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1. Gostaríamos que o senhor traçasse um panorama das iniciativas
e atividades promovidas pelo Historia a Debate, bem como os motivos e
incentivos que levaram à sua reunião. Gostaríamos,
também, que o senhor apresentasse os planos e estimativas futuras
para o Historia a Debate.
HaD
nasceu em 1993 em torno ao I Congreso Internacional Historia a Debate,
então celebrado em Santiago de Compostela, no mesmo lugar em que
o foram os seguintes. Reunimos na época, entre outros, tudo que
restava das escolas dos Annales e de Past and Present, com a idéia
de fazer um balanço e lançar algumas perspectivas, após
a “grande crise”, sobre questões cruciais de metodologia,
historiografia e teoria da história. Esta temática, ampliamos
nas edições posteriores alcançando relações
da história com a sociedade, ensino da história, História
Imediata, problemas de campo de trabalho para os historiadores, etc. Em
1999 houve um salto qualitativo no nosso movimento acadêmico quando
ele aterrissou na Internet por ocasião dos preparativos do nosso
II Congresso. Foi criada uma web, www.h-debate.com,
a qual recebeu 1.576.739 visitas de colegas, além de duas listas
de correio eletrônico, HaD e HI, que reúnem neste momento
cerca de 3.000 historiadores cadastrados para receber mensagens diárias.
Este é um fenômeno excepcional, portanto, desta nova sociabilidade
acadêmica, cujo resultado demonstra a percepção da
mudança de estratégia de HaD, migrando do eurocentrismo
ao novo paradigma global, promovendo uma “reviravolta latina”
na historiografia mundial. O I Congresso nos ensinou (ver “La historia
que viene” em www.cbarros.com)
o imperativo de pensar a história por nós mesmos, sem mimetismos,
orientando-nos em busca do futuro da historiografia, construindo alternativas
sem que nos afastemos das nossas raízes nacionais, continentais
e intercontinentais: procurando, da Europa, os nossos primeiros aliados
acadêmicos no mundo ibero-americano. Esta estratégia tornou-se
mais visível e autônoma no II Congresso, consolidando-se
no III Congresso, em Julho de 2004, que sem dúvida foi o melhor
de todos os que realizamos, porque situa com mais limpidez num primeiro
plano a reconstrução de um novo consenso (paradigma) historiográfico
internacional. É um processo inacabado de reformulação
historiográfica que, sem fazer tabula rasa do materialismo histórico,
Annales ou do neopositivismo historiográfico, reconhece sem pejo
os seus (nossos) erros, incapacidades e fracassos, ao mesmo tempo em que
busca coletivamente, em permanente debate, respostas às novas perguntas,
ou seja, uma nova forma de escrever a história que responda aos
desafios da historiografia e da história depois da crise das “grandes
escolas” e das subseqüentes “quedas” do Muro de
Berlim e das Torres Gêmeas. Neste sentido, surge como fenômeno
fundamental o Manifesto historiográfico de HaD, levado à
rede no dia 11 de Setembro de 2001, firmado até o momento por 397
historiadores de 35 países, e cuja revisão coletiva virá
com a edição das Atas do III Congresso.
2. O Manifesto de Historia a Debate, ao tratar de uma
"Nova erudição", diz ser a favor "de uma
nova erudição que amplie conceito de fonte histórica
para além da documentação oficial, alcançando
(...) as 'não-fontes', como os silêncios, erros e lacunas,
que o historiador e a historiadora terão que valorizar". No
entanto, uma crítica que se faz ao pós-modernismo é
justamente à suposição de que a atenção
dada às lacunas e silêncios na documentação
levaria a um tamanho grau de subjetividade e imaginação
no trabalho do historiador que colocaria em risco o rigor acadêmico
da pesquisa. Na sua opinião, como é possível ao historiador
utilizar estas "não-fontes" sem recorrer a um extremado
subjetivismo?
Tenho uma proposta para modificar o título do
ponto II, “Nova erudição”, do Manifesto, na
sua próxima revisão, dado que existe uma contradictio in
terminis, sendo necessário ainda adequar melhor este item sobre
as fontes à nossa redefinição da história
no ponto I como “ciência com sujeito” (sujeito num duplo
sentido: atores históricos e historiadores). A subjetividade das
fontes, tanto social como mental, já foi “descoberta”
há décadas pelas “novas histórias” da
história francesa das mentalidades (Annales foi criada em 1929,
e a sua história das mentalidades difundida nos anos 60 e 70),
e pela história social anglo-saxônica (Past and Present foi
criada em 1952, e a sua antropologia histórica das lutas sociais
difundida nos anos 70 e 80). É portanto uma “velha”
descoberta historiográfica isso de que as lacunas, os silêncios
e os imaginários constituem parte fundamental da subjetividade
humana presente em todo tipo de fontes e na ação histórica
dos diversos sujeitos, e não tem nada que ver, ao menos historiograficamente,
com a influência do pós-modernismo. Isso é inexato,
injusto e normalmente não é nada inocente rebatizar como
pós-moderno a tudo aquilo que pareça novo e, sobretudo,
a tudo aquilo que foi novo décadas atrás.
O
pós-modernismo é uma proposta filosófica de origem
européia (Feyerabend, Lyotard, Vatimo) que postula o fracasso irreversível
da modernidade e da Ilustração (não confundir com
a crítica construtiva da Escola de Frankfurt) e o “vale-tudo”
metodológico da fragmentação. Admitida como “giro
lingüístico” nos Estados Unidos, foi divulgada por meio
do mundo acadêmico anglófono como uma clara negação
da história como ciência, inclusive da história como
profissão e como disciplina acadêmica diferenciada, como
quando nos propuseram H. White e os seus seguidores a volta da escritura
da história à escritura em geral, à literatura. A
tardia e surpreendente recepção acadêmica da novidade
pós-moderna em países como o Brasil ou a Venezuela é
o típico processo residual de certas historiografias dependentes
(diga-se respeitosamente, a historiografia espanhola também assim
o é, para o bem e para o mal, há décadas) que recebem
como “o último grito” propostas intelectuais quando
já não o são nos seus lugares de origem. Na Europa
o pós-modernismo não chegou a decolar (exceto na Grã-Bretanha),
e nos Estados Unidos deixou de estar de moda há muitos anos.
Para Historia a Debate o pós-modernismo continua sendo contudo
um significativo interlocutor no debate internacional historiográfico
e teórico, dentro e fora da nossa rede, mas não serve muito
na reconstrução de um novo paradigma válido para
a história, devido à sua incapacidade congênita para
originar alternativas epistemológicas factíveis, que levem
em conta a nossa realidade acadêmica e profissional, e sejam coadjuvantes
na busca coletiva de novas e atualizadas modernidades por parte dos povos,
etnias e nações, menos favorecidos pela globalização.
Assumimos, decerto, a contribuição inicial do pós-modernismo
à crítica dos “grandes relatos”, do dogmatismo
e do sectarismo na historiografia e nas ciências sociais, mas não
estamos dispostos a desprezar a história e as disciplinas afins;
a criança junto com a água do banho pelo ralo, isso não
nos podemos permitir.
De meados dos anos 90, o pós-modernismo, na América Latina
e em outros lugares, está-se convertendo, por outro lado, num complemento
ou “álibi perfeito” de certo neoconservadorismo acadêmico,
tanto historiográfico como ideológico, reagindo ao retorno
que estamos vivendo na Europa, América e globalmente, de novos
e potentes sujeitos sociais. Haveria de convencer aos colegas pós-modernos
bem-intencionados e “críticos” (porque também
existem) de que a reivindicação do discurso na história,
ou a redescoberta dos estudos culturais, não compensam o suicídio
epistemológico que nos é proposto, nem uma nova cisão
entre academia e sociedade, quando necessitamos na realidade do contrário
disso.
De todos os modos, trata-se de um debate do século passado. Com
o Século XXI entramos, felizmente, numa nova etapa histórica
pós-pós-moderna que necessita ser preenchida de conteúdo
intelectual (sem retornar ao Século XIX seja com Ranke ou seja
com a história-ficção) cumprindo a tarefa inadiável
de reconstrução radical da idéia de progresso e de
racionalidade, do conceito de modernidade e de ilustração,
tendo em conta a crítica pós-moderna, entre outras (leia-se
a este respeito o preâmbulo de La historia que viene, 1994, assim
como o ponto XIV do Manifesto historiográfico de HaD, 2001).
3. A interdisciplinaridade é uma realidade nos
estudos históricos recentes, no entanto, há ainda alguma
reticência da parte de alguns historiadores quanto ao diálogo
da história com certas disciplinas, por exemplo, a literatura;
por outro lado, o Manifesto propõe ainda o intercâmbio com
as ciências da natureza, além de disciplinas emergentes que
tratam das novas tecnologias. Esta proposta interdisciplinar com áreas
tão diferentes não implicaria em uma maior fragmentação,
ou mesmo pulverização, dos estudos históricos neste
novo século?
É isso mesmo. Temos sobre este tema uma
prolongada experiência, boa e má. A interdisciplinaridade
promovida com eficácia no Século XX pelos Annales e por
outras correntes historiográficas, produziu muita renovação
mas também foi o começo da desmedida fragmentação
disciplinar que hoje padecemos. Por isso no ponto IV do Manifesto optamos
por uma “nova interdisciplinaridade” direcionada ao interior
da história com o objetivo de comunicar “o vasto arquipélago
em que se converteu a nossa disciplina nas últimas décadas”,
estabelecendo para isso múltiplas “pontes” entre as
diferentes especialidades históricas por meio de uma “história
mista” e outras metodologias do global.
Talvez tenhamos de insistir mais na radical novidade desta parte fundamental
da nossa plataforma historiográfica: sem INTRAdisciplinariedade
não haverá boa INTERdisciplinariedade com as velhas e novas
ciências sociais, com as humanidades, com as “ciências
duras”. Se não reconstruímos a unidade perdida da
nossa disciplina (em parte pelo seu próprio crescimento) a cooperação
com outras disciplinas seguirá nos debilitando e fragmentando mais
e mais, condenando-nos a uma posição subalterna entre as
ciências humanas e sociais, e a uma situação pusilânime
frente aos poderes políticos, mediáticos e editoriais.
4. Aqui no Brasil, pelo menos na nossa experiência
recente de estudantes universitários, ainda é bem maior
o contato dos alunos de graduação com os trabalhos de historiadores
europeus (além dos nacionais), havendo pouco diálogo, excetuando
uma ou outra disciplina mais específica, com a produção
dos nossos vizinhos latino-americanos, por exemplo. Pelo que o senhor
pode perceber na Europa, na Espanha pelo menos, como está o contato
dos historiadores do Velho Continente, incluindo aí as leituras
dos estudantes de graduação, com a produção
oriunda de países subdesenvolvidos?
Historia a Debate conseguiu, na sua primeira década
de trabalho, organizar uma comunidade acadêmica de um novo tipo
baseada no “intercâmbio igual”, no debate e no consenso,
entre milhares de historiadores e professores de história de centenas
de universidades dos dois lados do Atlântico, incluídas algumas
brasileiras. Não nos consideramos “subdesenvolvidos”,
ao contrário, e menos ainda consideramos o Brasil como um país
academicamente “subdesenvolvido” que os historiadores europeus
devam “recolonizar”. Somos contrários aos intercâmbios
acadêmicos desiguais, assimétricos, por uma questão
de eficácia: não apenas por razões de ética
acadêmica, cultural e política. O conhecimento novo, também
no campo da historiografia, surge hoje sobretudo pela via da globalidade,
da multilateralidade e da horizontalidade que são permitidas pelas
novas tecnologias da comunicação. O velho sistema centro-periferia
do Século XX não serve no novo século: os focos de
inovação historiográfica situados nos países
“desenvolvidos”, unilaterais e verticais, estão esgotados
há muito anos. O eurocentrismo está morto e as velhas dependências
acadêmicas também. Ao menos em ambientes academicamente avançados,
o que conta agora é a interdependência global. Periferias
do Século XX podem ser centros de novo tipo (não “coloniais”)
no Século XXI. Assim ocorre com Espanha e América Latina
no tocante ao fórum-tendência de HaD, assim ocorre com o
Brasil no referido aos foros sociais da globalização alternativa
(Porto Alegre); outro exemplo está sendo oferecido por Lula, pelo
seu governo, ao promover uma nova aliança política com outros
governos latinos, americanos e europeus (Espanha).
Por que a historiografia brasileira não tem mais relações
com o resto das historiografias latinas, incluída Espanha? Gostaríamos
a partir de Historia a Debate de debater com vocês para compreender,
e contribuir a resolver este e outros paradoxos da historiografia brasileira,
que reflete talvez melhor que outras historiografias nacionais a encruzilhada
Norte–Sul em que se encontra hoje a universidade, a história
imediata e a globalização. Às vezes perguntamos por
que a academia brasileira participa menos nas nossas atividades digitais
e presenciais que, por exemplo, o México ou a Argentina: salvo
por notórias exceções como o Ciro F. Cardoso da UFF,
José Geraldo Vinci de Morais da USP, Jorge Nóvoa da UFB,
entre outros e outras colegas. No começo pensávamos no problema
da diferença idiomática, mas não parece ser fundamental,
não é? E menos ainda se considerarmos que HaD está
sendo coordenada a partir da Galiza. Vamos compreendendo em parte as razões
de fundo. Como dizes na pergunta, o Brasil não conecta academicamente
com o resto da América Latina, e, temos de acrescentar, tampouco
com Espanha existe uma grande tradição de intercâmbio:
queremos ajudar a resolver esta anormal situação, é
preciso que a historiografia brasileira se incorpore mais à globalização
historiográfica alternativa que está sendo construída
por todos nós.
5. O Manifesto diz na parte dedicada à Sociedade:
"Os efeitos mais notórios das políticas públicas
de desvalorização social da história são a
falta de saídas profissionais, o decréscimo de vocações
e os obstáculos à continuidade geracional. As comunidades
de historiadores devem tomar como seus os problemas trabalhistas dos jovens
que estudam e querem ser historiadores, cooperando na busca de soluções
que passam pela revalorização do ofício de historiador
e de suas condições de trabalho e vida". Aqui no Brasil,
com a expansão das instituições de ensino superior,
são atualmente milhares os jovens que saem todos os anos das faculdades
para ingressar no mercado de trabalho, cuja demanda não corresponde
ao número dos recém-formados. Como tem sido conduzida nos
congressos a questão da necessidade de articular a preocupação
com a formação acadêmica de futuros historiadores
e a cada vez mais difícil entrada desses no mercado de trabalho?
Resolver esse problema através da abertura de novas possibilidades
de atuação profissional do historiador não seria
uma maneira de alargar sua participação social e revalorizar
sua função ético-social?
Fico satisfeito de que a tradução ao português
realizada pelo professor Vinci de Morais do Manifesto tenha servido, e
vá ser publicada pela primeira vez no seu país na revista
amiga Intellectus. Com efeito, preocupa-nos muito como rede, fórum
e movimento historiográfico formado majoritariamente por docentes
universitários que os nossos alunos não possam trabalhar
naquilo para o que foram formados. Concordamos em que haverá que
buscar novas possibilidades de atuação profissional. O problema
é não cair numa dependência excessiva do mercado,
que é o que está gerando precisamente a falta de trabalho
dos nossos recém-formados, seria como botar a raposa para vigiar
as galinhas. É preciso estar claro que o mundo da empresa, cujo
mecenato cultural haveria de ser incentivado, não vai salvar o
futuro da história e das humanidades, mas sim é possível
que seja o contrário. O futuro da pesquisa, do ensino e da divulgação
da história depende antes de mais nada da nossa capacidade coletiva
como acadêmicos para defender a universidade como serviço
público e “templo do saber”. É por isso que
no item sobre Academia Solidária estamos apoiando, ultimamente,
as lutas acadêmicas contra o desaparecimento direta ou indiretamente
da história em Nuevo León (México), La Matanza (Argentina)
e em Espanha (o possível desaparecimento dos cursos de história
da arte e de humanidades). Se queremos que haja mais vagas para historiadores
no ensino médio, nos arquivos, nas bibliotecas, nos museus, na
gestão e no turismo cultural, etc., é preciso lutar a partir
da academia para impedir que o livre-mercado e a economia se transformem
na principal razão de ser da universidade, da pesquisa e do ensino.
O academicismo excessivo, clássico ou pós-moderno, está
prejudicando gravemente a universidade e as perspectivas de futuro, mais
ainda é prejudicada a história e outras ciências humanas
e sociais que necessitam como o ar que respiramos da razão de Estado,
do apoio da sociedade civil que o financia, em última instância,
para viver e renascer.
6. Ainda sobre o ponto manifesto na questão anterior,
o senhor acha que uma possível solução para estas
gerações de futuros historiadores passaria pela regulamentação
do ofício de historiador pelo Estado? O que o senhor acha da idéia
de se criar um Conselho de Historiadores, aos moldes dos conselhos de
medicina, onde o ofício de historiador fosse regulado por regras
elaboradas pelos próprios profissionais da área onde, por
exemplo, fosse estipulado uma quantidade mínima de horas de aula,
debatidas as questões salariais, éticas e etc?
No nosso segundo macrocongresso de 1999 uma colega propôs,
precisamente, a criação em Espanha de um “colégio
oficial de historiadores pesquisadores”. Essa iniciativa não
obteve ressonância, talvez porque não se veja utilidade ou
porque outras associações já cumpram, ou tentem cumprir,
essa função. É o caso dos sindicatos ou das associações
de professores das diferentes áreas universitárias de conhecimento
histórico. Na universidade espanhola, os professores estamos, desde
a transição, majoritariamente enquadrados nos “sindicatos
de classe” (Comisiones Obreras, Unión General de los Trabajadores,
etc.), o que é em princípio útil para reivindicar
e negociar coletivamente questões salariais e trabalhistas junto
com o resto do professorado universitário. Também são
importantes as sociedades ou associações de historiadores
medievalistas, modernistas, contemporaneístas, da educação,
etc., se bem podem estas inclinar-se ao gremialismo, inclusive a certo
“imperialismo” (presente, há tempos, na área
de História Contemporânea) que favoreceria a rivalidade entre
historiadores, num momento muito sensível para a história
e para as humanidades.
Este perigo corporativo que sempre ameaça o associacionismo profissional
pode enfraquecer essa idéia de um colégio de historiadores
que propões, ainda que tudo dependeria da orientação
que lhe fosse dada. Na Bolívia existe, por exemplo, um Colegio
de Historiadores conectado com a Universidade, com o qual HaD possui boas
relações precisamente pelas suas posições
abertas… No Brasil vocês já têm, por outro lado,
a Associação Nacional de História, com uma importante
implantação regional, fruto de quatro décadas de
atividade, a participação de professores das diferentes
áreas e especialidades e uma dupla orientação de
organização de simpósios (nacionais e regionais)
e uma interlocução reivindicativa com o Governo em temas
de história, educação e universidade. Não
é pouco. Talvez o futuro da ANPUH dependa da sua capacidade para
resolver o problema comum das historiografias nacionais na era global:
o desinteresse quanto às relações exteriores, o reduzido
e secundarizado uso da rede de redes. No mesmo estágio está
a American Historical Association, apesar das suas virtudes federativas
e integradoras em direção ao interior dos Estados Unidos.
Na Europa a situação talvez seja pior, ou melhor, conforme
o ponto de vista, pois o associacionismo dos historiadores, e em geral
dos acadêmicos, costuma estar organizado por áreas de especialidades
cronológicas ou temáticas, como eu já disse.
Como se poderá perceber facilmente, estamos contra à idéia
de que seja o Estado o responsável por regular unilateralmente
as regras trabalhistas e profissionais do nosso ofício, e menos
ainda se o vem a fazer em conluio com as “oligarquias” de
raiz corporativa e/ou política que existem em todas as disciplinas
acadêmicas e atividades profissionais. Disciplinas e atividades
precisam para o seu bom funcionamento de contrapesos democráticos,
para dentro e para fora, fluídas relações horizontais
e transversais, o que hoje é possível, além de necessário,
com Internet, nem preciso repetir.
Na origem de HaD pensou-se, decerto, na idéia de criar uma associação
de colegas interessados pela historiografia e por temáticas afins,
mas felizmente não seguimos esta direção. Optamos
rapidamente por um novo tipo de associacionismo acadêmico através
da Internet que permitisse a mais de 6.000 historiadores, pesquisadores,
professores e estudantes de história, estarmos em contato diariamente,
dentro ou fora de cada historiografia nacional, para debater sem hierarquias
institucionais nem (auto) censuras prévias sobre o ofício,
com o fim de favorecer, na universidade e na sociedade, a melhor escritura
da história para o Século XXI.
Associacionismo digital não implica, no nosso caso, a renúncia
a importantes atividades presenciais como são os nossos macrocongressos
em Compostela a cada cinco ou seis anos. No caso das novas sociedades
de historiadores aconselhamos, em conclusão, valer-se preferencialmente
da Internet sempre em combinação com outras formas de intercâmbios
mais convencionais (e mais caros). Se quisermos ir preparando a nossa
disciplina para o futuro que vem, será que não devemos ir
transformando e democratizando as formas de organização
profissional?
7. O Historia a Debate tem devotado, especialmente em
sua última edição, uma especial importância
aos processos de luta e negociação nas esferas institucionais,
entre sociedade civil e Estado. Ou seja, como os grupos se constituem
institucionalmente em Organizações Não-Governamentais,
mobilizados pela política de identidades e pelo multiculturalismo
atuais, produzindo ações públicas e políticas
de afirmação. Reconcilia-se, dessa forma, o cultural, o
político e o econômico. No entanto, como é possível
pensar uma ação institucionalizada, a partir de grupos identitários
organizados (naturalmente, identidades outras que não as de hoje,
mas sim construídas historicamente, não havendo assumidamente
nenhum sentido em falar de consciência negra na escravidão
moderna ou de perseguição aos homossexuais enquanto tais
na prática inquisitorial) para formações históricas
que não conheceram a sociedade civil hegeliana e contemporânea?
Certamente que um dos efeitos benéficos da integração
não “colonial” dos historiadores latino-americanos
na nossa nova historiografia global é a aceitação
crescente, entre os historiadores do chamado “primeiro mundo”,
dos novos movimentos indígenas como uma dimensão fundamental,
histórica e historiográfica, da sociedade civil, global
e emergente, e teve como conseqüência a sua presença
no programa das seções e mesas do nosso III Congresso: “Estado
e sociedade civil na história”, “Retorno da sociedade
civil”, “Povos indígenas, historiografia e atualidade”.
A auto-identificação como “sociedade civil”
dos novos movimentos sociais no México e em outros países
latino-americanos, e do próprio movimento “antiglobalização”,
cuja origem remota nos conduziu ao 1.º de Janeiro de 1994 em Chiapas,
nos atirou no caminho da última evolução desse velho
conceito hegeliano, desenvolvido depois pelo marxismo de maneira irreversível.
A relativa confusão de Hegel entre sociedade civil e sociedade
política (Estado) se aclarou posteriormente com Marx, a partir
de A ideologia alemã; a relação dialética
entre ambas “sociedades” foi afinada por Gramsci nos seus
Cadernos da prisão. O mais importante para nós é,
portanto, a “apropriação” atual étnico-identitária
e global, por parte dos novos movimentos sociais do Século XXI,
deste quase esquecido conceito de filosofia, de história e de ciências
sociais.
Em HaD partimos da base de que, para estar atualizados cientificamente,
é imprescindível praticar uma história e uma historiografia
do imediato, impregnarmo-nos de tudo o que acontece à nossa volta,
assim como evitar apagar da memória historiográfica as revolucionárias
contribuições das ciências humanas e sociais do século
passado, perante a história tradicional, por muito que exijam agora
um severo balanço (auto) crítico. A partir desta dupla ótica
combinaria, somente para levar a debate, uma afirmação e
uma pergunta que você faz na sua pergunta sobre a sociedade civil
hegeliana: 1) Seria na minha opinião errôneo –e injusto–
localizar as ONGs num âmbito institucional, político e estatal,
pois as mais importantes fazem parte da nova sociedade civil, nacional
e internacionalmente, teórica e praticamente. 2) Os “grupos
identitários organizados” na América Latina (inclusive
no Brasil) são obviamente mais que “grupos”, são
verdadeiros e potentes movimentos sociais e parte importante de algumas
sociedades civis nacionais (neste momento: Bolívia e Equador) com
crescente influência sobre a sociedade política. Movimentos
comunitários de prolongada ação histórica
que sobreviveram, nas épocas colonial e contemporânea, como
sociedade civil em resistência e que têm, por conseguinte,
uma prolongada memória histórica que evocar e que recuperar,
com a nossa ajuda, incluindo os vastos Estados e civilizações
destruídos pelas conquistas e colonizações européias.
Porém não queria terminar esta resposta escrita à
pergunta 7 da sua revista Cantareira sem lhes dar os parabéns por
esses “processos de luta e negociação nas esferas
institucionais, entre sociedade civil e Estado” que, segundo dizes,
existem no Brasil de Lula, porque em outros países ibero-americanos
as instituições políticas e o Estado estão
mais é fechados à sociedade civil. E tampouco acreditem
que na Europa as coisas estão maravilhosamente bem, percebam por
exemplo os resultados dos referendos sobre o tratado constitucional europeu
em França e Holanda, onde houve verdadeiras “insurreições
eleitorais” da sociedade civil contra uma sociedade política,
nacional e européia, que subordinava mais do que deveria –na
opinião da maioria dos eleitores– a Europa social e cultural
à Europa dos comerciantes, o que vaticina também, se esta
orientação não mudar, o surgimento de um rosário
de conflitos com as universidades no processo de unificação
da educação superior em toda Europa (Declaração
de Bolonha).
8. O novo paradigma pensado pelo movimento Historia
a Debate é, sobretudo, digital. Segundo artigo recente do senhor,
tal significa dizer que as inovações da tecnologia informacional
permitem introduzir a simultaneidade das evidências escritas, orais
e visuais, contribuindo para uma reconstrução global do
objeto e para a superação das limitações técnicas
e epistemológicas que teriam nos impedido de dar conta da realidade
histórica em sua globalidade. Entretanto, apesar destes novos e
importantes facilitadores, não seria justamente a antiga falta
de uma unidade teórica, subjacente à diversificação
do campo e ao distanciamento entre as especializações, o
principal obstáculo para a construção de um novo
consenso historiográfico comprometido com as bases de uma história
total? De que forma o movimento Historia a Debate pode efetivamente contribuir
para superar as diversas concepções acerca do que seja em
essência a História, cuja função social se
perdeu nas sucessivas fragmentações de nosso objeto e nos
discursos auto-referenciais?
Vocês perceberam muito bem o nosso diagnóstico
sobre a situação da história, a necessidade de um
novo paradigma (consenso disciplinar segundo Kuhn) e a possibilidade que
nos oferecem as novas tecnologias para lograr uma história e uma
historiografia mais globais.
O obstáculo principal para o avanço do ofício da
história no novo século está, sem dúvida,
na galopante fragmentação das áreas e das especialidades,
os temas, os métodos e os enfoques, o que coloca objetivamente
a história acadêmica à margem dos tempos globais que
vivemos, signo evidente de decadência.
O maior desafio historiográfico do Século XXI é substituir
com vantagem a hegemonia conjunta e plural nos passados anos 60 e 70,
na Europa e América Latina, das tendências dos Annales, materialismo
histórico e neopositivismo (história quantitativa), por
um novo consenso / paradigma que responda aos desafios históricos
e historiográficos da mudança de século. Tanto na
sua prática como na sua teoria Historia a Debate é já
uma conseqüência (relativa) deste novo paradigma em construção.
Em doze anos de trabalho conjunto euro-americano conseguimos –novamente
graças à Internet– deixar atrás numa medida
insuficiente mas significativa a fragmentação disciplinar,
voltar a sentir o ofício como algo coletivo, debatendo e obtendo
consensos, refletindo e pesquisando juntos sobre uma temática de
interesse comum de vanguardas historiográficas de ontem, de hoje
e de sempre: metodologia, historiografia, teoria, academia / sociedade,
atualidade.
Queremos aplicar em maior medida este avançado processo de reconstrução
historiográfica sobre o terreno da pesquisa histórica “concreta”,
experimentando com uma “história mista” –também
multimídia– e outros enfoques globais. Pretendemos também
incrementar a participação de âmbitos acadêmicos
não hispânicos, anglófonos e francófonos, mas
não só, importantes em todas as nossas atividades congressuais,
desde o princípio de HaD, embora insuficientemente representativos
e ativos na nossa rede acadêmica digital por questões idiomáticas
e de outro tipo. Contamos com vocês.
9. A utilização da Internet e outras mídias
como forma de acesso inovadora à produção historiográfica,
em toda sua diversidade, e às diferentes fontes de construção
do conhecimento histórico desde o início da educação
escolar seria uma maneira de formar um público novo, ou até
de aproximar um possível público já existente, para
uma produção científico-intelectual que tende a ser
mais voltada para a academia? Até que ponto e de que forma a utilização
de novas mídias pode aproximar a academia da sociedade como um
todo?
O novo paradigma digital das comunicações
está permitindo deixar para trás o academismo no que recaiu
a geração de 68 a partir dos anos 80. Academicismo historiográfico
de raízes tradicionais, ainda que se diga pós-moderno, responsável
do conservadorismo historiográfico de não poucos dos nossos
jovens estudantes e graduados de história. Os efeitos nocivos deste
retorno ao academicismo, que é como dizer do individualismo e da
dissociação do social, se retroalimentam, e por isso haveremos
de superá-los a tempo. De nada vale, pois, o uso individual ou
em pequenos grupos das novas tecnologias da comunicação
“para fora” se não formos capazes de incidir na nossa
disciplina “para dentro” para retirar da minoridade ou da
marginalidade o manejo dos atuais meios. Voltar a conectar com a sociedade
e as instituições está permitindo já a revitalização
de setores importantes da história acadêmica, aqui e ali,
cujo contato com o “exterior” é bilateral, estão
predispostos a aprender, não somente a ensinar, reduzindo assim
a componente elitista que sempre teve a universidade, hoje especialmente
perigosa para umas ciências humanas e sociais que não podem
avançar sem o cordão umbilical com a sociedade.
Dito de outro modo, apesar de ser importante, a conexão digital
não é suficiente, inclusive é completamente insuficiente
para restabelecer relações fluídas do ofício
de historiador com a sociedade “como um todo”, toda vez que
o desigual desenvolvimento da Internet implicar um novo tipo de separação
entre a academia e a sociedade. A Internet nasceu nas universidades que
têm, e sempre terão, melhores condições de
acesso que o resto da sociedade. A falha digital e social agrava-se, como
é sabido, em países da América, África e Ásia,
onde amplos setores da população não possuem ainda
satisfeitas as suas necessidades econômico-sociais e nem os direitos
humanos mais elementares. Por este e por outros motivos, estamos obrigados
a combinar os novos e os velhos modos de comunicação social
a fim de restaurar o vínculo natural entre historiografia, sociedade
e política. Na realidade, o novo paradigma (consenso) que HaD propõe
e pratica quanto à sociabilidade historiográfica reside
na mescla do digital com o convencional (viagens de intercâmbio,
apresentações, congressos a cada cinco ou seis anos), sempre
dentro do que é a nossa dedicação prioritária
a auto-reflexão, a investigação e a discussão
sobre o método, a historiografia e a teoria: dirigimos o nosso
esforço ao interior da disciplina com o objeto de projetar “extramuros”
uma escritura, uma divulgação e ensino da história
mais adequadas nos seus enfoques e compromissos coletivos com as necessidades
presentes.
A inovação (tecnológica) e o compromisso (interior
e exterior) devem seguir juntos se queremos de verdade uma nova historiografia
para uma nova sociedade da informação que incorpore os últimos
sujeitos históricos. É um erro crasso pensar simplesmente
que o digital é o “futuro” e o compromisso da universidade
com a sociedade civil é o “passado”, porque os mais
recentes agentes acadêmicos e sociais estão retornando, na
prática e na teoria, utilizando intensivamente a rede, a velha
idéia contemporânea do compromisso intelectual (nascida em
França em 1898 com o J’accuse de Émile Zola) com novos
modos e conteúdos, baseados na diversidade, na pluralidade e nos
grandes “valores universais de educação e saúde,
justiça e igualdade, paz e democracia” (ponto XVI do nosso
Manifesto historiográfico) que a globalização está,
paradoxalmente, promovendo como nunca na história.
Historia a Debate é, neste sentido, um laboratório de experimentação
que já deu bons resultados conectando criativamente universidade
com sociedade, história com atualidade, preparando a comunidade
internacional de historiadores para a história, o mundo e a universidade
que vêm, demonstrando pelo caminho dos fatos, em suma, que “outra
história é possível”.
10. Devido a grande importância atribuída
pelo Historia a Debate ao papel da Internet para a produção
historiográfica do século XXI, seja como meio de democratização
de reflexões sobre a escrita da História, em contraponto
ao "colonialismo" de centros tradicionais de produção,
seja como forma de romper as amarras impostas pelas exigências do
mercado editorial, instituições políticas e grandes
meios de comunicação, gostaríamos que o senhor citasse
e comentasse exemplos de trabalhos, ou projetos em andamento, que têm
utilizado a Internet dentro dessas características.
Infelizmente não conhecemos outro exemplo como
Historia a Debate que congregue assim historiografia e Internet, que pesquise,
reflita e debata na rede o imediato com o objetivo de construir uma nova
alternativa historiográfica. Faltam esforços homólogos,
o que limita as nossas alianças a aspectos parciais ao mesmo tempo
em que explica que a nossa expansão acadêmica não
tenha ainda tocado no seu teto. Paralelamente à nossa experiência
latina constituíram-se ou reconstituíram-se, no âmbito
anglo-saxão, interessantes páginas web e listas de discussão
de história (o servidor de listas H-Net, por exemplo, se bem não
é ele mais do que uma página de serviços), os tradicionais
congressos mundiais de história (organizados pelo International
Committee of Historical Sciences, não costumam tratar a temática
historiográfica e utilizam Internet de forma secundária),
redes digitais de historiadores politicamente comprometidos (a mais recente
Historians Against the War, embora não lute de maneira explícita
por uma mudança global de paradigmas na nossa disciplina), revistas
dedicadas à teoria histórica e à metodologia (um
exemplo clássico é History and Theory, se bem usa subsidiariamente
a Internet e não possui um programa claro e integrador de alternativa
historiográfica).
A semelhança parcial de cada um destes projetos com HaD, todos
com influência e origem norte-americanos (salvo o CISH-ICHS) e desenvolvidos
também na última década, confirma o caráter
universal e sintético da nossa aposta acadêmica, as possibilidades
inéditas que são oferecidas ao mundo acadêmico latino
e à superioridade da nossa estratégia historiográfica
de síntese de futuro entre (A) o melhor da experiência, em
organização e em conteúdos, das vanguardas historiográficas
do século passado, e (B) as novas tecnologias da comunicação
acadêmica e social. Desconhecemos em outras disciplinas, seja humanidades
seja ciências sociais, um exemplo tão claro e organizado
como o nosso, de paradigma disciplinar misto e global nos âmbitos
(local / nacional / mundial), nos meios (digital / presencial) e nos conteúdos
(histórico / historiográfico, passado / presente, debate
/ consenso, inovação / compromisso).
Alentamos, portanto, os colegas interessados a acompanhar o nosso trabalho,
a seguir conosco, dentro e fora do âmbito acadêmico latino,
dentro e fora da história como disciplina, completando com novas
dimensões as experiências isoladas de sucesso nos campos
da Internet e das ciências humanas, para as quais é preciso
desprender-se definitiva e claramente dos anacrônicos resíduos
da mentalidade “dependente” ou “colonial” imperante
durante décadas nas nossas relações internacionais
acadêmicas. A Internet já está sendo um lugar de encontro
multilateral das melhores experiências internacionais da historiografia
e das ciências sociais. Pode-se dizer que o novo academicamente
se não está na rede é porque não é
realmente novo. Aproveitemos, pois, a possibilidade democratizadora implicada
pela rede de redes para mudar juntos a face da nossa profissão
no mundo através de alianças historiográficas, intra
e inter disciplinares, cimentadas no respeito mútuo, no debate
e no consenso, sabendo que com isso contribuímos a um mundo melhor
para todos.
Como você bem sugere na sua pergunta, a nova sociabilidade digital
torna possível, na medida em que sigamos além da oferta
acadêmica de novos serviços e lugares para publicar, uma
democratização da historiografia e da academia assim como
a recuperação da autonomia dos historiadores relativamente
à influência –fragmentadora e às vezes inclusive
mercenária– dos poderes políticos, dos meios de comunicação
social, das grandes editoras. Haveremos de refletir mais sobre isso e
de experimentar tudo, também a partir do Brasil. Estão todos
convidados, vamos lá, e muito obrigado.
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