquivo Nacional (Rio de Janeiro), IJ1 824.
Ministério do Império – Pernambuco. Correspondência do Presidente da Província (1846 – 1852), Arquivo Nacional (Rio de Janeiro), IJJ 253.
Sem Nome, "Guerra dos Marimbondos". Impressões Rebeldes. Disponível em: https://www.historia.uff.br/impressoesrebeldes/revolta/guerra-dos-marimbondos/. Publicado em: 21 de agosto de 2025.