REVISTA CANTAREIRA

 

http://www.historia.uff.br/cantareira

ISSN 1677–7794

cantareira@historia.uff.br

 

 

 

 

 

 

 

 

CANTAREIRA – Revista Eletrônica de História

Volume  3    Número   2    Ano  4  – Mar. 2007

Editor    Izabela Gomes Gonçalves

Universidade Federal Fluminense (UFF)

Instituto de Ciências Humanas e Filosofia (ICHF)

Departamento de História

Campus do Gragoatá - Bloco O - 5º andar - Niterói - RJ - Brasil - CEP 24210-350
Telefone: (021) 2629-2919

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Os direitos dos artigos publicados nesta edição são propriedade exclusiva dos autores.

Esta obra pode ser obtida gratuitamente no endereço web da revista. Pode ser reproduzida eletronicamente ou impressa, desde que mantida sua integridade.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Equipe

 

Editor Responsável

Izabela Gomes Gonçalves

 

Editores

Mauro Amoroso

Alexandre Camargo

Alexandre Pierezan

Daniel Teixeira

Fábio Frizzo
Fabrício Freire
Fabrício Motta

Fernando Vieira

Guilherme Moerbeck

Hagaides de Oliveira

Jerônimo Duque Estrada

Leonardo Arruda

Letícia Ferreira

Pedro Bogossian Porto

Priscila Aquino Silva

Richard Negreiros de Paula

 

Editores Correspondentes

Antonio Marcos Myskiw

Erneldo Schallenberger

Márcio Marchioro

Maria Thereza David João

Valdir Gregory

 

Designer gráfico

Rodrigo Cunha da Costa

 

 

 

 

 

 

Ficha Catalográfica

 

Revista CantareiraRevista Eletrônica de História

         Volume 3, Número 2,  Ano 4,  mar. 2007

          Disponível em: http://www.historia.uff.br/Cantareira

 

1. História Geral; 2. Historiografia

 

 

 

O REI DAS IMAGENS

 

Gustavo Kelly de Almeida [1]

 

 

França, 1643. Sobe ao trono com apenas cinco anos o pequeno Luís - filho de Luís XIII e Ana de Áustria - que seria conhecido como Luís XIV, o “Rei-Sol”, o ícone da representação do poder na Época Moderna. Este livro, escrito por Peter Burke, diferente de muitos outros sobre este rei, não se trata de uma biografia. Aqui, Luís XIV é o protagonista, seu longo reinado - que ultrapassou as barreiras do século XVIII (1643 - 1715) - é o pano de fundo, mas o foco do estudo encontra-se no processo de fabricação da imagem pública desse soberano.

Peter Burke, famoso historiador inglês, autor de mais de trinta livros, dentre eles o respeitado “Cultura Popular na Idade Moderna”, publicado originalmente em 1978, tornou-se doutor na Universidade de Oxford na década de 1960 e atualmente é professor titular de História da Cultura na Universidade de Cambridge.

Seu livro, publicado originalmente em 1992, rico em ilustrações e com uma narrativa envolvente, é dividido em doze capítulos. Com exceção dos capítulos I, II, XI e XII, os demais parecem estar divididos em dois grandes blocos, que descrevem movimentos opostos, um de ascensão e outro de declínio. Do capítulo III ao VII, o autor procura demonstrar a composição das imagens favoráveis do rei e a prosperidade do monarca no governo. Em relação aos capítulos VIII, IX e X, parece tentar nos mostrar a existência de um certo definhamento do monarca já idoso e de seu governo, sendo o capítulo X “O Reverso da Medalha”, exclusivamente dedicado à produção de imagens contrárias ao rei. Interessante ressaltarmos, que enquanto no capítulo VIII, Burke foca mais sua análise no soberano francês e no meio político cultural da França, no seguinte, o autor ampliará sua visão para um contexto referente à Época Moderna. Em outras palavras, perceberá o declínio de Luís XIV também sob influência da crise das representações promovida pela revolução intelectual da segunda metade do século XVII, pela qual os soberanos passam a perder parte do seu capital simbólico.

Em um estudo que visa apresentar a produção das imagens de Luís XIV não poderia ser esquecido o seu par, ou seja, a recepção dessas imagens. Seguindo essa linha, o capítulo XI será o espaço onde o autor tentará desvendar o público-alvo dessas imagens, dentro e fora do território francês. Cabendo ressaltar que os meios de comunicação não eram de massa, e sim voltados para a elite.

No último capítulo do livro, Luís XIV será analisado numa perspectiva histórica, ou seja, tentará ser entendido como um homem do seu tempo e não solto na História. Tal fato será desenvolvido através da comparação com soberanos anteriores (como seu pai Luís XIII e seu tio e sogro Filipe IV de Espanha) e contemporâneos a ele (imperador Leopoldo I da Bélgica). Através dessa relação, Burke consegue nos mostrar que Luís XIV influenciava, mas também era influenciado por outros soberanos e procurava sempre ultrapassá-los. Além disso, muitas influências em seu governo serão consideradas: antigas, medievais, renascentistas, barrocas, entre outras. Ainda nesse capítulo, o autor do livro discutirá as relações entre o tempo de Luís XIV e dos vários chefes de Estado do século XX - retornarei a este ponto mais à frente. 

 No primeiro capítulo “Apresentação a Luís XIV”, Peter Burke, para além de justificar a escolha desse monarca (exemplo: rica produção de imagens, visuais e textuais, muito bem documentadas), apresenta a função desse livro: ser uma contribuição à história das comunicações. Ou seja, tenta estabelecer uma ligação entre o universo cultural seiscentista e o nosso (na época, o século XX). Assim, ao lado de uma análise das palavras-chave da época, utiliza termos que não faziam parte do vocabulário do século XVII, como “propaganda”, “opinião pública”, “mídia”, dentre outras, para proporcionar um maior entendimento por parte de nós leitores do século XXI (no caso, século XX). Tal análise, entretanto, não se realiza de forma anacrônica, pois o autor, além de sua prudência ao tratar de um tempo de que não faz parte, está apoiado em outras ciências sociais, como a sociologia, a antropologia e a psicologia. Com a ajuda dessas ciências, o autor apresenta o que considerei mais importante neste capítulo, a relação entre a arte e o poder. Seu intuito não é analisar a arte pela arte e sim seus usos no mundo do poder. E dentre esses usos, encontra-se a teatralidade do poder - algo comum entre esse dois mundos separados culturalmente.  Seguindo este pensamento, Burke enriquece sua análise apresentando-nos o conceito de representação (polissêmico) que tem sua utilidade no mundo do teatro, uma vez que pode significar o “desempenho” de um determinado papel no palco. E este palco, identificado com o cerimonial, será fundamental em minha opinião, para o entendimento do poder como ele se dá a ver.

Este capítulo termina com o autor se posicionando entre duas visões, a cínica e a inocente. A primeira parte do pressuposto que todas as manifestações artísticas seriam utilizadas puramente para manipular, para enganar um dado público. A segunda encontra-se no outro extremo, onde todas as pessoas perceberiam os rituais, os símbolos, os mitos da mesma maneira e como expressões cabais da realidade - tal fato obedeceria a uma necessidade psicológica, seja ela consciente ou não. O autor não descarta as duas visões e opta por uma síntese. Tal equilíbrio pode ser percebido em alguns pontos do livro como ocorrido no capítulo XI, no qual o autor afirma ser difícil perceber o apoio intenso dos jesuítas ao rei, apenas por seu interesse em acabar com o protestantismo.  Assim, pergunto: por que os interesses e as crenças não podem coexistir? Defendo que para uma crença criar raízes e ecoar na sociedade é necessário que haja um terreno social e cultural fértil para ela se desenvolver. 

O capítulo II, “Persuasão”, parece ser uma forma de instrumentalizar o leitor para os próximos capítulos. Mostrar as ferramentas pelas quais se construiu e se expandiu a imagem pública do rei francês. Ao longo deste capítulo, é apresentada uma gama de meios de comunicação e estilos, como por exemplo: medalhas, tapeçarias, estátuas, pinturas, panegíricos, periódicos, rituais, peças de teatro, balés, óperas, retratos solenes e muitos outros. Cabe destacar que os cerimoniais ou rituais de todo tipo - a coroação e sagração do rei; as entradas reais nas cidades; o toque régio para curar uma doença de pele chamada escrófula (uma manifestação do caráter sagrado das monarquias francesa e inglesa); a recepção de embaixadores estrangeiros, etc - são tratados aqui e em outros capítulos como meios de comunicação, canais pelos quais são produzidas imagens vivas do soberano. E eu acrescentaria, imagens que ficam imortalizadas pelos relatos escritos das cerimônias, material que deve ser considerado e apreciado pelo historiador como uma fonte histórica preciosa, uma vez que permite-nos entender melhor a cultura estudada. Outro ponto a ser destacado no livro é a sensibilidade do autor em perceber a teatralidade na vida cotidiana do rei (capítulo VII). Até mesmo as cerimônias do lever e do coucher (levantar pela manhã e ir se deitar à noite), poderiam ser consideradas como encenações (um mini-teatro), uma vez que obedeceriam a critérios já estabelecidos e eram sempre reatualizadas. Dessa forma, Luís XIV seria um ator diariamente - quando houvesse público.    

Retornando ao capítulo II, Burke poderia ter explorado as diferenças de persuasão (como poderia sugerir seu título) entre os diversos meios de divulgação da imagem régia. Qual o impacto de uma pintura em relação a um panegírico, ou de um periódico e um arco de triunfo, por exemplo? Admito que o autor chega a ensaiar isto em alguns momentos, mas de forma bastante pontual, como no capítulo XI, ao apresentar as estátuas como meios de comunicação privilegiados, uma vez que permitiam superar os obstáculos do analfabetismo.

O capítulo III “O Nascer do Sol” nos traz as diversas transformações ocorridas nas imagens públicas de Luís XIV. Aborda desde o seu nascimento, passando por exemplo pela imagem da vitória sobre a Fronda (revolta do Parlamento de Paris que durou de 1648 a 1652) e de sua imagem como um jovem adulto, até chegar 1661, ano da morte de seu ministro e mentor Mazarin, quando começará o primeiro governo pessoal (1661 - 1688), no qual Luís XIV não dividirá a glória com ninguém, sendo representado sempre governando sozinho (tema do capítulo V “Auto-Afirmação”). Nesse período, favorecido pelas vitórias nas Guerras de Devolução (1667 - 1668) e Holandesa (1672 - 1678) haverá todo um esforço para que o rei seja representado como um herói (tema do capítulo VI). Entretanto, será cada vez mais difícil para os fabricantes de sua imagem lidar com as diferenças entre a realidade dos acontecimentos e os relatos oficiais, dadas as inúmeras crises pelas quais passará seu segundo governo (1689 - 1715).

Para o governo individual será formado todo um sistema de organização da fabricação da imagem pública do soberano (tema do capítulo IV). Alavancado por Jean-Baptiste Colbert e mais tarde por Louvois, esse sistema caracterizou-se por uma burocratização crescente da produção artística, a saber: a criação de um sistema de academias; a administração cada vez maior de diretores, superintendentes ou inspetores (funcionários públicos) e a formação de comitês, principalmente a petite académie que supervisionava essa fabricação. Partindo do centro e reafirmando Luís XIV como o maior patrocinador das artes, esse sistema funcionava sempre no sentido de glorificá-lo. Em outras palavras, a glorificação do soberano seria o mecanismo que movia todo o funcionamento desse sistema.

Ao meu ver isso é problemático, pois os interesses dos fabricantes da imagem régia oficial não podem ser reduzidos a essa explicação. Na verdade, para um estudo que se propõe a analisar a produção de imagens, seus artífices não ocupam o lugar que merecem, ou seja, não são analisados de forma aprofundada - mesmo os que possuíam mais destaque.

Isso implica em dizer que o livro de Burke nos apresenta o poder de forma unívoca, sem a sua carga conflituosa que os interesses diversos proporcionam. Podemos perceber tal fato por exemplo no capítulo VII, no qual esse sistema de fabricação da imagem pública passa por uma reconstrução - com a morte de Colbert (1683) e a ascensão de Louvois. Essa mudança implica não somente em estratégias diferentes de condução dessa organização como também de substituição de clientelas. Relativizando-se o fato de que o autor percebe a existência dessas redes clientelares, ele não as aprofunda. Dessa forma, acaba perdendo a riqueza que uma problematização maior desse contexto político cultural poderia proporcionar a seu estudo. Cabe ressaltar que essa deficiência pode ser constatada em diversos momentos do livro, como a necessidade maior de contextualização da Fronda (capítulo III) e dos diferentes interesses entre Luís XIV e Colbert em relação aos projetos artísticos dos palácios de Versailles e Louvre (capítulo V). Cabe ressaltar aqui que os interesses de Luís XIV também são pouco aprofundados, talvez por esse estudo ter como objetivo apenas a sua imagem pública. Embora não possamos dizer que Burke trate o rei como um fantoche nas mãos dos organizadores desse sistema de fabricação; pelo contrário, procura sempre mostrar Luís XIV como um rei consciente de seu papel.

Devemos elogiar o autor quando ele aponta para o fato de que toda essa máquina de fabricação da imagem pública de Luís XIV, sem igual proporção no seu tempo, guarda sua relação com a existência de uma certa fragilidade do poder desse soberano. Isso é explicado em dois momentos: as diversas crises porque passou seu governo - dentre elas a Fronda e as dificuldades econômicas e políticas da segunda fase de seu governo - e a comparação entre Filipe IV e Luís XIV, no que tange às dinastias Habsburgo, já bem consolidada, e a Bourbon, ainda recente (três gerações), procurando se fortalecer.

Entretanto, Burke não faz referência apenas à fragilidade do poder desse soberano, mas também à sua força, que fica demonstrada quando o autor opta por uma síntese entre as visões cínica e inocente - uma vez que as crenças no poder régio não são desconsideradas pelo autor. Dessa maneira, aludindo a uma ambigüidade do poder - frágil e forte ao mesmo tempo - Burke neste ponto consegue enriquecer a análise sobre o poder.

O último capítulo da obra “Luís em Perspectiva” ao tratar das semelhanças e diferenças entre o tempo de Luís XIV e dos diversos chefes de Estado do século XX - apesar dessa discussão não ser tão extensa quanto gostaria - é muito importante para o entendimento de um dos objetivos iniciais do autor: dar uma contribuição à história das comunicações. Isso se explica, pois Peter Burke não analisa o passado pelo passado, isolado, mas a sua relação com o presente e vice-versa. E aí encontra-se um importante aviso para todos aqueles que procuram aventurar-se no mundo da ciência histórica, tentar conferir sentido a ambos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1]  Aluno de graduação da Universidade Federal Fluminense e bolsista de iniciação dientífica: PIBIC / CNPq - UFF. Sob orientação do professor  Rodrigo Nunes Bentes Monteiro.