REVISTA
CANTAREIRA
http://www.historia.uff.br/cantareira
ISSN 1677–7794
cantareira@historia.uff.br
CANTAREIRA – Revista Eletrônica de História
Volume 3
– Número 3
– Ano 4 –
Jul. 2007
Editor – Izabela Gomes Gonçalves
Universidade Federal Fluminense (UFF)
Instituto de Ciências Humanas e Filosofia (ICHF)
Departamento de História
Campus
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Ficha Catalográfica
Revista Cantareira – Revista Eletrônica de História Volume 3, Número
3, Ano 4, Jul. 2007 Disponível em:
http://www.historia.uff.br/Cantareira 1. História Geral; 2. Historiografia |
RESENHA
ROSA,
João Guimarães. “A hora e a vez de Augusto Matraga”. In:_____. Sagarana.
Rio de janeiro: Editora Nova Fronteira, 2001.
Leonardo Lusitano Mósso*
(Leonardo
Lusitano)
O
sertão é o mundo
Mas se
o sertão é o mundo
Que
mundo é o sertão?
Mundo
abstrato, mundo indefinido,
Mundo-mundo;
Mais
que espaço, ele é tempo
Mais
que tempo, sentimento
Sentir
então com a razão?
Não.
Com o corpo, onde
O cheiro
que o lido sente
Também
é verdade para quem lê.
Sim, o
sertão é impreciso. Porém, até para isso ser,
É preciso
um corpo ter;
De
baile, onde quem dança é o mundo,
Disposto
num carrossel solto nos ares,
Desprendido
do chão,
Sem-terra
Sem-teto
No ão.
No
Urubuquaquá, no Pinhém e nas Gerais
São
todos iguais:
Vaqueiros
Prostitutas
Velhos
Coronéis-arrependidos.
Centros
dum círculo que circulam à esmo
Na
aventura da vida,
Oscilando
entre o céu e o inferno, o claro
E o
escuro, confiança e traição,
Contrição
e vingança.
No
sertão, no mundo, imundos
De
poeira, de estrada e de palavras
Vão
voando por aí, feito borboleta,
Gravata
do homem-Sério que faz
De um
burrinho filósofo feito Platão
E do
mundo
Um
grande sertão.
No ano de 1965, Guimarães Rosa concedeu uma
entrevista, ou melhor, travou um diálogo com o crítico alemão Gunter Lorenz, na
cidade de Genova. Após ser chamado por Lorenz de “ o homem do sertão”,
afirmativa de seu agrado, Rosa confirma ser antes de mais nada justamente esse
homem. Entretanto, o homem e sua biografia podem resultar em algo novo.
João Guimarães Rosa nasceu em 1908. Foi
diplomata, e isto é algo mais sabido, inclusive por sua relação com diferentes
línguas e a produção de uma escrita muito pessoal. Todavia, pouco se comenta
sobre outras experiências suas. Segundo Rosa;
Sim, fui
médico, rebelde e soldado. Foram etapas importantes da minha vida, e, a rigor,
esta sucessão constitui um paradoxo. Como médico conheci o valor místico do
sofrimento; como rebelde, o valor da consciência; como soldado, o valor da
proximidade com a morte (Rosa; 1991:67).
Eis aqui o esboço de um mundo interior. Para
não ser injusto, o trato com cavalos, vacas, religiões e idiomas também lhe
compõe. Além da diplomacia. Homem do sertão. A pequena Cordisburgo. Veredazinha
Penso desta forma: cada homem tem seu lugar
no mundo e no tempo que lhe é concedido. Sua tarefa nunca é maior que sua
capacidade para poder cumpri-la. Ela consiste em preencher seu lugar, em servir
à verdade e aos homens. Conheço meu lugar e minha tarefa; muitos homens não conhecem
ou chegam a fazê-lo, quando é demasiado tarde. Por isso tudo é muito simples
para mim e só espero fazer justiça a esse lugar e a essa tarefa. Veja como meu
credo é simples. Mas quero ainda ressaltar que credo e poética são uma mesma
coisa. Não deve haver nenhuma diferença entre homens e escritores; esta é
apenas uma maldita invenção dos cientistas, que querem fazer deles pessoas
totalmente distintas. Acho isso ridículo. A vida deve fazer justiça à obra, e a
obra à vida. Um escritor que não se atém a esta regra não vale nada, nem como
homem, nem como escritor. Ele está face a face como infinito e é responsável
perante o homem e perante si mesmo ( Rosa; 1991:74).
Homem-escritor. Diplomata-sertanejo. Através
de seu credo, podemos relacionar a arte da escrita rosiana com a experiência.
Ou seja, o transmitir algo. Se por um lado Walter Benjamin indica que com o
desenvolvimento do romance moderno a narrativa “foi para o brejo”, por outro, o
próprio intelectual alemão nos fornece elementos para afirmarmos Rosa como
narrador;
A experiência que passa de pessoa em pessoa é
a fonte a que recorreram todos os narradores. E, entre as narrativas escritas,
as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos
inúmeros narradores anônimos ( Benjamin; 198: 1996).
É justamente a extrema proximidade com a
oralidade, e, consequentemente a transmissão de experiências- que mesmo não
vividas, foram possibilitadas pela vida- um dos fatores a nos permitir afirmar
Rosa como narrador. Valendo-me também da própria narrativa de João Guimarães
Rosa, homem-escritor, expressa em sua auto-visão como homem sertanejo e em seu
credo sobre a escrita, creio ser sua visão de mundo capaz de criar um amálgama,
neblina que se desvenda aos olhos incrédulos do leitor como espécie de
espinha-dorsal de suas obras. Inclusive
Dentro dessa teia, simples e complexa onde o
homem-escritor tem apreço ao valor místico do sofrimento, o valor da
consciência e o valor da proximidade com a morte, Rosa desenvolve uma
estrutura, cujo elo com o leitor é certamente a narrativa. Ao narrar, Rosa
desenvolve um dos mais importantes processos de sua técnica, decorrente, claro,
de sua visão de mundo; costumeiramente, o autor situa um problema. Depois,
cria-se uma aparente resolução para, no fim, haver uma crise que destrói, mas
resolve a questão. Eis então o sentido de parábola aplicado pelo autor naquelas
“histórias adultas da carochinha”, onde gravitam as pessoas e mesmo animais; do
interior e de seu interior também. Entretanto, tais parábolas não possuem o
sentido habitual onde uma certa moralidade fecha problemas, resolve dúvidas e
escorregões. Ao contrário disso; são parábolas tão abertas que alguém que não
pretende ser doutor pode ousar discorrer sobre elas.
Logo na primeira frase da novela, Rosa diz: “
Matraga não é Matraga, não é nada. Matraga é Esteves” (Rosa; 2001:363). Para
Roberto Da Matta, o nome Matraga é uma espécie de fórmula mínima, onde estaria
contida toda a mensagem da obra, uma vez que Matraga seria o inverso de Nhô
Augusto( Da Matta; 244). Talvez a genialidade de Rosa nesse conto esteja na
sensibilidade do autor para perceber que a vida tem ao menos dois movimentos.
Ao anunciar que Matraga não é nada, mas sim
Esteves,o autor sugere que a personagem estará sujeita a um processo duplo;
construção e desconstrução. Matraga ainda não é nada porque é Esteves. Mas para
ser Matraga, terá primeiro que ser Esteves, ao extremo, para depois tornar-se
finalmente Matraga.
Num primeiro momento da novela, o sentido
parabolar está em mostrar o poder e a arrogância de Nhô Augusto Esteves. Para
Da Matta, o nome “Nhô Augusto” revela a pessoa de um fazendeiro poderoso e
prepotente, que julga-se “alteado” e capaz de transcender as divisões entre o
bem e o mal, o impuro e o puro ( Da Matta; 246). Tanto que a novela inicia-se
num leilão de santo, onde, após este e atrás da Igreja, eram leiloadas duas
prostitutas. Pondo lance maior, Nhô arremata a Sariema, para contragosto do seu
amante, o capiauzinho, que é inclusive surrado. Utilizando-se da luz da Igreja
para observar seu arremate, Nhô posiciona-se acima do sagrado e do profano,
arrogância que seria castigada pela justiça divina. Após livrar-se da Sariema,
que possuia “pernas de Manuel Fonseca” ( uma fina e outra seca) Nhô Augusto
desce a ladeira. Literalmente...
Perdendo sua esposa, Dionóra, que foge com
Ouvídeo e recebendo tal notícia de Quim-Recadeiro, Nhô Augusto também toma
conhecimento de que seus “bate-paus” não vem a seu socorro. Nhô Augusto foi
trocado pelo major Consilva, que já disputava com seu pai,o coronel Afonsão
Esteves. Aqui Rosa parece fazer um movimento- dentro da parábola- no sentido de
prenunciar a relação “Nhô Augusto Esteves- Matraga”. Quando Quim parte em
galope dando poeira ao vento para contar ao seu patrão as notícias, Rosa
explica:
Quando chega o dia da casa cair- que, com ou
sem terremotos, é um dia de chegada infalível,- o dono pode estar: de dentro,ou
de fora. É melhor de fora. E é só a só coisa que um qualquer-um está no poder
de fazer. Mesmo estando de dentro, mais vale todo vestido e perto da porta da rua.
Mas, Nhô Augusto, não: estava deitado na cama- o pior lugar que há para se
receber uma surpresa má.
E a casa realmente cai; sem perceber os
maus-sinais, na atitude tirânica de quem perde-mas-não-vê-que-perdeu, Nhô
Augusto, ruim de dinheiro, do lado político que perdia, e abandonado pela
esposa, quer matar sua senhora e Ovídeo. Mas antes, para não deixar rastro por
acertar, vai cair com o major Consilva e capangas. Sozinho, é “desmanchado”,
inclusive pelo capiauzinho da Sariema, que vingava-se. Fora de suas terras, de
todo sua toda-poderosidade, fica “coisificado”, - marcado feito gado e
desmanchado: pula do alto do barranco, dado como morto. Agora, Esteves ainda
não é Matraga. Mas também é nada. E aqui a parábola ganha força, com a
desenvoltura de dois movimentos;como sinfonia de rabecas no sertão.
Rosa conduz Esteves ( que foi Nhô, mas ainda
num é Matraga) p’ruma travessia. Toda
arte é alimento para fazer da vida obra de arte. Entretanto, há o desafio de
fazer da arte vida. Nesse horizonte é que coloca-se a travessia. Do escritor, do personagem e do leitor. O radical versia provem do verbo vertére; verter, tomar figura, re-
alizar. Creio que alisamos uma vez a linguagem ao pensar, e numa segunda ao não
negar sua transformação em ação: um re-alizar. Já o prefixo trans é o que se dá através de, no agir
e ir além, que pressupõe ação. Aos cuidados do casal de pretos, do fundo do
brejo, Augusto Esteves começa a tomar outra figura, por meio de sua ação-
re-alização- indo além. Com o casal de pretos, vai para o deserto, pro
“Tombador”. Inicia-se então a passagem de sua vida onde Da Matta o entitula renunciador: melhor fisicamente, fugindo
na noite, quase um Jesus. Ou um escurraçado social. Isolado; meio santo, meio bandido, meio louco.
Abandonado. Se por um lado Esteves ainda não renasceu, não pagou ao ponto em
que se afirme realmente que está renunciando sua condição social anterior, por
outro, trabalha e foge dos vícios. Mas antes, teve conversa crucial com um
padre, que lhe deu sermão:
Você nunca trabalhou, nãoé? Pois, agora, por
diante, cada dia de Deus você deve trabalhar por três, e ajudar os outros,
sempre que puder. Modere esse mau gênio: faça de conta que ele é um poldro
bravo, e que você é mais mandante do que ele... Peça a Deus assim, com esta
jaculatória: “Jesus, manso e humilde de coração, fazei meu coração semelhante
ao vosso...”
E, páginas adiante, fazendo de conta que esta
vida é um dia de capina com sol quente, que ás vezes custa muito a passar, mas
sempre passa. E você ainda pode ter muito pedaço bom de alegria...Cada um tem a
sua hora e a sua vez: você há de ter a sua ( Rosa; 2001: 379,380).
Transformado em filho de mãe Quitéria e pai
Serapião, trabalhando e orando de sol-a-sol, Augusto, em mudança, faz a
travessia da vida rumo á morte. São os conceitos, nossas tentativas de atribuir
sentido aos fatos. O passado alargado para caber no presente e construir um
futuro: Então Nhô Augusto que foi ruim, mas “couro por curtir”, vai ser
reduzido ao nada. È a partir disso que inicia sua contrição: para chegar ao
céu, “nem que seja á porrete”.
Com seu florescimento ajudado pelos pretos
samaritanos,parabolares, Esteves vai tomando nova figura; realiza mudanças. Mas
é justamente aqui que o herói- marginal- é posto
Após resistir à tentação, Esteves está forte,
inclusive para pitar e cantar. No auge de seu florescer, de sua travessia da
vida pra morte, rezava melhor tirando tragadas. Mas;
E, pois, foi aí por aí, dias depois, que
aconteceu uma coisa até então jamais vista, e te hoje mui lembrada pelo povinho
do Tombador ( Rosa; 2001: 389).
Seu encontro com Joãozinho Bem-Bem completa a
parábola, pois marca o encontro das duas margens da travessia, sendo a segunda
a travessia da morte para a vida; são as questões, coisas que surpreendem,
sobrepondo-se à capacidade de cada um de controlar a vida. Portanto, a
estória-parábora acaba sendo meio que o cruzamento disso: do atribuir sentido
para viver até a morte, e da morte, do que é maior, aprontando com a vida. Após
sua relação de dom-contra-dom com o agora “amigo-parente” Bem-Bem, Esteves
sente sua “hora e vez”. Nas primeiras edições, o conto chamava-se “A hora e
vez...” ao invés de “ A hora e a vez...” Acho mais correto,pois o mineiro fala
pra dentro. É o que faz Rosa; para dentro de nós.
Voltando puro ao convívio- ao ponto de ignorar o Murici- Augusto Esteves encontra-se novamente com Bem-Bem, que quer tirar vingança da morte de Juruminho, de forma que Esteves achou injusta. No embate final entre Bem-Bem e Esteves, onde morrem os dois, amigos por se reconhecerem valorosos, Rosa faz Esteves tornar-se Matraga, pois o sofrimento deu-lhe o conhecimento pleno da vida; a chegada da morte. Longe de lição puramente moral, o sentido de parábola da novela está em mostrar como a vida é paradoxal, pois enquanto Nhô Augusto e Matraga estão o tempo todo indo de encontro entre si, o que lhes salva também aniquila. E assim, após a grande árvore estalar sob o raio, e com o fim da chuva, a capim humano rebrotou.Sentido? Moral de história? Questões servem apenas para chegarmos em questões maiores. Viver é ou não é muito perigoso?
ROSA, João Guimarães. A hora e a vez de Augusto Matraga. Sagarana. Editora Record. Rio de janeiro.
MATTA, Roberto da. Carnavais, malandros e heróis. Para uma sociologia do dilema brasileiro. Zahar Editores. Rio de Janeiro.
O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. Magia e técnica, arte e política. SP: Ed. Brasiliense, 1996.