REVISTA
CANTAREIRA
http://www.historia.uff.br/cantareira
ISSN 1677–7794
cantareira@historia.uff.br
CANTAREIRA – Revista Eletrônica de História
Volume 3
– Número 3
– Ano 4 –
Jul. 2007
Editor – Izabela Gomes Gonçalves
Universidade Federal Fluminense (UFF)
Instituto de Ciências Humanas e Filosofia (ICHF)
Departamento de História
Campus
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Ficha Catalográfica
Revista Cantareira – Revista Eletrônica de História Volume 3, Número
3, Ano 4, Jul. 2007 Disponível em:
http://www.historia.uff.br/Cantareira 1. História Geral; 2. Historiografia |
Fábio André Hahn[1]
Este artigo procura apresentar ao leitor, pouco familiarizado
com as discussões sobre O Príncipe de Maquiavel, algumas interpretações
históricas, possibilitando a compreensão de uma leitura que aborda os
diferentes posicionamentos interpretativos e insere alguns elementos
significativos do campo da História das Idéias Políticas.
PALAVRAS-CHAVE: MAQUIAVEL, HISTÓRIA DAS IDÉIAS,
HISTORIOGRAFIA
Our objective is to introduce to the
reader, not familiarized with discussions about The Prince of Machiavel, some
historic interpretations that make possible to comprehend a read that get
different interpretive positions and insert some significant elements in the
History of Politics Ideas field.
KEYWORDS: MACHIAVEL, HISTORY OF
IDEAS, HISTORIAN
Analisar as obras históricas e políticas
de Maquiavel, é tarefa bastante difícil principalmente porque, dentre elas,
está um dos textos mais conhecidos de teoria política de todos os tempos, O
Príncipe. Sua leitura não se restringiu apenas ao público leitor acadêmico,
mas, ao contrário, se popularizou entre os leitores comuns, que a leram sem
propósitos práticos ou teóricos, sendo em geral, levados à obra pela atração
que ela exerce. O Príncipe conta, certamente, com uma das mais complexas
tradições interpretativas, que, desde o seu surgimento, analisou o trabalho de
Maquiavel sob os mais diversos e polêmicos ângulos.
Maquiavel é um autor que assusta, não
pelos termos as vezes pejorativos que lhe são atribuídos popularmente, mas pela
fortuna crítica de sua obra, que é colossal. Compreender sua concepção política
requer um esforço descomunal, devido as diversas formas em que a obra foi vista
e interpretada. Frente a esta dificuldade, este artigo propõe apresentar, além
das possibilidades interpretativas apresentadas pelo campo da História das
Idéias Políticas, não apenas uma, mas algumas interpretações que se edificam
com base no relato histórico e se aplicam, especificamente, à obra em estudo.
Nesse sentido, partimos do princípio de
que o autor florentino foi importante divisor de águas na História da Filosofia
Política e da História das Idéias. No entanto, não se pretende aqui apresentar
o texto de Maquiavel, no contexto historiográfico de constante debate entre os
posicionamentos da obra como uma expressão de um rompimento brusco com a
tradição de pensamento político anterior ou, ao contrário, mostrar uma idéia de
continuidade entre a tradição do pensamento político medieval com a tradição do
Renascimento.[2]
Homem do século
XVI, Maquiavel é exemplo de autor que pode ser avaliado para além de seu tempo.
Isto porque seus textos surpreendem pela atualidade que apresentam. Seu
pensamento político continuou exercendo influência considerável ao longo dos
séculos do Ancien Régime. Lido e criticado por Bossuet[3],
mas não citado, foi também admirado por Mazarin[4]
e Richelieu[5],
chegando seus preceitos políticos a serem apropriados por Catarina de Médici[6]
já no século XVI. Maquiavel eternizou-se entre os maiores pensadores políticos,
chegando mesmo a ser considerado, por algumas vertentes interpretativas de suas
obras, como o clássico da filosofia política. Maquiavel, contudo, soube
descrever bem o que muitos já haviam percebido. Poucos se dedicaram a escrever
até o século XVI, sobre o Estado e a política como obra de arte exclusiva do
príncipe. Rompendo com as concepções de um Estado ideal e ilusório,[7]
ele tentou compreender a política como expressão da “verdade efetiva das
coisas”.
Algumas teorias políticas resistem ao tempo tornando-se, inclusive, atuais em determinadas sociedades. É o que demonstra Isaiah Berlin, ao afirmar que as opiniões e as interpretações das teorias de Maquiavel são diversas e divergentes. Berlin compilou uma síntese das interpretações mais conhecidas sobre o autor, e que surgiram desde o século XVI, chegando a cerca de 25 posições totalmente diferentes entre si.[8] Com a crescente expansão da bibliografia, passou-se a conhecer a enormidade de interpretações divergentes relativas ao autor de O Príncipe. Esta realidade não pode ser ignorada, já que ela possibilita o entendimento das obras de Maquiavel. O fato, no entanto, não deve inibir nenhuma pesquisa voltada à interpretação de textos de tão significativo valor. Pelo contrário, a existência deste volume colossal de análises dos textos de Maquiavel deve servir como estímulo para a busca de novas perspectivas. Entretanto, será necessário levar em consideração também o ceticismo de Raymond Aron, que nos alerta para o fato de que centenas de pessoas já escreveram sobre Maquiavel, o que resulta na possibilidade de não propor nem uma linha interpretativa nova, mas apresentar uma leitura submetida a uma automática classificação de interpretação, da qual já foi feita antes dele. Como destaca Aron, “Pois a interpretação que irá propor, qualquer que seja ela, não lhe pertence pessoalmente.” E continua, “o que quer que diga ou faça pertence a uma das famílias de maquiavelianos, de maquiavélicos ou de leitores de Maquiavel, chegando tarde demais para fundar uma nova família”.[9] Isto posto, somos levados a acreditar que as interpretações são criadas a partir de outras já existentes, o que as diferem são as manifestações da voz de seu produtor ao lado de um coro de outras vozes que já tratam do mesmo tema.
Há que se concordar com Raymond Aron,
especialmente quando ele afirma que não se pode deixar de sentir certa angústia
ao se escrever o nome de Maquiavel numa página de trabalho de pesquisa. Do
mesmo modo, Aron parece ter razão quando destaca que muitos já se dedicaram a
analisar, com grande esforço e perspicácia, as obras de Maquiavel. Diante
disto, deixa de ser constrangedor a qualquer estudioso renunciar à tentação de
querer oferecer uma “releitura definitiva” de Maquiavel.
As obras sobre Maquiavel se dividem entre
as que o reconhecem como grande pensador político e aquelas que condenam suas
idéias. A diferença estabelecida fica evidente quando se faz uma consulta às
diversas abordagens sobre seu pensamento político. Dentre várias
interpretações, apenas algumas foram selecionadas e abordadas nesta pesquisa,
de modo especial, as que se destacaram no cenário historiográfico em razão da
importância de seus intérpretes, de seus contextos e das grandes guinadas
interpretativas que provocaram.
A primeira referência à obra O
Príncipe, que se tornou pública foi feita pelo próprio autor. Isto ocorreu
na carta que ele escreveu ao amigo Francesco Vettori, em 10 de dezembro de
1513.[10]
Na época, Vettori era embaixador da República de Florença, em Roma, junto ao
Papa Leão X. Em sua carta, Maquiavel expressou a vontade de voltar a se tornar
“útil” aos Médici, mesmo que isto, inicialmente, não lhe rendesse trabalho de
grande importância. Sua esperança era tanta que ele próprio queria levar a sua
obra para Lorenzo de Médici.
Vettori apoiou, a princípio, o desejo de
Maquiavel, mas, após ter lido toda a sua obra, como mostra Quentin Skinner,
deu-lhe resposta silenciosa, reveladora de sua desaprovação. A partir deste
momento, o amigo não mais voltou a tocar na questão, desviando o assunto em
suas cartas, passando a fazer relatos de casos amorosos. Depois de algum tempo,
veio o desânimo e, com ele, o abandono das tentativas de recuperar um cargo no
governo de Florença. Ele declarou que haviam esquecido os serviços que tinha
prestado ao governo, sendo obrigado a continuar “na vida sórdida”, ou, como ele
mesmo definiu, “apodrecer no ócio”.[11]
A obra de Maquiavel recebeu uma leitura
diferente por parte da Igreja, que reconheceu sua leitura, não como de um
grande pensador político mas como alvo disseminador de idéias pagãs. O fato
aconteceu durante o Concílio de Trento, quando O Príncipe foi incluído
no Index Librorum Prohibitorum,[12]
organizado pela Igreja Católica para extinguir os “livros maus”. O Index
dividia os livros em três grupos diferentes. Maquiavel foi incluído no segundo
grupo, o dos “autores cujos livros e escritos são proibidos”. A interpretação
feita pela Igreja salientava a negatividade dos escritos, chamando a atenção
para termos considerados “perigosos”, que poderiam causar mau influência. O que
fez a obra ser incluída neste rol foi o fato da Igreja considerar que os
conselhos ético-moralistas, estavam cheios de ferocidade. O Index
contribuiu para o surgimento de termos como maquiavelismo e maquiavélico[13],
de conotação amplamente negativa.
A leitura feita por Frederico II, da
Prússia, igualmente se destacou no campo das interpretações mais influentes de O
Príncipe. Crítico das ambições da Igreja Católica e discípulo de Voltaire,
Frederico II escreveu o Anti-Maquiavel, destinando sua crítica
diretamente aos conselhos dados por Maquiavel na obra O Príncipe. A
crítica do príncipe prussiano, todavia, não se mostrou efetiva na prática
política, quando sucedeu o seu pai no poder. O rei prussiano também não
alcançou os objetivos desejados na organização e na condução de seus exércitos.
O fracasso de Frederico II talvez possa ser justificado pelo fato dele ter
começado a escrever O Anti-Maquiavel quando ainda não era rei, cuja
ascensão posterior pode ter mudado suas atitudes políticas na prática do poder.
A obra de Frederico II se caracteriza
pela apresentação de críticas aos conselhos dados por Maquiavel. Ela sugere
conselhos exatamente contrários, alegando que nem todo príncipe é tão mau como
Maquiavel mostrava ser. Trata-se de uma crítica de cunho moral, condenando a idéia
de que o príncipe tem de ser um celerado no exercício do poder segundo sua
concepção acerca de Maquiavel. O rei prussiano refutou passo a passo o livro de
Maquiavel. Entre outras bravatas, ele argumentou: “Ouso tomar a defesa da
humanidade contra um monstro que pretende destruí-la; e aventurei as minhas
reflexões sobre esta obra, a seguir cada capítulo, a fim de que o antídoto logo
se encontrasse junto ao veneno”.[14]
As leituras interpretativas das obras de
Maquiavel que promoveram grandes guinadas são as atribuídas aos filósofos
Spinoza e Rousseau. Ambos tentaram reabilitar Maquiavel, eliminando a
negatividade que foi difundida por algumas correntes do pensamento político.
Spinoza, bem antes de Rousseau, demonstrou que Maquiavel tentava dar lições ao
povo e não aos príncipes. Segundo Spinoza,
Talvez Maquiavel tenha querido, também, mostrar
quanto a população se deve defender de entregar o seu bem-estar a um único
homem que, se não é fútil a ponto de se julgar capaz de agradar a todos, deverá
constantemente recear qualquer conspiração e, por isso, vê-se obrigado a
preocupar-se sobretudo consigo próprio e, assim, a enganar a população em vez
de a salvaguardar. E estou tanto mais disposto a julgar assim acerca deste
habilíssimo autor, quanto mais se concorda em considerá-lo um partidário
constante da liberdade e, quanto sobre a maneira necessária de a conservar, ele
deu opiniões muito salutares. [15]
Spinoza e Rousseau adotaram formas de
valorizar as idéias políticas de Maquiavel, demonstrando a compreensão de que
ele queria dizer o contrário do que realmente parecia dizer. Isto, pelo menos
Spinoza e Rousseau deixam claro que O
Príncipe não foi escrito para um soberano na perspectiva de um manual de
prática política. Ele, talvez, tenha simplificado o diálogo com o poder, mas
teve como referência, o povo, a quem alertava para a necessidade de se proteger
de quem estava no poder. Assim sendo, Maquiavel teria tornado públicas as
artimanhas do jogo político.
Arnaldo Cortina chama a atenção para o
fato de que existe diferença nas obras de Frederico II e Rousseau. Para ele, “a
diferença é decorrente da posição em que se encontram os dois sujeitos, isto é,
o lugar social que ocupam leva-os a procedimentos de leituras distintos”.[18]
Frederico II ocupava a posição de rei, querendo, a todo custo, invalidar a
imagem que Maquiavel construiu dos príncipes. Talvez tenha sido até por excesso
de moralismo, mas mais seguramente isto ocorreu porque se sentia atacado e, até
mesmo, desprotegido, diante da idéia que se criou em torno dos príncipes,
correndo o risco de ver seu próprio comportamento tachado de devasso. Rousseau,
pelo contrário, queria manter a imagem do príncipe ligado à crueldade, para
mostrar ao povo as tramas que envolvem a vida política. Ele acreditava que esta
era a intenção de Maquiavel ao produzir O Príncipe.
Uma outra interpretação oriunda, do campo
do exercício do poder político, destaca ainda a visão que Napoleão Bonaparte
desenvolveu sobre Maquiavel. Ele fez quatro leituras de O Príncipe. Estas
análises foram empreendidas em quatro diferentes momentos da sua vida. A cada
leitura que fazia Napoleão destacava algumas anotações ou mesmo, notas de
referência. Ele utilizou a obra de Maquiavel como manual, meio pela qual
conferia sua regularidade intencional na mesma proporção à pregada por
Maquiavel, como se fosse um diálogo entre dois estadistas na busca por ações
políticas corretas. Napoleão, certamente, mantinha a obra de Maquiavel como
manual de conselhos. Isto fica bem evidente numa anotação feita por ele
relativa à questão da dissimulação pregada por Maquiavel para poder governar
melhor. Na nota número 160, Napoleão escreveu o seguinte, em latim: Qui
nescit dissimulare, nescit regnare - quem não sabe dissimular, não sabe
reinar.[19]
No campo do poder também podemos destacar
Benito Mussolini como um outro leitor de Maquiavel. A leitura pode ser ligada à
idéia do fascismo, que imperou na Itália nas primeiras décadas do século XX.
Mussolini acreditava ver na obra de Maquiavel um manual para o homem de
governo. Ele buscou nos textos do autor justificativas para o regime político
que implantou em seu país. Suas referências podem ser percebidas nos discursos
nos quais tenta estabelecer relações entre a situação contemporânea do povo
italiano com as idéias de Maquiavel. Isto acontece, sobretudo, no momento em
que a Itália entrava na Segunda Guerra Mundial. A referência a Maquiavel
aparece no texto “Prelúdio al Machiavelli”, publicado na revista Gerachia.
Nesta publicação, Mussolini dizia que a obra de Maquiavel deveria ser vista
como um manual no qual todo governante deveria se apoiar. Para Mussolini,
quando Maquiavel se referia ao príncipe, ele estava se referindo ao Estado,
visto como um pai que age energicamente para educar o filho.[20]
A última leitura interpretativa de
Maquiavel, abordada nesta série, é a de Antonio Gramsci. Em sua perspectiva,
Maquiavel pretendeu organizar o povo no sentido de uma “vontade coletiva”, não
falando de coisas inimagináveis, mas da realidade plena. Para Gramsci, o
príncipe imaginado por Maquiavel era um partido político que representaria a
“vontade coletiva”, revelando sua crítica ao fascismo, e determinando que o
príncipe não podia ser um sujeito individual. Para ele, tratava-se de um
príncipe-partido que surge com o intuito de restaurar a Itália.
A obra de Maquiavel foi vista por Gramsci
como um manifesto e, para ser melhor compreendida, seria preciso imaginar e
entender Maquiavel em seu momento histórico conturbado. Para ele, é necessário
conceber o príncipe como um partido político capaz de pôr ordem na casa. Como
marxista, Gramsci leu a obra de Maquiavel sob esta perspectiva, acreditando que
o príncipe-partido teve a intenção de conscientizar o povo para poder promover
a revolução na busca de um Estado socialista.
Evidentemente, há muitas outras leituras
influentes das obras de Maquiavel.[21]
Apenas algumas das mais significativas e expressivas da tradição interpretativa
maquiaveliana foram elencadas até este momento.[22]
Neste sentido, o conhecimento do passado ocupa um papel importante nos textos de Maquiavel, o que passa a ser melhor entendido quando lembramos que os clássicos que estudamos elegiam os seus clássicos como fonte de lição da história. Como Maquiavel expôs bem quando escreveu sua já referida carta a seu colega Francesco Vettori[23], narrando episódios de sua vida, no período em que estava enclausurado no seu sítio, perto de San Casciano. Maquiavel é muito claro quando mostra que sempre podemos aprender com o passado, porque ele nos dá uma idéia mais próxima de como os homens concebiam o seu próprio tempo. Como aponta Cláudio Vouga, “não nos sentimos, todos, cada um de nós, às vezes, o Príncipe recebendo conselhos aplicáveis imediatamente?”.[24] É exatamente este o elemento que nos permite identificar a O Príncipe com os livros de aconselhamento político dos reis.
Desta forma, é preciso darmos a devida importância à questão das obras clássicas. Em relação a elas é possível dizermos que a sua leitura torna-se primordial, fato demonstrado por Cláudio Vouga no texto A leitura dos clássicos, no qual salienta a importância de se ler os clássicos, porque eles nos fazem refletir sobre o nosso presente e o nosso futuro. Como enfatizam Sonia Lacerda e Tereza Cristina Kirschner mostrando que os clássicos ganham importância a partir do momento que os percebemos como autores que abordam dois focos: um olhar sobre a realidade presente e, o outro, sobre a História. Segundo a opinião das autoras referidas, “o que confere a determinados textos o status de clássicos é precisamente a dinâmica da tradição, as repetidas renovações do seu significado, por revisão das precedentes interpretações”.[25]
O contato com o objeto de análise, por parte do historiador, obriga-o a ter uma série de habilidades para explorar características e fatos não percebidos em outras abordagens. Para isto, requer-se, como observa Sirinelli, um historiador “papívoro”, que demonstre amplos conhecimentos na exploração dos textos. A questão básica, todavia, permanece a mesma: por que um texto é considerado clássico? Lacerda e Kirschner, afirmam que “um texto é clássico porque sua composição complexa, multiforme e não-convencional resiste a leituras unívocas e oferece inesgotáveis possibilidades de interpretação”.[26]
Nesta perspectiva, é importante mostrar
que uma obra considerada clássica possibilita criar novas perspectivas
interpretativas, como é exemplar o caso dos textos de Maquiavel. Entretanto, a
idéia de “clássico” leva a uma visão da atualidade do autor, de sua
trans-historicidade, o que não quer dizer que esta seja a melhor forma de se
estudar a obra, este enfoque pode ser evitado. Para isso, parece ser
interessante os instrumentos de análise da história das idéias políticas. Por
meio desses pressupostos teórico-metodológicos é possível recuperar pontos mais
específicos do pensamento histórico e político de Maquiavel, na tentativa de
apreender o modo pelo qual suas idéias foram formadas. Não com a intenção de
reconstruir o contexto histórico das obras de Maquiavel tal qual existiu no
século XVI. Esta é uma tarefa impossível. Mas é possível se aproximar desta
realidade, se cercando das teorias interpretativas que melhor se adequam à
análise desse objeto.
É sabido que Maquiavel foi influenciado
pela realidade política de seu tempo. Interessante se torna, por isto, tal como
Quentin Skinner afirma no livro Maquiavel: pensamento político, traçar e
analisar as questões que permeiam o contexto histórico no qual as obras do
autor foram concebidas. Skinner destaca que:
(...) precisamos reconstruir o contexto no qual as obras foram
originalmente compostas, o contexto intelectual da filosofia clássica e
renascentista, bem como o contexto político da vida da cidade-estado italiana
no início do século XVI. Tentando restituir Maquiavel ao mundo em que suas
idéias foram inicialmente formadas, podemos, então, começar a apreciar a
extraordinária originalidade do seu ataque às concepções morais correntes em
sua época.[27]
Assim como há aqueles autores que se
apóiam na opção teórico-metodológica desenvolvida por Quentin Skinner, há
outros que lhe impõem fortes críticas. Percebemos isso no texto de David
Harlan, no qual apresenta as críticas ao historiador inglês,[28]
ao afirmar que a hermenêutica por ele adotada, tem o objetivo de recuperar a
intencionalidade do autor, chocando-se contra as perspectivas
pós-estruturalistas como as expressas por Michel Foucault, Jacques Derrida e
Paul de Man, entre outros que se atêm a um paradigma da linguagem que segundo
Harlan, “é, portanto, não a fala, mas a escrita, com o seu autor, ausente, sua
audiência desconhecida, e seu texto sem regras vomitando suas múltiplas
significações, conotações e implicações”.[29]
Isto é visto por alguns como “a morte do autor”, na expressão de Roland
Barthes. Skinner tenta fazer o contrário, mostrando que a fala pensada como
linguagem, ao invés da escrita, é desenvolvida por meio da teoria dos atos de
fala. A perspectiva de Skinner é mostrar que a sua teoria dos atos de fala é um
modelo para todo uso da linguagem sendo manipulado para produzir certas ações,
além de ser intersubjetivo e não intertextual, ocorrendo em situações concretas
do qual produz um significado. O que quer dizer que os atos de fala são ações
humanas constituídas de intenções e que ocorrem em momentos específicos.
Nesta vertente, Lauro Escorel observa
que, de modo nenhum, é possível dissociar os escritos de Maquiavel do seu
momento histórico, com os problemas vividos pelas cidades-estado italianas do
século XVI.[30] O mesmo
aconteceu com os costumes políticos e os problemas que as cidades italianas
estavam enfrentando quando buscavam, na Antigüidade, modelos para a reflexão
sobre o momento presente.
No início do século XX Harold Laski, um
dos precursores da renovação da História das Idéias Políticas, afirma a
importância da interdisciplinaridade, do auxílio de várias outras disciplinas
para um maior sucesso e alcance de abordagens historiográficas. Ele acreditava
que “todo grande pensador é, em parte, a autobiografia da sua época. Sua
influência origina-se do fato dele ter expressado de maneira peculiarmente
magistral, uma porção significativa de suas esperanças e temores”.[31]
D. W. Brogan e E. Barker concordam com a
idéia de Laski. Percebemos neles que o estudo do pensamento clássico está
ancorado em problemas do presente da produção das obras e que permite,
entretanto, responder questões, também de outras épocas que se repetem de forma
semelhante ao que eram em outros momentos. Desta forma, fica claro que é no
passado que se deve buscar razões para se entender o pensamento dos grandes
autores. Todo o grande pensador tem bases de formação e de apoio calcadas em
experiências de seus antecessores. Não se pode pensar que um grande intelectual
tenha surgido do nada, ou que seja atingido por um lampejo iluminado dos céus
que lhe permita compreender o seu presente. Estamos certos de que todo grande
pensador dialoga com seus predecessores por meio dos legados por eles deixados.
A História das Idéias Políticas tenta
mostrar as diferentes formas de se abordar textos de natureza política. Ela
procura mostrar que o “contexto é sempre uma construção e que cada caso demarca
o escopo e o nível da análise de acordo com os objetivos da investigação”.[32]
Ao falarmos em contexto é preciso
atentarmos para o fato de que são diversos os pontos de vista em relação a esta
questão. Há, inclusive, definições diferentes no que diz respeito às
referências textuais. A importância dos diferentes contextos da vida de um
autor se apresenta como referência teórica central. Por isto, é preciso
acompanharmos a trajetória de Maquiavel, atentando para as nuances existentes
entre os seus diferentes textos, como, por exemplo, o conceito de guerra que
aparece retratado de formas diferentes em suas obras. Há diferenças entre as
obras O Príncipe e a História de Florença, e divergências entre O
Príncipe e os Discorsi. Richard Tuck em seu texto intitulado História
do pensamento político, demonstra muito bem que alguns textos podem ser
reconciliados, mas que outros devem ser mantidos separados, sendo necessário
buscar a compreensão do autor no diálogo que ele estabelece com a tradição, a
anterior, e a de seu próprio tempo.
Acerca deste aspecto, Skinner argumenta: “considero
igualmente essencial levar em conta o contexto intelectual em que foram
concebidos os principais textos – o contexto das obras anteriores, dos axiomas
herdados a propósito da sociedade efêmera da mesma época ao pensamento social e
político”.[33]
Tendo clara a importância do contexto, é preciso partir para
outro ponto importante, qual seja, o entendimento do texto em si, que o
historiador tem a necessidade de assimilar para compreender mais claramente a
natureza do pensamento político. Para alcançar isto, o historiador tem que
compreender a idéia do discurso e entender algumas características individuais,
que se constituem em fator de grande importância na análise das obras, neste
caso, as de Maquiavel. Sob esta perspectiva, são observadas questões típicas da
abordagem e do uso de alguns conceitos característicos de sua forma de produção
textual. É o caso dos conceitos de virtù[34],
oportunidade e necessidade. As características peculiares a um autor podem
estar vinculadas aos chamados “cacoetes”, “chavões”, “princípios morais” e
outros pontos essenciais.[35]
Ao atentarmos para os pressupostos teóricos propugnados por autores que
refletiram sobre os métodos de abordagem dos textos políticos, procuramos dotar
nossas reflexões dessas salvaguardas tão necessárias à pesquisa histórica.
Nessa mesma perspectiva, Ciro Cardoso e Ronaldo Vainfas
advertem que o documento deve ser compreendido como portador de um discurso,
isso quando referido a uma análise de textos voltados à pesquisa histórica. No
documento, o cuidado com o conteúdo histórico a ser examinado é muito
importante, em específico, quando se trata de uma pesquisa voltada para o
pensamento político, assim como outras áreas próximas. No entanto, o cuidado
maior quando se aborda um conteúdo histórico está voltado à forma do texto,
sendo que isto inclui questões como “tempos verbais”, “vocabulário”, “enunciados”,
além de outras características atribuídas a análise das formas do texto.[36]
Antoine Prost demonstra que, desde o surgimento das teses
capitais de Jean Dubois e Lucien Febvre, começou-se a questionar “em que medida
as políticas são determinadas de antemão pelo vocabulário que permite
formulá-las”.[37]
Forte movimento de historiadores deixou-se levar em direção à lingüística e
vice-versa. A partir de então, passou-se a enfatizar que a maneira de se falar
nunca é inocente, uma vez que revela toda uma estrutura mental, dominando e
organizando a realidade.[38]
René Rémond observa que “a história de fato não vive fora do tempo em que é
escrita, ainda mais quando se trata da história política: suas variações são
resultado tanto das mudanças que afetam o político como das que dizem respeito
ao olhar que o historiador dirige ao político”.[39]
Entretanto, é necessário tomarmos alguns cuidados no estudo
dos aspectos lingüísticos dos textos. A feroz crítica lançada por Falcon aos
internalistas demonstra isso. Na opinião de Falcon o texto analisado pelo
texto, produto de análise dos “internalistas”, não traz grandes contribuições
para os historiadores.[40]
O texto precisa do “auxílio” do contexto como forma de circuito no qual a falta
de um deles desestrutura a análise. Francisco Falcon apresentou algumas
críticas aos chamados internalistas, os analistas do texto apenas em si mesmo,
sem a perspectiva da realidade social que lhes deu origem, mostrando que
escrever a história se torna muito mais complicado quando não se explora os
elementos do mundo histórico do autor.[41]
A tentativa de recuperar traços
relevantes da obra de um grande pensador político como Maquiavel é sempre uma
meta de trabalho difícil. Para tanto, nem sempre é possível ou aconselhável
percorrer o caminho dos historiadores clássicos, assim como não é possível
aceitar sem uma certa descrença o argumento de que tudo começou com
Maquiavel, tal como o fez Luciano Gruppi. Ora, Maquiavel é realmente o
fundador da moderna teoria política. Entretanto, e contrariando este enfoque
predominante nas análises das idéias políticas do autor em questão, é possível
sempre enfocar um ângulo diferente.
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[1] Doutorando em
História pela UFF/Unicentro e Professor de História Moderna na UNIMEO.
[2] O debate sobre o
pensamento político do Renascimento é intenso. Os confrontos são variados, mas
atualmente se atem principalmente nas discussões entre: continuidade e da
ruptura radical entre a Idade Média e o Renascimento. Os autores que apóiam a
ruptura radical, caracterizam-se principalmente pelo conceito e humanismo
cívico. São referências nesta discussão: Hans
Baron, Eugenio Garin e Newton Bignotto. Estes autores não vêem em seus estudos
sobre o humanismo cívico nenhuma continuidade dos temas medievais no pensamento
do humanismo cívico Renascentista. Contrariando esta posição, os autores
ligados a uma perspectiva de continuidade como Paul Kristeller, Seigel e
Quentin Skinner, enfatizam a idéia de uma continuidade entre o pensamento
político renascentista e a tradição medieval, sem desprezar a Idade Média ou
sub-valorizar o nexo entre Renascimento e a tradição medieval. Paul Kristeller
[3] Ao que se sabe Jacques Bossuet teria lido O Príncipe de Maquiavel, no entanto, nunca foi encontrado uma citação em suas obras que fazia referência direta a obra de Maquiavel. Alguns historiadores alegam terem encontrado em seus rascunhos e anotações pessoais, referências a Maquiavel, como também mostrou Marcos Antonio Lopes em O político na modernidade. Outro bom texto referente a Bossuet como sugestão de leitura é a dissertação de mestrado defendida na UFF em 2003, por Maria Isabel de Oliveira Morais.
[4] O Cardeal
Mazarin pode ser considerado um leitor de Maquiavel. Sucedeu o Cardeal de
Richelieu em 1642, assumindo o posto de primeiro ministro da França
Absolutista. Ao que parece a sua obra foi divulgada em 1684 por um editor de
Colônia, sendo depois traduzida, atingindo um grande número de leitores. A
construção da imagem do príncipe destacada pelo autor
[5]
Richelieu antecedeu Jules Mazarin, ocupando a posição de primeiro-ministro na
França. Ingressou ainda jovem na vida religiosa, tornando-se bispo, por
intermédio de Luis XIII ao papa, Richelieu foi promovido a condição de Cardeal
e depois a uma posição no conselho real em 1624. É flagrante
[6] Catarina de Médici, filha de Lorenzo de Médici. Ao que parece ela teria lido a obra O Príncipe de Maquiavel atentamente, tanto que suas práticas políticas parecem revelar toda a arte política maquiaveliana, principalmente por referência a tão comentada noite de São Bartolomeu.
[7] Maquiavel segue uma perspectiva de estudo das obras de autores romanos, que procuram descrever, ou mesmo propor modelos políticos compatíveis com a realidade em que viviam. Contrariando, dessa forma, algumas correntes bastante fortes no século XVI, que são o neo-platonismo e o aristotelismo, que procuram genericamente falando, propor modelos ideais, que na prática para Maquiavel não serviriam para nada, porque não contemplariam os problemas que as sociedades de sua época viviam. Para compreender melhor a influência que essas correntes de pensamento tiveram no século XVI e como estão afastadas da perspectiva maquiaveliana, dois importantes capítulos “A tradição aristotélica” e “O platonismo renascentista” na obra Tradição clássica e pensamento do Renascimento de Paul Kristeller são referência para esta discussão.
[8] Isaiah Berlin, “La originalidad de Maquiavelo”. In: Contra la
corriente: Ensayos sobre historia de las ideas, Espanha, Fondo de cultura
economica, 1986, p. 85.
[9] Raymond Aron, “Maquiavel e Marx”. In: MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Tradução de Maria Júlia Goldwasser, São Paulo, Martins Fontes, 1998, pp. 131-2.
[10] A
carta que Maquiavel escreveu em 10 de dezembro de 1513 para seu amigo Francesco
Vettori, depois de algum tempo sem se comunicarem, revela a grande amizade e
cumplicidade que tinham. Tanto que, esta é apenas uma de uma série de cartas
escritas por Maquiavel à Vettori, além das que recebeu. A obra Epistolário,
que é um conjunto significativo de cartas reunidas, tanto daquelas que enviou,
como as que recebeu. Estas cartas em forma de livro só foram compiladas e
publicadas pela primeira vez em meados do século XVIII e, que hoje é material
indispensável à compreensão das obras de Maquiavel. Ver mais
[11] Quentin Skinner, Maquiavel: pensamento político, São Paulo, Brasiliense, 1988, pp. 78-79.
[12] O Index. Alguns historiadores acreditam que a obra de Maquiavel, por ter sido incluída no índice dos livros proibidos, teria sido reconhecida em maior grau, assim como as obras de Erasmo de Rotterdam. Estas obras, depois de incluídas no Index, teriam criado um certo fascínio misterioso sobre as pessoas, isso pode ser considerado uma das causas para a rápida popularidade que a obra teria conseguido na época.
[13] O termo maquiavélico é analisado por vários autores. Lauro Escorel alertou para o fato de que há dois significados possíveis para a expressão. Tanto pode ser denominada vulgar, quando relacionada diretamente a Maquiavel, como também pode fazer alusões a estratégias políticas. A expressão maquiavélico recebeu o acréscimo de definições como “astuto” e “ardiloso”, denotando a presença de má-fé ou, então, pelo menos, de as pessoas serem desprovidas de boa fé. No âmbito mais popular, entretanto, passou a ser considerado como “diabólico”. Ver: ESCOREL, L. Introdução ao pensamento de Maquiavel. Brasília: Editora UnB, 1979; BATH, S. Maquiavelismo: a prática política segundo Nicolau Maquiavel. São Paulo: Ática, 1992. p. 07; MEGALE, J. O Príncipe de Maquiavel: roteiro de leitura. São Paulo: Ática, 1993; HEBECHE, L. A Guerra de Maquiavel. Ijuí:Unijuí Editora, 1998.
[14] Frederico da Prússia, O
Anti-Maquiavel. (Essai de Critique sur Maquiavel). Tradução de Carlos
Eduardo de Soveral, 2 ed., Lisboa, Guimarães Editores, 2000, p. 07. E Frederico
da Prússia continua mostrando, que seria muito importante que a obra de
Maquiavel fosse extinta da história, pois como ele mesmo diz, “O livro de
Maquiavel não infectaria mais as escolas de política, aprender-se-ia a
desprezar a contradição na qual sempre se encontra consigo mesmo, e ver-se-ia
que a verdadeira política dos reis, fundada unicamente sobre a justiça e a
bondade, é bem diferente do sistema desconexo, pleno de horrores e traições,
que Maquiavel teve a impudência de apresentar ao público” (p. 10).
[15] B. Spinoza, Tratado
Político, Tradução de Norberto de Paula Lima, São Paulo, Ícone editora,
1994, p. 60.
[16] Jean-Jacques Rousseau, “Da Monarquia”, 2a. ed., (livro III) In: Do Contrato Social, São Paulo, Abril Cultural, 1978, p. 95.
[17] Idem, ibidem.
[18] Arnaldo Cortina, O Príncipe
de Maquiavel e seus leitores: uma investigação sobre o processo de leitura.
São Paulo, Editora Unesp, 2000, p. 197.
[19] Napoleão Bonaparte, “Notas
de Napoleão Bonaparte”. In: Machiavelli, N. O Príncipe: com as notas de
Napoleão Bonaparte, Tradução de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella, 2 ed., São
Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 54.
[20] Arnaldo Cortina, Op. cit., p. 209.
[21]
Importante, também, se apresenta a leitura interpretativa de O Príncipe de
Maquiavel que como algumas das outras leituras elencadas no corpo do texto
condenam suas idéias. Essa leitura é feita por Machado de Assis, que refletindo
sobre a importância da imagem escreveu a Teoria do Medalhão. Neste texto,
Machado de Assis desenvolve uma narrativa em forma de diálogo entre o pai e seu
filho (Janjão), na qual o pai dá conselhos ao filho. Conselhos estes que
segundo o pai poderão garantir o futuro do seu filho. Conselhos voltados a uma
construção da imagem pública. O pai tinha a preocupação de que o filho,
independentemente da profissão que escolheria, fosse bem sucedido e
reconhecido, não queria que seu filho se torna-se uma pessoa comum como a
grande maioria. Machado procura desmascarar as aparências tentando mostrar que
a sociedade compõe o indivíduo pela opinião, pelos juízos de valores, não tendo
nenhuma virtude que o distingue ou mesmo diferencia. Machado faz uma crítica a
esta arte política, mostrando como o medalhão é um modelo teórico conhecido e
eficaz para conquistar respeito e confiança e acima de tudo sucesso em
sociedades que trabalham com o jogo das aparências, criar uma imagem de
confiabilidade e importância tal que todos lhe confiarão cargos e honrarias.
Uma opinião pública que lhe renda vantagens, com uma aparência que lhe possa
servir de fator de ascensão social. Isso tudo passa pela crítica de Machado de
Assis, que acha isso repugnante. Machado diria ao final de seu pequeno texto,
que tudo isso equivaleria ao “O Príncipe de Machiavelli”. Machado
faz uma crítica, não explicita diretamente no conto, mas com certeza uma
interpretação segura. O autor, ao escrever este conto, já pertencia a uma fase
madura de sua carreira, sendo publicado em 1882. Era um período
[22]
Nossas análises das obras de Maquiavel giram em torno da compreensão do
pensamento histórico e político do autor, voltado para a busca de príncipes
modelares na história, considerados como figuras ímpares, como forma de
construção de seu espelhos de príncipes. Esta evidência reforça a
concepção da idéia do perfeito governante sob a óptica de uma realeza heróica,
partindo da premissa de que Maquiavel apresenta um vasto catálogo de valores
morais para melhor governar, buscando apoio para seus argumentos nas lições do
passado.
[23] Refiro-me à mesma carta já citada anteriormente. Carta de 10 de dezembro de 1513.
[24] Cláudio Vouga, “A leitura
dos clássicos”. In: QUIRINO, C. G. VOUGA, C. & BRANDÃO, G. (org) Clássicos
do pensamento político, São Paulo, Edusp, 1998, p. 14.
[25] Sonia Lacerda & Tereza
Cristina Kirschner, “Tradição intelectual e espaços historiográficos, ou porque
dar atenção aos textos clássicos.” In: LOPES, M. A.
(Org). Grandes
nomes da História Intelectual, São Paulo, Contexto, 2003, p. 34.
[26] Idem, Ibidem.
[27] Quentin Skinner, Op. cit., 1988, p. 12.
[28] A Nova História Intelectual
abarca um grande número de tendências, além da contextualista de Quentin
Skinner, John Pocock e John Dunn, engloba também as tendências da hermenêutica
tributária de Hans-Georg Gadamer que privilegia a unidade e a coerência
semânticas e o desconstrucionismo baseado na polissemia e potencial de
contrariedade dos processos textuais em que se destaca Jacques Derrida. Entre
estes autores, existem correntes internas diferentes, por vezes totalmente
opostas. Como bem pode ser percebido nos constantes combates entre os
contextualistas e os pós-estruturalistas. A polêmica aumento com a publicação
do texto Intellectual History and the return of literature de David
Harlan. As ferozes críticas lançadas pareciam direcionadas especialmente a
Quentin Skinner, entretanto, o alvo principal não era Skinner mas aos autores
contextualistas americanos, contemporâneos ao próprio Harlan, como inicialmente
com Allan Megill e depois mais diretamente com David Hollinger. O duelo teórico
entre respostas, réplicas e tréplicas se estendeu a críticas pessoais. O ataque
de Harlan, chegava também a outros autores contextualistas como Thomas Haskell,
Dorothy Ross, George Stocking e Joyce Appleby.
[29] David Harlan, “A história
intelectual e o retorno da literatura”. In: RAGO, M. & GIMENES, R. (Orgs.),
Narrar o passado, repensar a história,
Campinas, IFCH, 2000, p. 22.
[30] Lauro Escorel. Introdução ao pensamento de Maquiavel. Brasília:
Editora UnB, 1979, p. 11.
[31] Harold J. Laski, “Sobre o
estudo da política”. In: KING, P. O
estudo da política, Brasília,
Editora UnB, 1980, p. 13.
[32] Sonia Lacerda e Tereza Kirschener. Op. cit., p. 30.
[33] Quentin Skinner, As fundações do pensamento político moderno, São Paulo, Companhia das Letras, 1996, p. 10.
[34] Virtù, amplo e
difícil de definir completamente. A tentativa de definição do conceito feita
por John Hale
[35] Marcos Antonio Lopes, Para Ler os Clássicos do Pensamento Político: um guia historiográfico, Rio de Janeiro, Fundação Getulio Vargas, 2002, p. 80.
[36]Ciro Cardoso e Ronaldo Vainfas, “História e análise de textos”. In: Domínios da história – ensaios de teoria e metodologia, Rio de Janeiro, Campus, 1997, p. 377.
[37]Antoine Prost, “As
palavras”. In: RÉMOND, René. (org.) Por uma história política. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 1996, p.
296.
[38] Idem, p. 312.
[39] René Rémond, “Uma História
Presente”, In: Por uma história política.
Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996, p. 22.
[40] Como nos diz Ciro Cardoso e Ronaldo Vainfas: “Fixemos, pois uma primeira ‘profissão de fé’: considerar o conteúdo histórico do texto dependente de sua forma não implica, de nenhum modo, reduzir a história ao texto, a exemplo do que fazem os autores estruturalistas ou pós-extruturalistas, que negam haver história fora do discurso. Pelo contrário, trata-se, antes de relacionar texto e contexto: buscar os nexos entre as idéias contidas nos discursos, as formas pelas quais elas se exprimem e o conjunto de determinações extratextuais que presidem a produção, a circulação e o consumo dos discursos. Em uma palavra, o historiador deve sempre, sem negligenciar a forma do discurso, relacioná-lo ao social” (p.278).
[41] Francisco C. Falcon,
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Janeiro, Campus, 1997, pp. 117-119.