Um olhar “sob” as mulheres: as representações do feminino no cinema de Ana Carolina (Mar de rosas, Das tripas coração e Sonho de valsa, 1977-1986)
por Flávia Cópio Esteves


Na pesquisa que proponho para minha dissertação de mestrado em História Social pela Universidade Federal Fluminense, procuro focalizar uma trilogia ficcional, pertencente à obra da cineasta brasileira Ana Carolina. A proposta parte da percepção da cineasta como sujeito e intérprete de seu tempo, compreendendo os filmes em questão como capazes de desvelar traços profundos da sociedade de sua época, exposta em seus questionamentos, seus lapsos e suas contradições[1]. O objetivo central deste texto é justamente traçar alguns caminhos possíveis a serem tomados nesta investigação. Tentarei expor aqui as principais preocupações que nortearão o desenvolvimento do trabalho como o tenho concebido até então, sem dar ao texto a forma de um projeto oficial. Trata-se, na verdade, de algumas reflexões iniciais, que inclusive já se afastam em certa medida do projeto original e que englobam tanto os rumos teóricos quanto uma análise prévia dos objetos.

 

Caminhos de uma cineasta brasileira

Embora não seja objetivo do trabalho desenvolver uma biografia da cineasta em questão, alguns elementos relacionados à sua trajetória e percepção em relação ao cinema tornam-se fundamentais para situar a trilogia que proponho como objeto. Ana Carolina Teixeira Soares inicia sua formação acadêmica na Faculdade de Medicina (Departamento de Fisioterapia) da Universidade de São Paulo, especializando-se em Paralisia Cerebral e ingressando posteriormente no curso de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. O ingresso na atividade cinematográfica vem na década de 1960, com o curso da Escola Superior de Cinema São Luiz e com a participação como continuísta de Walter Hugo Khouri em As amorosas. A carreira de documentarista se inicia em 1967, com a co-direção de Lavrador, compartilhada com Paulo Rufino, seguida por Indústria (1968), Monteiro Lobato (1969), Guerra do Paraguai (1970), Pantanal (1971), entre outros[2].

 Tendo inicialmente se dedicado a documentários em curta e média metragens, o primeiro longa de Ana Carolina é realizado em 1974, Getúlio Vargas, montado a partir de material proveniente de acervos documentais. Posteriormente, como ela afirma em diversas entrevistas a jornais e revistas da época, a preocupação com o Brasil, impulso inicial de sua produção, a leva para dentro de si mesma. Em 1977, com Mar de rosas, inaugura uma trilogia de caráter mais intimista, composta ainda por Das tripas coração (1982) e Sonho de valsa (1986), nos quais expõe sua tentativa de delinear sentimentos, paixões e relações de poder que estruturam o que ela concebe como “universo feminino”.

O eixo que perpassa as três produções é o elemento feminino: as personagens femininas assumem grande destaque nas histórias narradas, expostas em seus conflitos e representadas de forma subjetiva, a partir de um olhar particular. O olhar “sob” as mulheres mencionado no título do trabalho busca recuperar justamente a percepção própria da cineasta, ancorando-se em um termo que ela mesma emprega ao definir seu cinema. Nas palavras de Ana Carolina, “Em Getúlio eu percebi que não dominava o assunto. Na verdade, eu não domino nenhum assunto. Eu não fiz um filme sobre Getúlio, mas sob Getúlio. Não faço filmes sobre as mulheres. Faço filmes sob as mulheres para os homens”.[3]

Este termo é retomado por Jean-Claude Bernardet que, em artigo publicado no jornal Última Hora na época do lançamento de Mar de rosas, caracteriza esta produção como um entre outros filmes nos quais o assunto abordado aparece como algo misterioso, problemático, sendo os próprios filmes uma forma de indagação e de questionamento. Seriam obras que vão muito além de simplesmente expor um suposto conhecimento do cineasta frente a um determinado tema, conhecimento este fruto de conclusões formuladas previamente. Ao contrário, nestes filmes, o cineasta “(...) se joga no escuro para perguntar o que é essa realidade, para perguntar de que forma ele se relaciona com ela (...)[4].Não se trata, desta forma, de filmes que buscam trazer conclusões rígidas em torno de determinados assuntos, mas sim de filmes que constituem em si mesmos instrumentos de indagação do próprio cineasta frente a uma temática específica. Questionamentos, indagações, hipóteses: traços de um cinema que exprime inquietações do próprio autor, um cinema que surge como resultado de um olhar bastante atento sobre a realidade que o cerca e desperta dúvidas. Desta forma, os filmes de Ana Carolina são “sob”, como ela mesma os define, não apenas porque atuam como mecanismo de indagação da própria cineasta, mas também porque neles são incorporados elementos de sua própria vivência e observação perante um contexto histórico particular.

 

Traços dos anos de efervescência política e cultural

A compreensão do cinema de Ana Carolina como analítico e provocador possui raízes nas motivações que ela própria resume em diversas entrevistas ao falar de sua entrada na atividade cinematográfica, marcada pela intenção de discutir a realidade brasileira e buscar instrumentos que a permitissem intervir nessa mesma realidade. Ana Carolina estava, naquele momento, fins da década de 60, revelando-se profundamente coerente com a época que vivenciava: um período de intensa efervescência política e cultural que se experimentava no Brasil e no mundo, no primeiro apresentando tonalidades específicas diante do quadro da ditadura militar iniciada em 1964.

Marcelo Ridenti considera o período que se estende entre a década de 60 e início dos anos 70 como um momento em que a idéia de revolução perpassava a atmosfera política e cultural: inspirações na revolução cubana ou chinesa, ou ainda fidelidade ao modelo soviético, conviviam com as propostas do movimento hippie e da contracultura, embasadas em uma transformação no âmbito dos costumes[5]. Rebeldias contra a ordem e revolução social em busca de uma nova ordem davam o tom às práticas dos movimentos sociais e penetravam na esfera das manifestações artísticas, assumindo diferentes formas. Ridenti emprega o conceito de romantismo revolucionário para compreender o conjunto das lutas políticas e culturais que tiveram lugar ao longo destes anos 60 e início dos 70. Estas englobaram desde o combate da esquerda armada até as manifestações político-culturais presentes na música popular, no cinema, no teatro, nas artes plásticas e na literatura. Configurava-se, então, uma utopia revolucionária romântica que valorizava a vontade de transformação, a ação dos seres humanos, sua capacidade para mudar a História.

O próprio cinema brasileiro no qual Ana Carolina se inicia mostra-se marcado por estes ideais, através do vasto quadro de produções do Cinema Novo. Concebendo o cinema como veículo de reflexão sobre a realidade brasileira, produzia-se neste momento uma convergência entre a defesa do cinema de autor, dos filmes de baixo orçamento e a renovação da linguagem, traços que, segundo Ismail Xavier, marcam profundamente o que chama de “cinema brasileiro moderno”, cujas raízes se encontram, neste momento do processo histórico brasileiro, em sintonia com experiências e debates trazidos por realizadores em diferentes regiões do mundo[6].

Assim a própria Ana Carolina define sua relação com a realidade brasileira, especialmente em sua opção pelo cinema:

 

No momento em que resolvi fazer cinema, o Brasil vivia um período absolutamente diferente. Uma época em que parecia possível para a juventude interferir no processo brasileiro, transformá-lo e opinar – o momento dava essa ilusão. Corriam então os anos de 66/67. Quer dizer, nesses dias, o cinema, o documentário, o pensamento brasileiro, todos os tipos de aproximações culturais pareciam possíveis. E a minha opção foi no momento em que começava a reversão de expectativas sobre essas aproximações: 69/70 mostraram que não era bem por ali o caminho. E eu então percebi: ‘Não vou me transformar não, não vou me modificar não’. E aí eu assisti muitas coisas como a aniquilação da universidade, o total esvaziamento do processo social e político, e vi, finalmente, surgir o novo projeto brasileiro dos anos 70. Esse foi o caminho que o Brasil dessa época me proporcionou e que acabou me levando ao cinema[7].

 

Em entrevista ao livro Patrulhas Ideológicas, organizado por Carlos Alberto M. Pereira e Heloísa Buarque de Hollanda, Ana Carolina retrata bem o engajamento político vivenciado nas suas primeiras experiências ao entrar na faculdade no início dos anos 60, quando estudava no Instituto de Reabilitação da Faculdade de Medicina da USP: toda a ebulição política, o envolvimento com as esquerdas, o convívio social que girava em torno da ação e da participação. Sua opção pelo cinema consolida-se num momento em que, em suas palavras, “(...) realmente começa a baixar a repressão mesmo”. [8] Era o ano de 1969: “Você tinha que assumir uma posição e eu comecei realmente a cair fora”.[9] Neste momento, ela já iniciara sua produção em documentários, acreditando que o documentário de feições políticas também podia atuar como uma contribuição, como uma forma de engajamento diante do temor da repressão.

Os anos 70 chegam, transformações profundas vão ocorrendo na realidade brasileira, bem como no cinema, cada vez mais desafiado pelas imposições vindas do mercado. Segundo Ismail Xavier, neste período, prevalece a invenção de caminhos pessoais, de uma resolução própria dada por cada cineasta às relações entre projeto, linguagem, condições de produção e mercado. Este autor analisa os rumos tomados pelos traços definidos por ele para o cinema moderno ao longo dos anos 70, cuja produção aparece marcada por traços variados: alguns resultados dos desafios impostos pelo mercado, outros herança dos tempos anteriores. Para ele, em filmes de cineastas como Carlos Alberto Prates Correia (Perdida, 1976 e Cabaré Mineiro, 1980), Jorge Bodansky / Orlando Senna (Iracema, 1974) e Arthur Omar (Triste trópico, 1974), além da própria Ana Carolina (Mar de rosas, 1977), os traços observados no cinema da década anterior, no auge do Cinema Novo, se renovam e se atualizam. Segundo o autor, tais produções deram continuidade à “(...) pesquisa da linguagem e a busca do estilo original ao discutir a formação histórica e os problemas contemporâneos do país[10].

Basear-me em tais concepções para pensar a trilogia em questão significa perceber suas personagens femininas como elementos que engendram questões de alcance político e social, em franco diálogo com o contexto histórico no qual os filmes são concebidos e recebidos. Neste sentido, tomo como princípio a idéia de que, perpassando temáticas e aspectos que parecem demasiadamente subjetivos, se manifesta o olhar profundamente provocador e investigativo da própria cineasta, um olhar que, se inicialmente teve a intenção de intervir na realidade brasileira, no bojo da ebulição de 1968, desdobrou-se para um espaço mais restrito, para um universo conhecido em sua vivência como mulher e profissional, buscando novas estratégias de reflexão e intervenção na realidade do país sob a forma de uma nova linguagem, sem, no entanto, perder de vista suas referências anteriores. Mantêm-se presentes percepções, ligadas à realidade política, cultural e social brasileira, que extrapolam as experiências e ações dos personagens representadas seja no ambiente cotidiano, familiar e pessoal, presente em Mar de rosas e Sonho de Valsa, seja no espaço de um colégio religioso, onde é ambientada a trama do segundo filme, Das tripas coração. Voltaremos aos filmes mais adiante.

 

Quadro teórico

Em termos teóricos, este estudo se propõe a estabelecer uma articulação entre História e Cinema sob o prisma da História Cultural e da História das Relações de Gênero. Nesta perspectiva, a proposta de análise das imagens do feminino no cinema de Ana Carolina exige mencionar o conceito de representações, tal como é expresso por Roger Chartier. Dentro da proposta deste trabalho, tal conceito assumiria duas das dimensões relacionadas por este autor: a idéia de “formas de exibição do ser social ou do poder político tais como as revelam signos e ‘performances’ simbólicas através da imagem, do rito ou daquilo que Weber chama de ‘estilização da vida’”, e ainda, “representações coletivas que incorporam nos indivíduos as divisões do mundo social e estruturam os esquemas de percepção e de apreciação a partir dos quais estes classificam, julgam e agem[11]. A primeira realidade designada pelo conceito de representação se aplica ao cinema, dentro de sua concepção como visão da sociedade, e é necessário tê-la em mente ao estabelecermos relações entre a produção cinematográfica e a história. No entanto, é a segunda definição que se mostra mais presente neste estudo. O próprio Chartier destaca a utilização deste conceito para analisar lutas que possuem por armas e objetos as representações. Trata-se de relações de força simbólicas, nas quais identidades e princípios são impostos por um grupo sobre outro a fim de assegurar e perpetuar a dominação.

Tal questão se encontra, segundo este mesmo autor, no centro da História das Mulheres e das Relações de Gênero. A idéia da construção de uma “identidade feminina”, no sentido de papéis e comportamentos atribuídos às mulheres, passa por uma interiorização por parte destas de normas enunciadas pelos discursos masculinos, que configuram determinadas representações das diferenças entre os dois sexos, as quais, constantemente repetidas e evidenciadas, se inscrevem nos pensamentos e corpos de homens e mulheres. Isto, no entanto, não exclui a possibilidade de desvios e manipulações destes modelos e normas, transformando-os em instrumentos de resistência e afirmação de identidade. Trata-se, em suma, de compreender a relação de dominação como histórica e culturalmente construída, efetivando-se também através de mecanismos simbólicos.[12]

Tais noções nos remetem ao conceito de gênero, essencial para analisar filmes cujas temáticas trazem como pontos fundamentais relações envolvendo homens e mulheres. Empregado inicialmente pelas militantes do movimento feminista com o intuito de afastar o teor exclusivamente biológico das diferenças sexuais, tal conceito ressalta o caráter social destas diferenças, partindo da perspectiva de que os papéis, valores e comportamentos atribuídos a homens e mulheres consistem em construções elaboradas pelas próprias sociedades[13]. Tais relações devem ser entendidas como repleta de nuances. É necessário percebê-las não como restritas ao binômio dominação masculina e opressão feminina, mas atentar para as diversas modalidades de compensações e poderes retirados pelas mulheres deste conjunto de representações e relações[14]. Mostra-se válido ainda ressaltar que empregar a noção de gênero não significa atentar apenas para as relações entre homens e mulheres, mas também para aquelas que se estabelecem entre as próprias mulheres, observando conflitos em termos de etnias, classes e gerações[15]. Para Joan Scott, “o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar relações de poder[16].

 Esta noção de um poder que se manifesta de forma “capilar”, nos termos de Michel Foucault[17], é característica deste momento histórico focalizado. Segundo este autor, a questão do poder é tradicionalmente subordinada à instância econômica e ao sistema de interesses que esta garante, sendo colocado usualmente em termos jurídicos e/ou relacionado ao aparelho de Estado. Não há uma preocupação, em muitas das análises que partem de tais perspectivas, com as formas pelas quais o poder se exerce concretamente, em suas especificidades, com suas técnicas e táticas.

O ano de 1968, símbolo da revolução cultural vivenciada no século XX, aparece como um momento importante para a definição de novas maneiras de se conceber o poder. Neste período, as lutas cotidianas daqueles que se debatiam nas malhas mais finas da rede do poder abrem espaço para que este seja analisado em seus aspectos mais concretos, chamando a atenção para elementos que até então tinham permanecido à margem do campo da análise política, e que se mostram fundamentais para o funcionamento geral das engrenagens do poder. Torna-se, neste sentido, essencial perceber esta forma capilar de existência do poder, ou seja, o “(...) ponto em que o poder encontra o nível dos indivíduos (...)”, sendo exercido “(...) no corpo social e não sobre o corpo social”.[18] Significa captar o poder em suas extremidades, em suas últimas ramificações, em termos de suas manifestações e estratégias através das quais sujeitam os corpos, dirigem os gestos e os comportamentos.

Em contrapartida a estas manifestações de poder, serão ainda de grande importância as noções expressas por Michel de Certeau no que se refere aos usos e táticas acionadas pelos sujeitos frente às representações e práticas que lhes são impostas, não simplesmente rejeitando-as ou transformando-as, mas empregando-as a partir de regras, costumes ou convicções que lhes são próprias, dando forma a uma produção caracterizada por “(...) suas astúcias, seu esfarelamento em conformidade com as ocasiões, suas ‘piratarias’, sua clandestinidade, seu murmúrio incansável, em suma, uma quase-invisibilidade, pois ela não se faz notar por produtos próprios (...) mas por uma arte de utilizar aqueles que lhe são impostos”[19]. As representações e práticas recebidas são, desta forma, resignificadas, manipuladas pelos sujeitos e s tornam objeto de usos que escapam aos seus produtores.

O diálogo entre História e Cinema, por sua vez, é detentor de uma herança proveniente da ampliação do universo de investigação historiográfico que, nas últimas gerações, vem incorporando ao conjunto de objetos do conhecimento histórico elementos que vão além dos eventos políticos, das tendências econômicas e das estruturas sociais. Em um desdobramento das inovações difundidas pelos Annales, nas figuras de Marc Bloch e Lucien Febvre, a História dos últimos trinta anos tem conferido destaque a temáticas como a infância, a morte, o corpo, a feminilidade, a leitura, entre diversas outras modalidades e esferas da atividade e do pensamento humano. A ênfase em outros objetos e nas experiências de indivíduos comuns expôs as limitações do uso exclusivo de documentos oficiais como fontes do conhecimento histórico e, neste sentido, cada vez mais o historiador emprega uma gama variada de registros que incluem dados estatísticos, evidências orais e visuais[20].

Em 1974, Jacques Le Goff e Pierre Nora publicam Faire de l’Histoire, coletânea de artigos que objetivavam evidenciar novos horizontes para o ofício do historiador. Integra esta obra um artigo de Marc Ferro, “O filme: uma contra-análise da sociedade?”, no qual este aborda a questão do cinema como fonte para a História, artigo este que, posteriormente, foi incluído em uma coletânea de ensaios deste mesmo autor intitulada Cinema e História[21]. Nesta obra, Ferro lança diretrizes básicas para o emprego de filmes sob um olhar histórico, tendo como pressuposto central o fato de que o estudo da imagem pode fornecer elementos de análise que transcendem seu conteúdo. Neste sentido, segundo Peter Burke, as imagens, e no caso particular deste trabalho, os filmes, "não são nem uma reflexão da realidade social nem um sistema de signos sem relação com a realidade social, mas ocupam uma variedade de posições entre estes extremos[22]. O cinema pode expressar, segundo Burke, uma visão da sociedade, no sentido de que aquele que produz a imagem atua como um intérprete de seu tempo, de sua sociedade, daquilo que seu olhar capta. Ele constrói uma visão fruto de um olhar específico, de um recorte sobre o real e o social - sobre atitudes do cotidiano, relações sociais, questões políticas ou acontecimentos.

Objetos centrais do estudo aqui proposto, os filmes que compõem esta trilogia revelam-se um terreno fértil para a discussão mais ampla do cinema como uma visão da sociedade. Articulando ao longo das três produções momentos diferentes de uma trajetória de vida – a menina, a adolescente e a mulher madura – Ana Carolina consegue dar forma a uma imagem profunda da sociedade de sua época, expondo seus questionamentos, seus lapsos e suas contradições. Poderes e contrapoderes em diferentes instâncias do cotidiano, sexualidade, busca pelo amor eterno, esforços de libertação pessoal: por meio de suas personagens, nos são apresentadas uma série de questões que, historicizadas, nos permitem compreender tais filmes para além de seus conteúdos.

Reflexões iniciais sobre os objetos de estudo

A análise dos filmes, ancorada nos conceitos e concepções mencionados acima, tem se revelado um grande desafio. Como compreendê-los nos múltiplos significados que podem assumir, sem torná-los simplesmente ilustrações de um período histórico?

A riqueza em termos de significação presente no cinema tem aberto, neste trabalho, diversas entradas possíveis para a compreensão dos filmes. Inicialmente, a intenção do projeto mantinha-se restrita a uma análise das personagens femininas que estabelecesse um diálogo apenas com as demandas dos feminismos em voga entre as décadas de 1960 e 1980. Sem dúvida os três filmes apresentam interfaces com as diversas lutas em voga naquele momento em prol de uma redefinição dos papéis e comportamentos atribuídos a homens e mulheres, na medida em que as relações que envolvem ambos se encontram profundamente presentes nas tramas analisadas. No entanto, algumas reflexões posteriores sinalizaram para caminhos adicionais, os quais abriram espaço para outras interfaces, mais amplas, que podem tomar forma também através das personagens femininas.

Em uma primeira análise, a questão do poder constitui um eixo que atravessa as três produções. Poderíamos considerar que, sob este aspecto, se estabelece uma relação entre a produção anterior em documentários e a trilogia ficcional em foco, especialmente com Getúlio Vargas (1974), filme que antecede Mar de rosas (1977). No entanto, nos três filmes analisados, observam-se manifestações de um poder difuso, expresso e vivenciado em diferentes modalidades de relações cotidianas. Não se trata de um poder verticalizado, proveniente do Estado, mas de relações de poder tecidas em uma intrincada trama protagonizada pelos atores sociais. Neste sentido, poder e autoridade constituem questões flagrantes das experiências vividas pelos personagens nas histórias que narra, especialmente pelas personagens femininas, que assumem grande destaque.

O fato de tentar alcançar a realidade social brasileira através de um olhar voltado para uma esfera microscópica, seja a das relações familiares, seja um colégio católico, ou ainda a busca de uma mulher pelo amor eterno, abrindo espaço para representações do feminino complexas e questionadoras, fornece mais uma chave de leitura para a trilogia em questão. As relações de poder que a cineasta coloca na tela tomam forma através destas personagens femininas, e é por meio delas que as relações entre homens e mulheres são expostas em suas múltiplas facetas e conflitos.

Neste sentido, a trilogia de Ana Carolina mantém uma relação não só com os feminismos e a chamada “questão da mulher” em voga entre as décadas de 1960 e 1980, como também com as variadas formas assumidas pelos esforços de libertação pessoal que não tomam para si o título de “feminista”. Ao mesmo tempo, não se pode deixar de lado a questão mais ampla do poder e da concepção de uma realidade opressora, num contexto de crítica a valores e comportamentos tradicionais através da contracultura e, no caso do Brasil, de resistência a uma conjuntura político-social autoritária.

Nos tortuosos caminhos trilhados pela pesquisa, um de seus objetivos centrais é pensar como todos estes elementos são reunidos nestas personagens femininas, conferindo-lhes profundidade e permitindo perceber Mar de rosas, Das tripas coração e Sonho de valsa como fundamentais para mudanças nas representações das mulheres no cinema brasileiro. Para isso, deverá fazer parte da investigação um paralelo com outros (as) cineastas que, no mesmo período, tenham como temáticas questões mais subjetivas e personagens femininas de destaque.

Em suma, trata-se de um trabalho que ainda dá seus primeiros passos, enfrentando como objetos filmes bastante herméticos, porém extremamente ricos para análise. A historicidade da trilogia de Ana Carolina se evidencia, desta forma, sob dois aspectos: por um lado, na perspectiva de transformações nas formas de representação das mulheres pelo cinema brasileiro, e por outro lado, através das próprias personagens femininas, cujos sentimentos, inquietações e vivências expressam, de diferentes maneiras, questões que ganham destaque no quadro de ebulição política e cultural do período.

 

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[1] Ao definirmos a cineasta como sujeito e intérprete de seu tempo, partimos das concepções expressas por Sidney Chalhoub e Leonardo Pereira em relação à obra literária, ao afirmarem a necessidade de historicizá-la, inserindo-a no movimento da sociedade de seu tempo e compreendendo seu autor como sujeito e testemunho de sua época. CHALHOUB, Sidney & PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. A História Contada. Capítulos de história social da literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

 

[2] ORICHIO, Luís Zanin. Verbete Ana Carolina In RAMOS, Fernão & MIRANDA, Luis Felipe (orgs.) Enciclopédia do Cinema Brasileiro. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2000 (p. 93).

 

[3] “Ana Carolina. Uma artista brasileira”. Jornal do Brasil, 08/12/1987, Caderno B, p. 8.

[4] BERNARDET, Jean-Claude. “Mar de Rosas”: um filme duvidoso. Última Hora, 16/10/1978. Este texto também foi publicado numa coletânea de artigos do autor intitulada Piranha no Mar de Rosas. São Paulo: Nobel, 1982. (pp. 133-135).

 

[5] RIDENTI, Marcelo. Em Busca do Povo Brasileiro. Artistas da revolução, do CPC à era da TV. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2000.

 

 

[6] XAVIER, Ismail. O Cinema Brasileiro Moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001.

 

[7] GANDRA, José Ruy & PAIVA, Fernando. “Ana Carolina: não era apaixonada pelo cinema, mas virou cineasta”.  Folha de São Paulo, 24 out. 1982, p. 3 a 5.

[8] PEREIRA, Carlos Alberto & HOLLANDA, Heloísa B. de. Patrulhas Ideológicas Marca Reg. Arte e engajamento em debate. São Paulo: Brasiliense, 1980. (pp. 169-179). (P. 172)

[9] Idem.

 

[10] XAVIER, Ismail. Op. cit. (p. 36).

 

 

[11] CHARTIER, Roger. “A História hoje: dúvidas, desafios, propostas”. In Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 7, nº 13, 1994, pp. 97-113 (p. 108).

[12] CHARTIER, Roger. “Diferenças entre os sexos e dominação simbólica (nota crítica)” In Cadernos Pagu (4) 1995: pp. 37-47.

[13] SOIHET, Rachel. “História, Mulheres, Gênero: Contribuições para um debate”,. In AGUIAR, Neuma. Gênero e Ciências Humanas. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997; SCOTT, Joan. “História das Mulheres” In BURKE, Peter (org.) A Escrita da História. Novas Perspectivas. São Paulo: UNESP, 1991.

[14] PERROT, Michelle et alli. “A História das Mulheres. Cultura e poder das mulheres: ensaio de historiografia” In Gênero: Revista do núcleo transdisciplinar de estudos de gênero. Niterói, v. 2, n.1, 2o semestre de 2001.

[15] SOIHET, Rachel. op. cit.

[16] SCOTT, Joan. “Gênero: uma categoria útil para análise histórica”. Recife: SOS Corpo, 1991. Tradução de Christine Rufino Dabat e Maria Betânia Ávila. (p. 14)

[17] FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 2003.

 

[18] Idem. P. 131 (grifo no original).

[19] CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. (p. 94).

[20] BURKE, Peter. “Abertura: a Nova História, seu passado e seu futuro” In BURKE, Peter (org.). A Escrita da História. Novas Perspectivas. São Paulo: Editora UNESP, 1992. (p. 11)

[21] FERRO, Marc. Cinema e História. São Paulo: Paz e Terra, 1992. (1a edição francesa: 1977).

[22] BURKE, Peter. Testemunha Ocular. História e Imagem. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2003. (p. 232).

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