REVISTA CANTAREIRA

 

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ISSN 1677–7794

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CANTAREIRA – Revista Eletrônica de História

Volume  3    Número   3    Ano  4  – Jul. 2007

Editor    Izabela Gomes Gonçalves

Universidade Federal Fluminense (UFF)

Instituto de Ciências Humanas e Filosofia (ICHF)

Departamento de História

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Ficha Catalográfica

 

Revista CantareiraRevista Eletrônica de História

         Volume 3, Número 3,  Ano 4,  Jul. 2007

          Disponível em: http://www.historia.uff.br/Cantareira

 

1. História Geral; 2. Historiografia

 

 

A Memória da Abolição: o resgate do movimento antiescravista de Ouro Preto e Mariana através de relatos.

Luiz Gustavo Santos Cota*

 

RESUMO

O presente trabalho trata-se de uma proposta de utilização de relatos de época para o estudo do movimento abolicionista nas cidades de Ouro Preto e Mariana nos anos finais da escravidão. Através da análise dos relatos pretende-se extrair informações acerca das ações empreendidas pelo movimento antiescravista nas referidas cidades, como a criação de sociedades, promoção de alforrias além de manifestações públicas contra o regime escravista. Para tanto, levamos em consideração as interações entre os autores e a sociedade de seu tempo. Estas interações funcionam como o catalisador de suas reminiscências, ou seja, de formador de suas memórias. Corroborando com Maurice Halbawachs, entendemos a memória como fruto do contato social, sendo por definição coletiva. Assim concomitantemente à leitura das fontes recompomos o contexto no qual os autores viveram observando todas suas matizes.

 

Palavras-chave: Memória, abolicionismo, abolição.

 

ABSTRACT

This article intends to study the abolitionism movement in Ouro Preto and Mariana in the last years of slavery though some contemporary reports. It aims at getting information about the action undertaken by antislavery movement in these cities, such as the creation of associations, giving freedom to some slaves, and the organization of public demonstrations against the slavery régime.  In order to do so, it will consider the interaction between the authors and their society. These interactions function as the catalyst of their reminiscences, that is to say, of the building of their memories, along with reading the primary sources rebuilding the context in which the authors lived. Agreeing with Maurice Halbawachs it understands memory as a result of contact social, thus collective by definition.

 

Keywords:  Memory, abolitionism, and abolition.

 

 

Quando a 13 de maio do ano de 1888 chegou a Ouro Preto a notícia alviçadeira de que havia sido decretada pelo governo imperial a extinção da escravidão no Brasil, a cidade inteira, como impelida por um só sentimento humanitário, fraternizou-se com os escravos ali existentes. Por entre aclamações e transbordamentos de alegria, tornados mais vibrantes e mais entusiásticos pelo bimbalhar de todos os sinos de todas as igrejas, e pelo estrugir de milhares de foguetes, a festejarem o decreto redentor.[1]

           

 

Foi assim que o farmacêutico Aurélio Egydio dos Santos Pires descreveu a comemoração da extinção do regime escravista na antiga capital de Minas Gerais, a “ladeirante” Ouro Preto. Suas lembranças, materializadas em um livro de memórias, escrito pelo mesmo no ano de 1937, nos transportam até sua juventude nas últimas décadas do século XIX e ao clima que envolvia a “cidade anciã”. Relatos como esse nos auxiliam na recomposição de cenários, muitas vezes perdidos no tempo, mas guardados na memória dos indivíduos que os presenciaram.

Nesse pequeno ensaio tentarei utilizar esses objetos de memória como fonte para o estudo do movimento antiescravista nas antigas capitais mineiras: Mariana e Ouro Preto. Através desses relatos analisaremos como seus autores observaram, ou mesmo como participaram, da luta contra a escravidão e como descreveram as ações perpetradas pelos militantes da referida causa. No caso, nossas fontes serão Homens e factos de meu tempo: 1862-1937, livro do já citado Aurélio Pires, e um relato registrado em um Livro de Tombo, um documento eclesiástico, de uma freguesia de Mariana, Senhor Bom Jesus do Monte do Furquim, ou simplesmente Furquim.[2] Quanto ao autor deste texto, sabe-se apenas que trata-se de um professor que durante algum tempo também trabalhou como funcionário dos correios da freguesia. Até o momento não foi possível identificá-lo, já que não assinava suas resenhas.

Mesmo sendo, na maior parte das vezes, direcionados para os objetos da chamada História do Tempo Presente[3], os estudos sobre a memória e as biografias nos auxiliam no levantamento de novas possibilidades para o estudo da escravidão e seu ocaso no Brasil.[4] A crise dos paradigmas marxistas nas décadas de 60 e 70 do século XX, impulsionou uma profunda reflexão sobre a análise do processo histórico, levando à ampliação dos objetos, das fontes e à valorização do indivíduo enquanto agente transformador. O foco foi definitivamente desviado da “velha” história tradicional, preocupada com os “grandes acontecimentos” e com os “grandes homens”, e concentrado então nos comuns, “no pobre descalço, no agricultor ultrapassado”.[5] A dita “história vista de baixo”, inaugurada com os estudos do historiador britânico Edward Palmer Thompson, representou essa mudança de foco seguida mais tarde pelos micro-historiadores italianos, interessados no estudo das trajetórias individuais dos “novos” atores da história.[6]

A forma como nossos relatores reconstruíram o passado, selecionando os fatos dos quais participaram, presenciaram ou mesmo de que apenas ouviram falar, nos remete à coletividade de um tempo. Assim, corroboramos com Maurice Halbawachs que definiu a memória como sendo fruto do contato social. Para ele, a memória é por definição coletiva.[7] Sendo assim, torna-se imprescindível recompor o contexto no qual os autores viveram observando todas suas matizes. Algo indispensável para compreensão de suas intenções ao produzir o texto.[8]

Talvez seja a micro-história a corrente teórico-metodológica que melhor trabalhe essa questão, já que esta define-se por um “jogo de escalas” entre o micro e o macro, ou seja, entre a microanálise de um objeto particular e o contexto no qual está inserido, um universo maior.[9] Esse jogo de idas e vindas, de mudança de foco, permite uma compreensão mais clara da trajetória analisada, já que traça uma ponte entre as atitudes do indivíduo e as influências exercidas pelo meio no qual se insere.

Tais mudanças na historiografia internacional, claro, tiveram reflexo direto na historiografia sobre a escravidão no Brasil. Os negros, vistos antes como uma massa amorfa e inerte, seres brutalizados e desprovidos de consciência, conseqüências do trato violento imposto pelo regime escravista, passaram de meros espectadores da história para atores de uma “peça cotidiana” que culminou no 13 de maio de 1888. [10] Sem dúvida, seu papel não era de coadjuvante, algo comprovado por diversos trabalhos de história social da escravidão que jogaram luz sobre os atos de resistência cotidiana ao sistema escravista ou mesmo as interações culturais com os diversos grupos étnicos/sociais com os quais contracenavam.[11]

No caso de nossos objetos de análise, não me aterei na busca da trajetória de cada autor, como fazem os micro-historiadores, mas sim ao conteúdo das confidências que nos fazem sobre seu tempo. Meu objetivo principal será captar informações relevantes sobre as ações antiescravistas desencadeadas nos antigos centros de poder das Minas. Para tanto, torna-se necessário construir uma ordem de análise já que cada texto foi produzido em épocas distintas, o que logicamente interfere na influência do contexto sobre seu teor. Um foi produzido na época dos acontecimentos e o outro quase meio século depois.

O relato do professor furquinense foi produzido no calor dos acontecimentos. Como sua função era escrever resenhas sobre os principais fatos da freguesia, mês a mês, nosso professor descreveu os principais acontecimentos que diziam respeito à escravidão e seu fim quase em “tempo real”. Contudo, os detalhes sobre os principais fatos, como a criação de uma associação emancipadora no arraial, as “alforrias rituais” promovidas por senhores da localidade ou mesmo a generalização de fugas dos cativos, só surgem em seus escritos após a promulgação da Lei Áurea. O silêncio é explicado pela conjuntura na qual vivia nosso “confidente”. O conflito de interesses entre os ditos abolicionistas e os senhores de escravos locais chegou a botar em risco a vida do professor. Aqui cabe um gancho para falarmos sobre o mundo que o cercava antes mesmo de comentarmos sua versão dos fatos.

A década de 1880, período no qual nossa fonte foi produzida estava totalmente submersa nas discussões acerca do fim do regime escravista no Império Brasileiro. Tema de difícil consenso, alvo de disputas políticas, econômicas, sociais e até mesmo culturais, a luta pela abolição ganhou força com o advento do movimento abolicionista, responsável pela ampliação do debate e sua transmigração para fora do parlamento, ou melhor, sua inserção nos meios sociais. Entretanto, engana-se aquele que pensa que esta era uma luta homogênea.

Os primeiros projetos datam da primeira metade do século XIX, com destaque para o “patriarca da independência” José Bonifácio de Andrada e Silva, que apresentou o primeiro projeto de extinção gradual da escravidão à Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do Império Brasileiro em 1823.[12] A idéia de eliminar a escravidão gradualmente como propôs Bonifácio influenciou os debates que culminaram cinqüenta anos depois, na chamada Lei do Ventre Livre de 1871, lei essa que cumpria a idéia de se eliminar a “nódoa escravista” de forma morosa, controlada e com respeito ao direito de propriedade. No entanto, mesmo sendo uma lei de caráter aparentemente moderado, abriu novas possibilidades para os mancípios alcançarem a liberdade, como por exemplo o direito à compra da alforria através de seu próprio pecúlio, além disso, a promulgação desta lei significou a quebra da hegemonia senhorial, já que interferia diretamente, pela primeira vez, em um terreno de negociação antes exclusivo de senhores e escravos, a alforria.

O chamado emancipacionismo, corrente do pensamento antiescravista, muito forte nas décadas de 1860 e 1870, que visava acabar com o trabalho compulsório de forma gradual, controlada e respeitando o direito de propriedade dos senhores; foi a responsável pela condução das discussões que levaram à implementação da lei de 1871.[13]

O surgimento do movimento abolicionista na década de 1880 aumentou o clamor por uma abolição imediata e sem qualquer tipo de indenização aos senhores. A “nódoa” agora deveria ser expurgada a qualquer custo permitindo o progresso da nação. [14] Entretanto, as formas de agir dos militantes foram as mais variadas possíveis, indo daquele militante preso ao discurso político até o que promovia fugas das fazendas escravistas como os Caifazes de São Paulo.[15] Como sustentou parte da historiografia sobre a abolição, houve aqueles que desempenhavam um papel de mediadores entre as elites e os escravos, movidos pelo interesse na manutenção da estrutura econômica e social do país. Dessa forma, teriam colaborado para a criação da imagem do cativo como um ser inferior, digno da caridade e da piedade de indivíduos humanitários e cristãos, influenciados pelas “luzes do século XIX”.[16] Contudo, o quadro era bem mais complexo.

O abolicionismo comportava em si não apenas projetos que correspondiam aos intentos elitistas, mas também planos e práticas mais próximos do ponto de vista dos cativos. Tal fato pode ser observado em uma série de documentos produzidos por militantes abolicionistas, como por exemplo, André Rebouças cujos projetos traziam em si, além da proposta de abolição imediata e sem indenização, uma crítica à estrutura fundiária do Império e o clamor pela “democracia rural”, ou seja, a reforma agrária.[17] Autores como Richard Graham e Maria Helena P. Machado chamaram atenção para a complexidade e variedade do que se convencionou chamar genericamente de movimento abolicionista.[18] Em O Plano e o pânico, Maria Helena Machado questiona as generalizações, que ora levavam a um abolicionismo heróico ora malfeitor e elitista. Seu trabalho relativiza as lideranças incontestes desta visão, focalizando “uma complexa interação de projetos e atuações diversas que, ao atingir extratos sociais perigosamente instáveis, colocou em curso uma atuação política muito menos comprometida com os cânones do liberalismo, do imperialismo e do racismo científico do que até o momento se tem admitido”.[19] Não obstante, a autora leva em conta a mescla de idéias de natureza diversa e a participação de diferentes grupos sociais dentro do movimento abolicionista.

Tal complexidade trás em si fatos inusitados como a utilização do vocabulário que identificava o movimento abolicionista por parte de inúmeros senhores preocupados na realidade em garantir uma mínima proteção aos seus direitos. Inúmeras vezes indivíduos que se diziam convencidos de que o “cancro roedor da escravidão deveria ser expurgado da Pátria” adotaram um discurso favorável a eliminação do trabalho compulsório lançando mão de práticas como a alforria condicional que transformava o cativo em statuliber[20], uma espécie de “meio escravo”, já que este deveria esperar um tempo até alcançar sua total independência, continuando a prestar serviços compulsoriamente a seu senhor. O estado de “meia liberdade” foi uma das estratégias utilizadas pelos senhores, nos anos finais da escravidão, com a intenção garantir o poder senhorial em suas propriedades e uma transição menos traumática para o trabalho livre. Exemplos que aproximam-se mais do emancipacionismo das décadas de 1860 e 1870 do que das propostas de eliminação imediata do abolicionismo dos anos 1880, demonstrando mais uma vez a convivência de posicionamentos moderados e outros tidos como mais progressistas. Assim como no caso abolicionista, a idéia de se pensar a eliminação do escravismo de forma gradual e indenizada, não se restringiu aos salões da corte, conquistando a simpatia de inúmeros senhores de escravos interessados em garantir minimamente seus direitos. Também penso que esta prática não se limitou a um espaço cronológico definido, podendo assim ter perfeitamente sobrevivido até os anos finais do regime, o que veremos mais adiante.

Evidentemente que, mesmo longe dos palcos principais da luta contra a escravidão, estas discussões atingiram a Leal cidade de Mariana e suas freguesias. A prova disso é o envolvimento do clero da cidade com a questão servil.[21] É bem verdade que ao contrário do ocorrido nos Estados Unidos[22], a religião teve um papel mais legitimador do que de condenação do regime escravista no Brasil, mudando sua posição praticamente no “apagar das luzes”. Vários seguimentos protestantes, como os Quaquers norte-americanos, sempre se referiram à escravidão como uma prática infernal e totalmente condenável à luz dos desígnos divinos. Já os missionários católicos estabelecidos em terras brasileiras desde o século XVI, principalmente os padres da Companhia de Jesus, não titubearam em assumir o papel de legitimadores da escravidão. Segundo Ronaldo Vainfas, esses religiosos seriam intelectuais orgânicos da aristocracia fundiária, verdadeiros ideólogos da escravidão e da servidão no mundo colonial.[23]

 

Santo Ambrósio, Santo Isidoro de Sevilha e, principalmente, Santo Agostinho consideravam a escravidão, ao lado de todos os seculares instrumentos de coerção e de governo, como parte da punição pela queda do homem do estado de graça. (...) De acordo com Santo Agostinho, a escravidão era um remédio assim como uma penalidade para o pecado, e Deus era quem tinha a responsabilidade direta de apontar tanto senhores quanto escravos.[24]

 

Baseados em antigos argumentos cristãos e filosóficos, os intelectuais da Igreja justificaram a escravidão negra, ora defendendo a potencialidade de certos indivíduos para servir, como Aristóteles, ora vinculando a escravidão ao pecado original ou à maldição de Cam.[25]

Chegado o século XIX, especialmente sua segunda metade, a imprecação eterna dos negros deu lugar às idéias liberais, o que fez com que o clero brasileiro se manifestasse abertamente, embora de forma moderada, contra o elemento servil.[26] Já com a “luz baixa” alguns bispos chegaram a se pronunciar contra a escravidão através de cartas pastorais, aproveitando o jubileu do Papa Leão XIII e aconselhando fiéis e sacerdotes a libertarem seus escravos, em honra do Santo Padre. Entre os anos de 1886 e 1887, manifestaram-se os bispos de Olinda, São Paulo, Goiás, Bahia, Maranhão, Rio Grande do Sul, Diamantina e Mariana.[27] É o último prelado que nos fornece combustível para retornar ao relato do professor de Furquim, a quem esse fato não escapou:

 

Novembro (1887) – dia 27 – Leu-se na estação da missa a pastoral do Exm. Sr. Bispo D. Antº. Maria Correia de Sá e Benavides, datada de 19 de outubro p.p. (passado), sobre a extinção do elemento servil. Antes disso já se tratava de libertar todos os escravos residentes dentro deste arraial, cujos senhores deliberaram que no dia 1º de janeiro p. futuro, dia de N. Padroeiro, em diante, os ditos escravos seriam considerados livres com a condição de prestarem serviços por mais três anos a contar do dito dia.[28]

 

O fato não é pouco significativo. Todo um arraial, influenciado pela pastoral do então bispo de Mariana, Antônio Maria Corrêa de Sá e Benevides, decidiu alforriar seus cativos. Contudo, não podemos perder um detalhe: as alforrias seriam condicionais, obrigando os escravos a trabalhar mais três anos a partir de 1º de janeiro de 1888, estendendo sua servidão até 1891, algo impedido pela lei Áurea. Talvez seja o caso de observarmos o que dizia o prelado marianense em sua pastoral.

No documento datado de 19 de outubro de 1887 e lido pelos párocos em todas as igrejas da Arquidiocese, Benevides condena a “prática nefanda” da escravidão e pede aos sacerdotes e fiéis que libertem seus escravos. Contudo, a principal motivação para a concessão da liberdade seria o jubileu sacerdotal do Papa Leão XIII, algo presente nos documentos produzidos por outros bispos. Além disso, Benevides diz que se “seu rebanho” não pudesse libertar todos seus escravos que o fizessem pelo menos a uma parte, ou ainda, que os alforriassem com a condição de prestarem serviços por tempo limitado. Aos fiéis que não pudessem libertar seus escravos, só restaria rezar para o melhoramento da “sorte” daqueles que ainda permaneceriam na escravidão.[29] Continuando, o bispo critica a escravidão quando fala em igualdade dos homens perante Deus, dizendo ainda que este não teria criado o homem para ser escravo de outro homem, mas, no entanto, deixa transparecer seu caráter moderado quando orienta padres e fiéis para agirem apenas dentro dos “meios legítimos”, fomentando a alforria por condição, deixando claro que a eliminação da mão-de-obra cativa não era algo tão urgente assim.

A meu ver, o discurso redentor de Benevides, que se refere à escravidão como uma prática nefasta, acaba por se mostrar bem moderada se comparada aos intentos abolicionistas. Quando o prelado pede que os fiéis e sacerdotes libertassem ao menos parte de seus escravos, mesmo sob a condição de prestação de serviços, admitia que para muitos desfazer-se de uma propriedade não seria nada fácil. Curiosamente, mesmo argumentando que a escravidão é um pecado monstruoso, o bispo refere-se à alforria como um sacrifício a ser feito pelos sacerdotes! Benevides critica os padres por terem colaborado com a escravidão, sendo eles possuidores de escravos, mas, por outro lado, compreende que tal pecado se deve às necessidades geradas pelos costumes. A reflexão de Marcel Mauss sobre a esmola cabe bem aqui: “A esmola é o fruto de uma noção moral da dádiva e da fortuna, por um lado, e de uma noção do sacrifício, por outro”.[30] Além disso, com o incentivo às alforrias por prestação de serviço e o respeito às leis imperiais, Benevides deu amostras concretas de sua filiação aos intentos emancipacionistas, aconselhando aos vigários a convencer os senhores a cumprirem as determinações legais impostas pelo Império:

 

Aproveitamos a ocasião para recomendar aos Reverendos Párocos e Vigários que comuniquem com toda exatidão e pontualidade aos Srs. Coletores respectivos, o numero e nome de todos os escravos falecidos em suas freguesias e nas que estiverem a seu cargo, o lugar do falecimento e nomes dos seus senhores, como deseja e exige o governo Imperial, por aviso do Ministério da Agricultura, de 21 de setembro próximo passado, conforme o disposto nos Arts. 23 e 36, do Decreto n.4835, de 1º de Dezembro de 1871. Neste particular também esperamos a fiel observância de nossas recomendações.[31]

 

Tendo feito nossa primeira visita ao contexto da fonte, retornamos à descrição que o professor de Furquim faz do que aconteceu à sua volta. Como já foi dito anteriormente o relato só ganha contornos mais ricos em detalhes após a abolição da escravatura. Aparentemente, nosso informante sentiu-se mais à vontade para contar sua versão dos fatos. Assim, segue dizendo que naquele ano de 1888 a questão da abolição no Brasil havia tomado uma “proporção gigantesca”, o que teria determinado a reação de boa parte dos habitantes da pequena freguesia diante da leitura da pastoral de Dom Benevides. Segundo ele, com a leitura da Pastoral vários habitantes do arraial decidiram aderir a uma das propostas de Benevides que era a constituição de uma sociedade emancipadora, a exemplo do que havia sido feito em Mariana e em outros lugares, com a intenção de “libertar todo arraial”. Ainda seguindo as orientações de Benevides, o chefe da referida sociedade era o pároco Pe. Francisco, que acordou com vários senhores a libertação de seus cativos no dia do padroeiro da localidade, dia 01 de janeiro do ano de 1888.

A idéia de Benevides de fomentar a criação de uma sociedade abolicionista possuía um modelo. Dois anos antes de escrever a pastoral, em setembro de 1885, o bispo de Mariana apadrinhou a criação da Associação Marianense Redentora dos Cativos, uma entidade que tinha como propósito libertar o maior número possível de cativos alistados na Confraria de Nossa Senhora das Mercês de Mariana.[32] Junto com os confrades das mercês, Benevides criou um modelo de “sociedade abolicionista” cuja prática se aproximava mais dos emancipacionistas.

Observando o estatuto e os processos de concessão de alforria promovidos por essa associação, fica patente seu caráter moderado, uma vez que as normas da entidade concorriam para a garantia do pagamento de indenização aos senhores, ou seja, o respeito ao tão estimado direito de propriedade. Além disso, o estatuto da associação ainda determinava que a concessão da alforria deveria ocorrer apenas uma vez por ano e ainda através de um sorteio. A cada dia 31 de agosto, festa de São Raymundo Nonnato, Cardeal da Ordem de Nossa Senhora das Mercês, seriam indicados os nomes de doze escravos, seis homens e seis mulheres, que tivessem melhor comportamento moral, civil e religioso, sendo beneficiados tantos nomes quanto os fundos da associação pudessem cobrir.

Além de ter que contar com a sorte de ser sorteado, o cativo era obrigado a manter um excelente comportamento, já que esse era o principal pré-requisito para que ele pudesse participar da “loteria da liberdade”.[33] Aqui a suposta luta em prol da emancipação é na realidade mais um dispositivo de controle dos cativos, já que a ansiedade destes diante da possibilidade de ter a tão sonhada alforria é utilizada para garantir o bom comportamento moral, civil e religioso. Tal fato deveria ser comprovado, obrigatoriamente, através da apresentação de um atestado de bons antecedentes expedido por autoridade policial. Caso a proposta de indenização feita pelo senhor fosse aceita, mas por uma falta de sorte o escravo não fosse agraciado com a tão sonhada liberdade, deveria então esperar por mais um ano para  tentar novamente a sorte. Mais um ano “andando na linha”, do contrário, “adeus” à alforria.

Segundo o professor, apenas os “fazendeiros mais fortes” não gostaram muito da idéia da criação associação da libertação dos escravos no dia do padroeiro, o que não teria impedido a festa. Ele publicou os detalhes sobre os festejos do dia 1º de janeiro, bem como do 13 de maio de 1888 em um jornal da cidade de Ponte Nova, O Rio Doce. O artigo foi transcrito pelo professor no livro de tombo e através dele podemos praticamente participar dos festejos.

Um dia após festejar o dia de Nossa Senhora do Rosário, a protetora dos negros, no dia 31 de dezembro, era chegada a hora de honrar o Senhor Bom Jesus do Monte, onde com todo o esmero do festeiro Sr. Manoel Martins Pinheiro Júnior, várias pessoas do arraial e mesmo de fora dele foram assistir o cumprimento do acordo de libertar os escravos do Furquim.

Celebrou-se a missa cantada e depois da procissão do Sr. Bom Jesus do Monte, seguiu-se a entrega das cartas de liberdade. Durante a festa notava-se a presença de escravos de várias fazendas “de perto e de longe”. Nem a nebulosidade do dia e a chuva que caiu durante procissão afastou os presentes. Havia porém a ausência de alguns fazendeiros, aqueles descontentes com o movimento em prol da libertação. Estes, segundo o professor, estavam com medo da possibilidade de ocorrer um levante por parte dos cativos, já que a leitura da pastoral e a notícia da libertação que ocorreria no dia do padroeiro despertaram profunda ansiedade entre os mancípios. Indiferentes à ausência dos fazendeiros escravocratas e à chuva que alagava as ruas do arraial, os furquinenses marcharam em procissão pelas ruas após o Te Deum, felicitando os senhores que tinham libertado seus escravos, o que durou até as 10 horas da noite.

Chegada a noite, as pessoas aconselharam os escravos de fora do arraial a voltarem para suas fazendas o que ocorreu no dia seguinte. Este fato demonstra como o concorrido evento mexeu com os cativos. Mesmo aqueles de outros lugares e não agraciados pela dádiva da liberdade abalaram-se até Furquim para participar dos festejos. Infelizmente para alguns destes escravos a alegria da festa transformou-se na dor do castigo que receberam ao retornar às suas fazendas, algo que contrariava a lei, já que os castigos físicos haviam sido proibidos em 1886.

Segundo o professor, escravos da fazenda do Engenho Novo retornaram ao arraial no mesmo dia trazendo consigo um companheiro ferido pelo administrador da fazenda, Simão da Costa Carvalho. Tal fato teria despertado indignação nas pessoas que, de pronto, exigiram que se fizesse auto de corpo de delito, algo impossível no momento em que o fato ocorrera, já que era noite e o subdelegado de polícia e seu suplente residiam fora do arraial. Na ausência das autoridades policiais apelaram ao Juiz de Paz para que tomasse as devidas providências, no entanto, este recusou-se a fazê-lo correndo para casa. Mesmo com o povo à sua porta pedindo justiça, a autoridade continuou negando-se a agir. Então a solução proposta foi a fuga.

No dia seguinte, mais precisamente às 10 da manhã, aconselhados por aqueles que os acolheram, os cativos partiram para Ouro Preto a fim de encontrarem o auxílio dos abolicionistas da capital, onde chegaram na noite desse mesmo dia. Após acolher os fugidos, os abolicionistas iniciaram uma negociação com o advogado dos senhores dos escravos, o Sr. José da Costa Carvalho Sampaio, a qual resultou na liberdade dos mesmos com o ônus de serviço por dois anos. Ao invés da plena liberdade, os escravos, que eram 20 homens e 10 mulheres, encontraram no auxílio daqueles que supostamente lutavam contra a exploração do trabalho cativo um novo castigo, a garantia de mais dois anos de trabalho duro.

O professor ainda nos confidencia que este não foi o único caso. Segundo seu relato, nos dias seguintes começaram a ocorrer fugas de diversas fazendas, sendo que o destino dos fugidos era sempre o mesmo, Ouro Preto, onde, segundo ele, achavam todo apoio. A conseqüência das fugas, segundo o professor, foi o aumento das alforrias condicionais. Desesperados com a ameaça constante da debandada escrava, os senhores tinham como forma mais viável de garantir seus direitos à distribuição das alforrias por tempo de serviço. Aos olhos de nosso relator esta prática era extremamente benéfica. Para mim, no entanto, esta é mais uma prova da forma como a promessa da liberdade era usada para impedir grandes perdas dos senhores. Esta prática garantia tempo suficiente para o proprietário atenuar suas perdas. Além disso, a alforria condicional leva-nos novamente a questão da abolição gradual. Para Agostinho Marques Perdigão Malheiro, jurisconsulto e grande articulador do emancipacionismo imperial, a partir do momento em que o escravo recebia a alforria condicional, este via restituída sua condição natural de homem e personalidade. Com a alforria condicional, o escravo deixava de ser uma coisa para voltar a ser gente, tendo apenas sua liberdade adiada por um determinado tempo. [34] No entanto, na prática a coisa era bem diferente do que pensava Malheiro, já que o cativo continuava sem o estatuto jurídico de homem livre e o senhor mantinha seu domínio a salvo.

As alforrias condicionais teriam continuado a crescer até a promulgação da Lei Áurea. Mais uma vez os furquinenses, “povo cheio de sobranceira, que não quer senão acompanhar o progresso”, fizeram nova festa para comemorar a boa nova. Depois da festa do Divino, foi feita uma passeata com música à frente e explosão de fogos de artifício. As ruas do arraial foram iluminadas e enfeitadas com bandeiras, e o que se viu foram “vários discursos e felicitações ao País, à Princesa Imperial Regente, ao ministério – João Alfredo -, aos novos libertos, à Antônio Prato, José do Patrocínio e à muitos outros”.

Em meio à descrição da comemoração da Abolição, o professor desabafa explicando o motivo da excessiva seletividade de sua memória que marca seus relatos antes de 13 de maio de 1888. O motivo pelo qual ele não se declarava abertamente abolicionista seria dois atentados que teria sofrido. Segundo ele, os abolicionistas de Furquim corriam grande perigo, pois seus “patrícios escravocratas os prometiam a morte”. Ele deve o fato de ter sobrevivido “aos imensos favores que continuamente recebia da Divina Providencia”, a primeira vez quando participou ativamente do processo que levou à libertação de vários escravos no dia do padroeiro e a segunda após ter proferido um discurso felicitando o Brasil, a Princesa Regente, o ministério e aos novos libertos, atraindo novamente “o ódio escravista, pelo qual quiseram me arranjar demissão de meu emprego”.

Quase cinqüenta anos após o professor da freguesia marianense de Furquim ter produzido este relato, o farmacêutico Aurélio Pires, a fim de resgatar em sua memória os principais acontecimentos de sua vida, também toca o que ocorreu a sua volta na época do fim da escravidão. Claro que em razão da distância temporal entre o texto de Pires e os fatos que ocorreram em sua juventude como estudante em Ouro Preto influenciam em sua produção. Contudo, tal fato, a distância dos acontecimentos, não impede a reminiscência, pois as condições para a perenidade da memória estão diretamente ligadas aos laços do indivíduo que lembra e o grupo ao qual estava ligado ou às correntes do pensamento coletivo a que se vinculava[35], no caso o abolicionismo. Mesmo tendo como foco central sua própria vida, Aurélio Pires sempre se remete às pessoas com as quais convivia e nas ações executadas por elas. A todo instante lembra os nomes dos seus companheiros da República das Lajes, de seus professores no Liceu Mineiro e na Escola de Farmácia.

É através das lembranças do grupo ao qual pertencia que Pires nos concede valiosas informações sobre o movimento contra a escravidão em Ouro Preto. O então jovem estudante Aurélio nos leva aos nomes dos militantes abolicionistas da antiga capital e às entidades por eles formadas.

Ainda existem poucas informações sobre o movimento antiescravista na capital da Província. Oiliam José, autor de um dos primeiros trabalhos sobre abolição em Minas Gerais, informa que tanto em Ouro Preto quanto na vizinha Mariana, pelo fato de serem os centros “onde se agitavam as idéias mais em voga, desde as científicas e religiosas até as políticas e sociais”, concentrando um grande número de estudantes, seriam locais propícios para a articulação do movimento antiescravista. [36]

 

Assim, São Paulo, Rio de Janeiro, Ouro Preto e Mariana eram os centros nos quais a juventude mineira auria as idéias científicas, religiosas, políticas, sociais, literárias e artísticas com as quais se apresentava depois no interior provinciano. E foi nesses refúgios de cultura que os sacerdotes e profissionais liberais mineiros entraram em contacto com os movimentos abolicionistas que ali se desenvolviam, ora abertamente, ora nas sombras de atividades subterrâneas. [37]

 

Segundo Oiliam José, foram os estudantes os responsáveis pelas ações mais agressivas dentro do movimento, ou seja, a incitação de fugas e o acolhimento dos escravos fugidos que se dirigiam a capital.[38] Sem dúvida, a referência sobre a participação dos estudantes das escolas superiores de Ouro Preto no movimento abolicionista apresenta-se como uma interessante possibilidade de estudo, visto o papel de destaque que seus ex-alunos, principalmente os da Escola de Minas, desempenharam no cenário político após a proclamação da República.[39]

As lembranças de Aurélio Pires abundam com relação a inserção do movimento antiescravista dentro no meio acadêmico/escolar de Ouro Preto. Foi nas aulas de latim no antigo Liceu Mineiro, por exemplo, que conheceu o escritor Bernardo Guimarães e um dos líderes do movimento abolicionista ouropretano, Affonso de Britto. Este teria fundado em 1884 um periódico abolicionista chamado A Vela do Jangadeiro, uma clara alusão à abolição na província do Ceará ocorrida no mesmo ano. Segundo Pires, o surgimento do jornal foi “uma catapulta tremenda contra a maldita instituição negreira”.

No ano de 1884 o movimento ganhou força na capital. Naquele ano foram fundadas várias sociedades abolicionistas entre elas a Libertadora Mineira e a Abolicionista Rio Branco. De acordo com Aurélio, eram nessas entidades que professores e alunos da Escola de Minas, da de Farmácia e do Liceu Mineiro se juntavam aos demais militantes da abolição. A existência das referidas entidades também foi relatada por José Pedro Xavier da Veiga em suas Efemérides Mineiras.[40] Veiga refere-se a elas quando menciona a comemoração da abolição no Ceará ocorrida em Ouro Preto no dia 25 de março de 1884, que, segundo ele, teria sido promovida pelas entidades. Aurélio também se lembrava da referida festa. Inclusive os discursos proferidos na ocasião foram publicados no A Vela do Jangadeiro, onde os líderes como Leonidas Damasio profetizaram o fim do “sistema nefasto”:

 

No dia de hoje, nós vivemos a pensar numa melhor organização social, que nos obstinamos a olhar pra frente, pedindo mais luz e mais liberdade para o Brasil, podemos realentar as nossas crenças. A extinção total dos escravos brasileiros vem perto, e aqueles que tem como ideal religioso a marcha progressiva da humanidade feliz e livre, ajoelham-se ante a visão da pátria, que surge mais pura e mais bela, para a geração que nos deve suceder![41]

 

O autor segue citando os principais líderes do movimento antiescravista que se intensificou em 1884:

 

Em torno de Archias Medrado, que empunhava o lábaro da nova crença, grupavam-se legionários da cruzada bendicta, tais como Leônidas Damásio, Manoel Joaquim de Lemos, Antônio Olyntho, Eduardo Machado de Castro, Affonso de Britto, Samuel Brandão, Joaquim Francisco de Paula, Josephino Pires, Tibério Mineiro e tantos outros que constituíam a guarda avançada desse luzido exército que se batia denotadamente pela causa nobilíssima da abolição.[42]

 

Entre os nomes elencados no “exército abolicionista”, um merece nossa especial atenção. Antônio Olyntho, que também aparece como sendo um dos companheiros de república de Aurélio Pires trata-se, aparentemente, do primeiro governador republicano de Minas, Antônio Olyntho dos Santos Pires, que assumiu o cargo interinamente após a proclamação da república ocupando-o por apenas 07 dias, de 17 a 24 de novembro de 1889[43]. O sobrenome aponta para a possibilidade deste também ser o irmão mais velho de Aurélio Pires. No caso, o vínculo familiar com um dos líderes do movimento antiescravista e militante republicano, funciona como mais um componente para a ativação da memória de nosso relator.

A agitação proporcionada pela atuação das sociedades abolicionistas ganhou a pronta adesão dos estudantes da velha capital. As lembranças de Aurélio revelam como as idéias antiescravistas foram recebidas por ele e seus colegas, que não titubeavam em abandonar os livros para se juntar aos abolicionistas:

 

Quantas vezes, fechávamos, repentinamente e de estalo, nossos livros de estudo, e íamos atroar as pacatas ruas ladeirantes e frígidas da cidade anciã, com nossos berros de abolicionistas e de republicanos imberbes, tanto mais sinceros quanto mais inoffencivos, com os quaes suppunhamos abalar o mundo![44]

 

Pouco antes da abolição, ainda ocorreram outros fatos que mereceram a atenção de Aurélio. No dia 30 de novembro de 1887, por ocasião do jubileu sacerdotal do Cônego Joaquim José de Sant’Anna, vigário de Ouro Preto e, segundo ele, político conceituadíssimo, teriam sido distribuídas pelo religioso centenas de cartas de alforria em plena Praça da Independência (hoje Praça Tiradentes), oferecidas por senhores de escravos em homenagem ao padre. Mais uma vez nos deparamos com a distribuição de alforrias em honra de uma figura religiosa, assim como ocorreu em Mariana, e mais ainda, uma manifestação pública contra a escravidão.

De acordo com Pires, adentrando o ano de 1888, a “velha capital se transformou em asilo de numerosos fugidos que desertavam das fazendas em busca de liberdade que lhes era assegurada pelos irmãos brancos”.[45] Assim como o professor da freguesia marianense de Furquim, Aurélio Pires também passa a relatar aumento de fugas de escravos para Ouro Preto. A conecção entre os dois relatos dá uma pista para uma possível confirmação de que a cidade teria sido o principal destino dos escravos fugidos da região e que lá eram acolhidos pelos abolicionistas. Logicamente, necessitamos cruzar as informações disponibilizadas por nossos relatores com outros tipos de fontes como jornais e processos crime que tenham registrado tais fugas para capital, afim de comprovar definitivamente o que o professor e Aurélio Pires nos confidenciaram, algo ainda a ser feito.

 

Uma breve consideração

O conteúdo das “confidências” que nossas fontes nos prestaram mostra o quanto suas reminiscências estavam banhadas da realidade na qual viveram. Através de suas memórias foi possível revisitar a sociedade do fim do século XIX e recolher alguns elementos para a análise da forma como essa mesma sociedade lidou com o fim da escravidão.

Tanto o relato do professor quanto as memórias de Aurélio Pires lançam pistas para que possamos iniciar um trabalho de recomposição do movimento antiescravista nas antigas capitais mineiras. Através desses traços de memória coletiva surgiram informações como as fugas de cativos para Ouro Preto, bem como a ação dos militantes antiescravistas que promoveram alforrias coletivas e fundaram clubes e associações.

Como já dito, aqui foram apresentadas pistas. Pistas que devem ser complementadas com outras informações com as quais o historiador irá se deparar durante seu trabalho de “Sherlok Holmes”. O cruzamento de vários tipos de fontes é imprescindível para a confirmação das pistas lançadas pelos relatos. Jornais, processos judiciais, além de outros tipos de documentação oficial podem definir o quatro que apenas começou a ser pintado.



* Bacharel em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e mestrando em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

[1] PIRES, Aurélio. Homens e factos de meu tempo: 1862-1937. São Paulo: 1939, p.84.

[2] Livro do Tombo – Furquim (1884 – 1901) – Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana.

[3] ROUSSO, Henry. A memória não é mais o que era. In: AMADO, Janaína & ferreira, Marieta de Moraes (coord.). Usos & Abusos da história oral.  Rio de Janeiro: Editora FGV, 4ª edição, 2001.

[4] XAVIER, Regina. Biografando outros sujeitos, valorizando outra história:  estudos sobre a experiência dos escravos. In: SCHMIDT, Benito Bisso. O biográfico: perspectivas interdisciplinares. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2000, pp.97-130.

[5] THOMPSON, Edward Palmer. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

[6] BURKE, Peter. A Escrita da História: Novas Perspectivas. São Paulo: EDUNESP, 1992.

[7] HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Laia Teles Benoior. São Paulo: Centauro, 2004.

[8] HARLAN, David. A história intelectual e o retorno da narrativa. In: RAGO, Margareth & GIMENES, Renato Aloizio de Oliveira (org.). Narrar o passado, repensar a história. Campinas: UNICAMP, 2000.

[9] REVEL, Jacques (org). Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: FGV, 1998, pp. 93-101.

[10] Refiro-me aqui especialmente à chamada “Escola Paulista” cujos representantes desenvolveram a tese de que a coerção e o controle exercidos pela sociedade escravocrata teriam “despersonalizado” e “brutalizado” os escravos. Citamos como principais integrantes Florestan Fernandes, Otávio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, Carlos Alfredo Hasenbalg e Emília Viotti da Costa.

[11] Desde a década de 1980 afloraram os trabalhos que visavam trazer à baila uma nova abordagem do papel do cativo na sociedade escravista. Entre ele podemos citar: REIS, João José & SILVA, Eduardo. Negociação e Conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1987; e LARA, S. H. Campos da violência. Escravos e senhores na capitania do Rio de Janrio 1750-108. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

[12] ANDRADA E SILVA, José Bonifácio. José Bonifácio de Andrada e Silva. Organização e introdução de Jorge Caldeira. Coleção Formadores do Brasil. São Paulo: Ed.34, 2002, pp.200-217.

[13] Para saber mais sobre o contexto da promulgação da Lei do Ventre-Livre ver: CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis: Historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 131-266 & PENA, Eduardo Spiller. Pajens da casa imperial – jurisconsultos, escravidão e a lei de 1871. Campinas: Editora da Unicamp/Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2001.

[14] NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. Quarta Edição. Petrópolis: Editora Vozes Ltda, 1977.

[15] QUEIRÓS, Suely R. Reis de. A abolição da escravidão. São Paulo, Brasiliense, 1981.

[16] Além dos integrantes da chamada “Escola Paulista”, autores como Célia Maria Marinho Azevedo apontam o movimento abolicionista como parte integrante de um projeto de nação sustentado pelas elites, um “negócio de brancos” cujo único fim seria garantir os interesses econômicos e sociais de sua classe. Contudo, ao contrário da “Escola Paulista”, a historiadora Célia Azevedo dá total destaque para o papel da rebeldia escrava, antes negada como fator decisivo no processo de abolição. Para a autora, teria sido a pressão e o medo exercidos pelos cativos que teria acelerado o processo que culminou no 13 de maio.  Ver: IANNI, Otávio. As metamorfoses do escravo. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1962; CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e Escravidão no Brasil meridional. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997; AZEVEDO, Célia Maria Marinho. Onda Negra, Medo Branco: O negro no imaginário das elites – Século XIX.  Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

[17] Em seu panfleto Abolição imediata e sem indenização, André Rebouças deixa claro que a abolição da escravidão seria apenas um estágio da luta encampada pelo movimento abolicionista. O próximo passo seria a constituição de uma política baseada na reorganização da estrutura fundiária do país através do estabelecimento de um imposto territorial e da distribuição de terras entre os libertos. Veja: REBOUÇAS, André. Abolição imediata e sem indenização. Rio de Janeiro, Typ. Central E.R. da Costa, 1883.

[18] Ver: GRAHAM, Richard. Escravidão, reforma e imperialismo. São Paulo: Perspectiva, 1979; MACHADO, Maria Helena P. O plano e o pânico: os movimentos sociais na década da abolição. Rio de Janeiro: Editor UFRJ, EDUSP, 1994; SANTOS, Cláudia Andrade dos. Projetos sociais abolicionistas: ruptura ou continuísmo? In: REIS FILHO, Daniel Aarão (organizador). Intelectuais, história e política: séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: 7Letras, 2000.

[19] MACHADO, Maria Helena P. op. cit., p.146.

[20] Essa condição de statuliber foi muito discutida, desde os juristas romanos até os do século do XIX. Para saber mais veja: PENA, Eduardo Spiller. Op. cit.

[21] Recentemente desenvolvi uma discussão sobre o envolvimento do clero e de advogados com a questão escravista em Mariana. COTA, Luiz Gustavo Santos. Emancipacionismo e Abolicionismo: clérigos e advogados no final do sistema escravista de Mariana, Minas Gerais, 1871-1888. Monografia de Bacharelado apresentada ao Departamento de História da Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP. Fevereiro, 2005.

[22] DAVIS, David Brion. O problema da escravidão na cultura ocidental. Tradução de Wanda Caldeira Brant. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

[23]VAINFAS, Ronaldo. Ideologia & Escravidão – os letrados e a sociedade escravista no Brasil Colonial. Petrópolis: Editora Vozes, 1986.

[24] DAVIS, David Brion. Op, cit., p.107.

[25] Esta tese consiste na idéia de que a escravidão era fruto do pecado original e que os cativos africanos seriam os herdeiros do pecado de Cam, filho de Noé, que, vendo seu pai dormir nu, conta o fato a seus irmãos, sendo então castigado por seu pai, que amaldiçoa toda sua descendência. Os herdeiros desta antiga maldição seriam os negros, os etíopes, que deveriam purificar sua alma através da escravidão.

[26] VAINFAS, Ronaldo. op. cit.

[27] MORAES, Evaristo de. A Campanha Abolicionista (1879 – 1888), 2ª edição. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1986.

[28] Livro do Tombo – Furquim (1884 – 1901) – Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Folha 19 verso.

[29] BENEVIDES, Antônio Maria Corrêa de Sá e. Pastoral do Excelentíssimo e Reverendíssimo Sr. Dom Antônio Maria Corrêa de Sá e Benevides, bispo de Mariana, sobre a extinção do elemento servil. Mariana: Joaquim Alves (antigo Bom Ladrão), 1887.

[30] MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Lisboa: Edições 70, p.76.

[31] BENEVIDES, Antônio Maria Corrêa de Sá e. Op. cit.

[32] Estatutos da Associação Marianense Redentora dos Cativos. Mariana: Joaquim Alves Pereira (antigo Bom Ladrão), 1885. Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana.

 

[33] Idem, ibidem.

[34] MALHEIRO, Perdigão. A escravidão no Brasil: ensaio histórico, jurídico, social; introdução de Edson Carneiro. 3ª edição. Petrópolis: INL, 1976.

[35] HALBWACHS, Maurice. Op. cit.

[36] JOSÉ, Oiliam. A Abolição em Minas. Belo Horizonte: Itatiaia, 1962.

[37] Idem, ibidem, p.93.

[38] Idem, ibidem.

[39] Para saber mais sobre a influência dos ex-alunos da EMOP na política mineira ver: CARVALHO, José Murilo de. A Escola de Minas de Ouro Preto - o peso da glória. São Paulo: Ed. Nacional, 1978; & ROQUE, Rita de Cássia Menezes. “Os Bandeirantes dos Tempos Modernos”: A Escola de Minas de Ouro Preto e o bloco no poder em Minas Gerais (1889-1945). Dissertação de mestrado apresentada ao Curso de Pós Graduação em História Social na linha de Poder e Política, da Universidade Federal Fluminense. Niterói: 1999.

[40] Veiga, José Pedro Xavier da, 1849-1900.     Efemérides mineiras (1664-1897): índice onomástico. Belo Horizonte: 1998.

[41] PIRES, Aurélio. Op. cit., p.83.

[42] Idem, ibidem, p.61.

[43] Relatório apresentado pelo ex-governador Antônio Augusto de Lima ao Presidente do Estado de Minas Gerais José Cesário de Faria Alvim em 15 de junho de 1891. Documento digitalizado disponível no site da Chicago Universit: www.crl.edu/content/brazil/mina.htm

[44] PIRES, Aurélio. Op. cit., p.68.

[45] Idem, ibidem, p. 84.