REVISTA CANTAREIRA

 

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ISSN 1677–7794

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CANTAREIRA – Revista Eletrônica de História

Volume  2    Número   4    Ano  3  – jul. 2006

Editor    Mauro Henrique Barros Amoroso

Universidade Federal Fluminense (UFF)

Instituto de Ciências Humanas e Filosofia (ICHF)

Departamento de História

Campus do Gragoatá - Bloco O - 5º andar - Niterói - RJ - Brasil - CEP 24210-350
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Ficha Catalográfica

 

Revista CantareiraRevista Eletrônica de História

         Volume 2, Número 4,  Ano 3,  jul. 2006

          Disponível em: hhttp://www.historia.uff.br/Cantareira

 

1. História Geral; 2. Historiografia

 

 

História Cultural do Caos: Imagens de Futuro em “Akira”, de Katsuhiro Otomo·

 

Richard Gonçalves André··

Resumo: No final da década de 1980, o diretor e roteirista japonês Katsuhiro Otomo produziu uma animação denominada “Akira”, baseada em quadrinhos homônimos do mesmo autor. Na obra, observam-se alusões a um futuro perpassado do medo nuclear, do caos urbano, de movimentos sociais, etc. Gostaria de analisar os mecanismos que permitiram a construção destas representações, tendo em vista a possibilidade, apontada por Marc Ferro e outros autores, de utilizar o cinema como fonte histórica.

Palavras-chave: animação, caos, representação, futuro, Akira.

 

Abstract: At the final of 1980’s decade, the japanese director and screenplayer Katsuhiro Otomo produced a long called “Akira”, based in HQ’s with the same name and producer. In the workmanship, we can observe references to a future throught by nuclear fear, by urban chaos, by social movements, etc. I would like to analise the mechanisms that allowed the construction of these representations, considering the possibility, pointed by Marc Ferro and others authors, to utilize the cinema like historic source.  

Keywords: animations, chaos, representation, future, Akira.

 

1.      Futuro: objeto do historiador?

Por meio de suportes diversos, diferentes grupos sociais ao longo da história constroem projeções de futuro. Durante a Idade Média, perpassada principalmente pela religiosidade cristã, havia a crença no Apocalipse, ligado à salvação ou, pelo contrário, à punição das almas. Do ponto de vista da cultura popular – que em alguns casos trocava elementos com outros níveis culturais – lugares utópicos, possuindo abundância alimentar, salubridade climática, liberdade sexual, entre outros pontos, eram uma possibilidade supostamente real para homens e mulheres do período[1]. Nos séculos subseqüentes, a filosofia foi um manancial para a projeção de eras vindouras baseadas em teleologias. Vide os pensamentos de Kant, Hegel e mesmo, posteriormente, de Comte e Marx, não obstante as inegáveis diferenças que os caracterizam[2]. Na contemporaneidade, não é incomum perceber representações futurísticas em filmes holiwoodianos, quadrinhos ou outros meios, geralmente sob uma tônica bastante apocalíptica, embora diferente dos momentos históricos anteriores.

A despeito do caráter ficcional presente nestas representações futuristas – da máquina do tempo de H. G. Wells aos clones replicantes de Ridley Scott, somente para citar duas produções contemporâneas –, pode-se afirmar que livros, filmes, pinturas, quadrinhos e músicas, mais que dizer algo sobre o porvir – acertando ou não, pouco importa –, falam do próprio contexto em que são produzidos, isto é, das expectativas, dos medos, das frustrações, das críticas presentes na economia, na sociedade, na política, na cultura e mesmo no meio-ambiente de sua época e espaço. Pensar num utópico país de abundância, justamente numa época em que homens e mulheres medievais viviam em meio à fome e doenças, não pode ser mero fruto de coincidência. E, citando um caso mais recente, a idéia de um (falso) mundo criado a partir de programas de computadores na série “Matrix” (Andy e Larry Wachowsky, 1999 e 2003) não poderia ser pensado de modo descontextualizado, num período no qual a informática tem tanto peso, além da constante atmosfera de irrealidade derivada da pós-modernidade – o que seria assunto para outro texto[3]. Tratando de mesma questão, tendo em foco escritores ingleses do final do XIX e início do século XX, o teórico da literatura Raymond Williams afirma:

 

“... Com freqüência as visões destes autores são encaradas como sonhos inconseqüentes ou projeções voluntariosas e arrogantes. No entanto, estavam... próximas da realidade de uma crise concreta, que continua e se aprofunda até hoje...”[4]

 

Portanto, não seria absurdo afirmar que se pode fazer uma “história do futuro”, não sendo, assim, descabido o título que o historiador canadense David Wilson deu à sua obra[5]. De qualquer modo, parece um campo praticamente inexplorado pela historiografia e, de modo geral, pelas ciências humanas, com exceção talvez dos economistas e dos filósofos, que voltam parte de suas preocupações, respectivamente, para as variações dos ciclos econômicos – o ciclo de Kondratiev, somente para citar um caso – e para as utopias e escatologias. No entanto, quando abordada, a temática apresenta geralmente uma tônica profética ou, por outro lado, que busca avaliar erros e acertos. “Onde Nostradamus teria acertado ou errado?” pode ser uma pergunta instigante ao público interessado em detalhes pitorescos, mas questionar os condicionamentos sócio-econômicos, políticos e culturais de uma determinada construção futurística é muito mais interessante para os historiadores.

 

2. Dos quadrinhos ao cinema

Tendo em vista estas considerações, o objetivo deste artigo é analisar algumas imagens de futuro contidas na animação em longa-metragem “Akira” (1988), produzida pelo roteirista e diretor japonês Katsuhiro Otomo. Pretendo demonstrar que tal imaginário futurístico não pode ser reduzido ao caráter de ficção da obra, uma vez que os elementos que serão apontados – o medo nuclear, o caos urbano, os movimentos sociais, entre outros – dizem respeito ao conjunto de problemas, medos e expectativas que caracterizam seu contexto de produção.

No âmbito teórico-metodológico, utilizo o conceito de “imaginário”, proposto por Bronislaw Baczko, entendendo pelo mesmo um certo conjunto de imagens construídas e constantemente recriadas por veículos diversos, desde jornais, revistas, músicas, fotografias e, no caso em questão, pelo cinema, fonte privilegiada na presente análise. Ao mesmo tempo, pressupõe-se que o êxito de determinado imaginário – isto é, sua aceitação, apropriação e reconstrução – depende do que o autor denomina “comunidade de imaginação”, ou seja, uma predisposição do público receptor em identificar-se com as idéias em jogo[6]. Porém, não pretendo homogeneizar o imaginário para toda uma sociedade – procedendo a uma generalização excessiva –, deixando espaço para desvios e diferentes perspectivas, variando-se os grupos sociais e os lugares de produção[7].

Além disso, neste artigo, parte-se do pressuposto básico de que o cinema é uma fonte histórica que possui uma linguagem característica, conjugando imagens, sons e textos. Porém, não obstante a especificidade de seu discurso, é um testemunho que expressa múltiplos aspectos presentes num determinado contexto, de acordo com a perspectiva apresentada por seus produtores. Portanto, tendo em vista as considerações de Marc Ferro, trata-se de um documento que, para ganhar inteligibilidade, deve ser inserido em seu espaço e tempo de criação – o autor, a produção, o público, a crítica e a sociedade –, atinando, também, para os elementos internos à obra: os aspectos visuais, sonoros e suas relações; os cenários, a narrativa, o texto, etc.[8]

Antes, no entanto, de encetar a discussão sobre o longa-metragem, é válido ressaltar alguns aspectos em relação à produção de animações no Japão. Na maioria dos casos, a produção de desenhos em séries ou filmes para televisão ou cinema é precedida pelos quadrinhos, denominados originalmente “mangás”. Porém, não se pode simplificá-los e igualá-los a gêneros similares em outros países, uma vez que possuem características bastante próprias. A primeira delas é a temática bastante abrangente: não somente infantis, há em mesma proporção assuntos mais adultos, incluindo altos teores de violência, sexo, idéias filosóficas e científicas – o que não pode ser encontrado em larga escala em quadrinhos de outros países. Portanto, há mangás de variados tipos, enfocando desde heróis com super poderes, estudantes e trabalhadores comuns, esportistas, agiotas, cozinheiros, garotas de programa, cientistas, etc. Isto nos leva, como corolário, à segunda especificidade: a indústria nipônica de quadrinhos é direcionada para vários públicos, de modo que crianças, adolescentes, adultos, idosos, homens e mulheres lêem-nos, inclusive em vários ambientes, desde a escola, a casa, o trabalho, o metrô, etc.

Os mangás são geralmente publicados em capítulos que compõem grossos volumes contendo diversos títulos. Se fazem sucesso, ganham uma edição própria e encadernada. Na maioria dos casos, tais histórias são transformadas em séries de televisão ou cinema, denominadas convencionalmente “anime” – leia-se “animê”. Trata-se, também, de produções com temáticas variadas voltadas para diversos públicos. O próprio “Akira” foi lançado em mangá no ano de 1982, sendo a série finalizada apenas em 1990. Porém, durante o período de 1987 a 1989 a produção ficou parada, dedicando-se Otomo quase inteiramente à realização do longa-metragem para os cinemas, dado o enorme sucesso dos quadrinhos durante o período.

Enfim, seis anos após a estréia do mangá, isto é, em 1988, foi lançado nos cinemas japoneses o longa-metragem “Akira”, dirigido e roteirizado pelo próprio Otomo, que buscou ser o mais fiel possível aos quadrinhos que somavam, então, cerca de duas mil páginas. O enredo passa-se em Neo Tokyo, a reconstrução da capital nipônica após um presumível ataque nuclear. As primeiras cenas representam um enorme cogumelo atômico devastando a cidade, quase como um deja vu de Hiroshima e Nagasaki no final da Segunda Guerra Mundial. Neste cenário, perpassado do caos relativo à poluição – a maioria das cenas é não casualmente escura –, à violência urbana – que vai de conflitos entre gangues à prostituição –, ao tráfico e utilização de narcóticos, às manifestações estudantis, ao fundamentalismo religioso – com direito a movimentos milenaristas –, entre outras questões importantes, os personagens principais são Kaneda e Tetsuo, dois adolescentes que, amigos de infância, pertencem a uma gangue de motoqueiros rebeldes às normas tradicionais da sociedade: drogam-se, saqueiam, vivem num reformatório, apanham com certa freqüência da polícia e dos grupos rivais. Tetsuo, mais novo que seu amigo, revela, ao longo da animação, possuir grandes poderes paranormais, o que significa para si um triunfo – já que, desde criança, é rebaixado e ridicularizado pelos colegas, inclusive Kaneda. Neste ínterim, uma organização governamental captura-o, buscando controlar e utilizar para seus próprios fins tais poderes, pois o jovem assemelha-se, em termos de potencial psíquico, a Akira, cujos poderes – capazes de destruir ou criar universos – foi selado pela organização.

Por estes e outros motivos, como uma animação altamente rebuscada produzida através de técnicas tradicionais – entenda-se sem o uso de computação gráfica (CG) –, “Akira” teve uma enorme repercussão entre o público nipônico, não somente entre crianças e adolescentes, mas também entre os adultos. Rapidamente, o anime foi distribuído para diversas regiões do globo: Estados Unidos, China, países europeus e, inclusive, Brasil. O significativo sucesso nestes locais, que propiciou um maior conhecimento da indústria da animação japonesa – até então restrita a poucos conhecedores –, permitiu que os mangás fossem também publicados. A Editora Globo adquiriu seus direitos, e os quadrinhos foram comercializados em território brasileiro – atualmente tornaram-se objetos de colecionador, raramente encontrados em sebos. De qualquer modo, a animação continua sendo mais popular – exceto talvez entre os japoneses –, motivo pelo qual a seleciono como objeto de análise.

“Akira” foi responsável pela grande popularização de Otomo entre o público de outros países, embora o autor fosse bastante conhecido no Japão, através de quadrinhos como “Boogie Woogie Waltz” (1974) e “Domu, a Child’s Dream” (1980 – 1982). Desde então, tornou-se uma das maiores autoridades em anime e mangá, sendo seu nome associado mesmo ao de Osamu Tezuka, considerado o godfather destas artes. De modo geral, suas obras apresentam certos elementos constantes, como o apelo à ficção científica, a recorrência de temáticas como a violência física e moral, a exclusão social – como no recente “Metropolis” (2002), baseado nos quadrinhos de Tezuka, baseados por sua vez no filme homônimo de Fritz Lang –, o medo nuclear e mesmo questões como a memória e o imaginário – ver “Memories” (1998). Sua rede de influências é múltipla, que vai desde a leitura de quadrinhos americanos ao gosto por filmes de ficção científica. Porém, em sua produção, principalmente no caso analisado, muitos aspectos são retirados diretamente do contexto e do imaginário japonês – e também mundial –, o que condiciona a projeção de futuro em suas ficções.

3. O peso do imaginário no pós-guerra

No período de produção do mangá de “Akira”, a partir de 1982, o mundo encontrava-se na chamada Guerra Fria, na qual os dois grandes blocos mundiais, Estados Unidos e União Soviética, trocavam entre si ameaças nucleares. Em 1989, um ano após o lançamento e distribuição do anime, caía o Muro de Berlim, encerrando o conflito mencionado, embora não se possa negar que o perigo nuclear tenha sido, para diversas gerações, não somente uma fantasmagoria, mas uma possibilidade real. Isso se torna ainda mais premente em relação ao Japão, atacado no final da Segunda Guerra Mundial com duas bombas atômicas, trazendo ao país implicações diversas: o extermínio em massa de alvos civis e militares, a debilitação física dos sobreviventes – e de seus descendentes, dada a afetação genética gerada pela radiação – e, entre outros pontos importantes, a marca impressa no imaginário coletivo japonês – o que gera posturas diversas.

Desde então, a recorrência da temática tem sido impressionante. No cinema, as produções do diretor Akira Kurosawa têm enfocado a questão nuclear, em filmes como “Yume” (“Sonhos”, 1990) e “Hachigatsu no Rapsody” (“Rapsódia em Agosto”, 1991). Na animação, destaca-se “Hotaru no Haka” (“Túmulo de Vaga-Lumes”, 1988), de Hayao Miyazaki, além do próprio “Akira”. “Gen”, de Keiji Nakazawa, é uma bela expressão em mangá[9]. Portanto, não é de impressionar-se que tal ponto tenha sido explorado na obra-prima de Otomo, que, desde os primeiros momentos, representa um cogumelo atômico destruindo a capital Tokyo: a cena passa-se quase num silêncio total, na qual o contraste entre a falta de som e os brilhos visuais parecem realçar o efeito de impacto do evento.

 Com o prosseguimento da narrativa, percebe-se que, a despeito da reconstrução da cidade, há uma série de problemas derivados da destruição, como a crise econômica, a violência e a pobreza, resultantes, em grande parte, da morte de inúmeras pessoas. A grande quantidade de menores órfãos e delinqüentes, entre eles Kaneda e Tetsuo, é uma implicação direta destas baixas. Embora o ano em que se passa o enredo seja 2030, 38 anos após o início da Terceira Guerra Mundial (no anime) – desencadeada com a bomba –, nada faria recordar mais a situação de Hiroshima e Nagasaki durante e após 1945: destruição, baixas civis e militares, colapso econômico, violência, entre outros elementos de peso. Aliás, esta seria a posição de praticamente todo o Japão no período, reconstruindo-se devido aos efeitos da guerra.

No anime, este foi o solo no qual germinaram todos os demais problemas, como as manifestações sociais, geralmente reprimidas pelo exército e a polícia. A presença destes indícios de revolta, que compõem o background de “Akira”, não se desligam de modo algum dos problemas que assolavam a década de 1980. Do ponto de vista mundial, os anos 1970 e 80 trouxeram os chamados movimentos de minorias: ecologistas, homossexuais, feministas, estudantes, entre outros atores, compunham as novas esquerdas, após a descrença gerada pela URSS stalinista[10]. Tais ações demonstraram como a atmosfera de calma apenas ocultava o turbilhão da sociedade moderna. A crença dos novos revolucionários, amiúde de uma inocência perturbadora, poderia ser representada pela personagem Kai: sonhadora, amante da paz, opondo-se diretamente a Kaneda, mais para rebelde aparentemente sem causa, imediatista e impulsivo, que para revolucionário. Ambos talvez representem as diferentes posturas adotadas pela esquerda, com ou sem aspas: a possuidora de ideais, por um lado, e a pragmática, preocupada apenas com as circunstâncias do presente imediato, por outro[11].

Na obra de Otomo, todos esses elementos são perpassados por uma atmosfera apocalíptica, tanto que, em diversas ocasiões, em meio às manifestações, percebem-se grupos de fanatismo religioso clamando pelo retorno de Akira – como um Cristo pós-moderno –, mencionando a punição da humanidade pecadora e a salvação dos puros de coração. Seria válido recordar que, como é próprio de períodos de crise sócio-econômica, política e cultural, surgem focos de fundamentalismo de diversas espécies, dentre as quais a religiosa é a mais evidente. Nos últimos anos, o revigoramento da retórica da Al Qaeda ou mesmo dos discursos do presidente norte-americano George W. Bush, misturando os anseios por “democracia” aos desígnios divinos, bem demonstram tendências do gênero.

No próprio final do anime, em que Tetsuo libera totalmente seus poderes, de modo a não conseguir controlá-los, tornando-se uma monstruosidade que destrói a cidade ao redor, matando várias pessoas – inclusive Kaori, sua namorada –, há sugerida uma visão de apocalipse, bastante característica em relação ao período de produção dos quadrinhos e da animação[12]. Em filmes, principalmente de matiz holiwoodiano – muitas vezes fonte de inspiração para Otomo –, como “Blade Runner” (R. Scott, 1982) e “The Terminator” (James Cameron, 1984), tal como em livros, documentários sensacionalistas e outros suportes, a recorrência da tônica apocalíptica é particularmente intensa. Evidentemente, esta atmosfera de “fim dos tempos” não se desvincula do contexto de Guerra Fria então em voga. Hoje podemos denominá-la “fria” e fantasmagórica, mas, no momento, era uma possibilidade real. Além disso, não seria incorreto afirmar que a aproximação do século XXI poderia, também, relacionada aos fatores mencionados, maximizar a sensação de caos.

Diante destes e outros fatores, é possível afirmar que “Akira” reconstrói elementos presentes no imaginário coletivo não apenas do Japão, mas de diversas regiões do mundo. Quais seriam as razões para seu sucesso e aceitação entre diferentes públicos?

4. Recepção

Uma primeira razão seria o caráter de entretenimento da obra, que não pode simplesmente ser ignorado. Como é próprio de todas as produções culturais da contemporaneidade, “Akira” está inserido no círculo da chamada indústria cultural, já que é uma animação reproduzida em larga escala – o que Walter Benjamin denominou “reprodutibilidade técnica”[13] – e destinada a públicos de diversos matizes, muitos dos quais interessados apenas em entrar no cinema, divertir-se e continuar vivendo normalmente – a estética burguesa de fruição do produto. Além disso, há todo o caráter de lucro decorrente da produção e circulação do mangá e anime, e também de seus subprodutos, de revistas, pôsteres, cards, bonecos, jogos de videogame a camisetas. Somente para produzir o longa-metragem, foram gastos aproximadamente dezesseis milhões de dólares, sua bilheteria superando muito as expectativas iniciais.

Porém, a perspectiva da indústria cultural tende a desvalorizar a produção, de modo a reduzi-la somente a mais uma mercadoria alienante destinada às massas. É preciso transcender tal raciocínio simplista, percebendo a multiplicidade de influências que permitem a composição de “Akira”, assim como a complexidade de seus significados. Deste ponto de vista, provavelmente há mais que mero “entretenimento” para a boa recepção do anime. Como sugere Baczko, para que um certo imaginário social tenha legitimidade, é preciso que haja o que a denominada comunidade de imaginação, um solo relativamente concreto no qual os indivíduos submetidos ao imaginário possam identificar-se[14].

Durante a década de 1980 e parte de 90, com bem menor intensidade, o medo relacionado à destruição do mundo através de armamentos nucleares, desencadeando uma quase sempre temida Terceira Guerra Mundial, era uma possibilidade real, não uma simples fantasmagoria, como sugerido anteriormente. Durante diversos anos, pelo menos desde o fim da Segunda Guerra, a mente de diversas gerações foi alimentada com os temores apocalípticos, seja por meio dos discursos políticos dos EUA e da URSS, documentários e jornais televisivos, revistas – inclusive em quadrinhos – e cinema, somente para citar alguns suportes. Uma simples ilusão não teria justificado um investimento tão maciço em armamentos por parte dos dois blocos, a ponto de fazer a economia soviética fragilizar-se em todos os demais aspectos[15]. Objetivamente, a guerra pode ter sido “fria”, mas, nas “mentes e corações”[16] de homens e mulheres destas gerações, o medo foi significativo. Assim, quando “Akira” foi distribuído – seja em mangá ou anime –, havia toda uma comunidade de imaginação predisposta a recebê-lo, principalmente em meio ao público japonês – cuja experiência nuclear e a reconstrução social tornaram-se lugares de memória –, mas, também, no tocante aos leitores e espectadores de diversas regiões do mundo.

“Akira” pode falar sobre 2030, representando um porvir de cunho apocalíptico, mas sua narrativa remete muito mais ao contexto de produção da década de 1980. Medo nuclear, conflitos de gangues, movimentos sociais, fanatismo religioso, drogas, prostituição, pobreza, entre outros elementos, são facetas do mosaico que influenciam a obra. Diversos destes aspectos sobrevivem ainda hoje – embora do ponto de vista da história do tempo presente não seja um passado distante –, outros perderam muito do significado, como o temor atômico e de uma suposta Terceira Guerra. Não é casual que as representações de futuro atualmente enfoquem mais vírus de computadores e realidades virtuais que destruição do mundo por alienígenas ou soviéticos com dentes de ferro conspirando contra os EUA.

Pode-se concluir, através da análise histórica do longa-metragem, que “Akira” não é simplesmente uma obra de ficção que encerra seus significados em si mesma, mas carrega uma série de representações que remetem aos medos e expectativas de sua própria época. Isso demonstra que é possível perceber o futuro enquanto objeto da história, uma vez que suas imagens apresentam-se como um espelho deformador dos problemas sociais, econômicos, políticos, culturais e ambientais de um determinado espaço e tempo histórico. Compreender as projeções futurísticas, utópicas ou distópicas, é um modo de entender os impasses de um mundo em constante transformação. Olhar para o amanhã é observar as preocupações do presente e mesmo do passado.

Portanto, a compreensão do futuro enquanto objeto histórico pode ampliar as dimensões do metier do historiador, permitindo-lhe lançar perguntas observando as projeções futurísticas como construções de um espaço e tempo. Por que determinadas sociedades representam o porvir de uma determinada forma? Como tais imagens refletem de modo deformado as preocupações do passado e do presente? Para quem são destinadas as utopias ou distopias? O que pretendem legitimar? São questionamentos que podem entrar no repertório do historiador, demonstrando que pensar o amanhã não é algo tão inocente quanto se imagina. Cabe-lhe perscrutar o campo da história do futuro e, também aqui, lançar a pergunta: qual é a razão da mudança?

 

1. Bibliografia

BACZKO, Bronislaw. “Imaginação Social” in: Enciclopédia Einaudi. Volume 5: Anthropos – Homem. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1985.

BENJAMIN, W. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1993.

BERMAN, Marshall. Tudo que é Sólido Desmancha no Ar: a Aventura da Modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

CARVALHO, José Murilo. A Formação das Almas: o Imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1979.

FRANCO JÚNIOR, Hilário. Cocanha: a História de um País Imaginário. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

________________. As Utopias Medievais. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1992.

GARDINER, Patrick. Teorias da História. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1984.

GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes: o Cotidiano e as Idéias de um Moleiro Perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

JAMESON, Fredrich. Pós-Modernismo: a Lógica do Capitalismo Tardio. São Paulo: Ática, 1996.

WILLIAMS, Raymond. O Campo e a Cidade na História e na Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

WILSON, David. A História do Futuro. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.

 

2. Filmografia

Akira. Dirigido por Katsuhiro Otomo. USA, Pioneer Entertainment, 2001 (versão em DVD).

Blade Runner. Dirigido por Ridley Scott. USA, Warner Brothers, 1982.

Hotaru no Haka. Dirigido por Hayao Miyazaki. Japão, Ghibly, 1988.

Matrix. Dirigido por Andy Wachowsky e Larry Wachowsky. EUA: Warner Brothers Pictures, 1999.

Matrix Reloaded. Dirigido por A. Wachowsky e L. Wachowsky. EUA: Warner Brothers Pictures, 2003.

Matrix Revolutions. Dirigido por A. Wachowsky e L. Wachowsky. EUA: Warner Bros. Pictures, 2003.

Memories. Dirigido por Katsuhiro Otomo. Brasil, Columbia Pictures, 1998 (versão em DVD).

Metropolis. Direção de Rintaro, roteiro de Katsuhiro Otomo. Brasil, Columbia Pictures & Tristar International, 2004 (versão em DVD).

Rapsódia em Agosto. Direção de Akira Kurosawa. Brasil, Microservice Tecnologia Digital, 2003 (versão em DVD).

Sonhos. Direção de A. Kurosawa. Brasil, Warner Brothers, 2003 (versão em DVD).

The Terminator. Dirigido por James Cameron. EUA, MGM, 1984.

 

3. Quadrinhos

NAKAZAWA, K. Gen, Pés Descalços. São Paulo: Conrad Editora, 2002, 3 volumes.

OTOMO, Katsuhiro. Akira. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1991 (25 edições).

_______. Boogie Woogie Waltz. Japão: Manga Action, 1974.

_______. Domu, a Child’s Dream. Japão: Action Draks, 1980-1982.



· Este artigo foi apresentado oralmente, de forma preliminar, na XXII Semana de História – “O Golpe de 1964 e os Dilemas do Brasil Contemporâneo” –, realizada na Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus Julio de Mesquita Filho (Assis).

·· Mestrando em história política pela UNESP de Assis.

[1] Hilário Franco Júnior, As Utopias Medievais, São Paulo: Ed. Brasiliense, 1992; idem, Cocanha: a História de um País Imaginário, São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Sinais de um imaginário enraizado na cultura popular encontram-se, também, nas idéias do moleiro Mennochio, analisado por Carlo Ginzburg, O Queijo e os Vermes: o Cotidiano e as Idéias de um Moleiro Perseguido pela Inquisição, São Paulo: Companhia das Letras, 1987, pp. 101 – 110. É freqüente, neste período, que o futuro projetado seja baseado num passado mítico. Portanto, o mito associa-se à utopia.

[2] Patrick Gardiner. Teorias da História. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1984.

[3] Sobre a pós-modernidade e a idéia da “ilusão”, cf. Fredrich Jameson. Pós-Modernismo: a Lógica do Capitalismo Tardio. São Paulo: Ática, 1996.

[4] Raymond Williams, O Campo e a Cidade na História e na Literatura, São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 369. A crise a que se refere o autor diz respeito à dimensão que a cidade ganhou na vida de homens e mulheres no período, gerando diferentes projeções de futuro.

[5] David Wilson, A História do Futuro, Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.

[6] Bronislaw Baczko. “Imaginação Social” in: Enciclopédia Einaudi. Volume 5: Anthropos – Homem. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1985.

[7] Esta é uma crítica feita sobre a história das mentalidades, como aponta Carlo Ginzburg. O Queijo e os Vermes. Cit.

[8] Marco Ferro, “O Filme: uma Contra-Análise da Sociedade?” in: LE GOFF, Jacques & NORA, Pierre (org.), História: Novos Objetos, Trad. Terezinha Marinho, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988, p. 203.

[9] Cf. a edição brasileira Keiji Nakazawa, Gen, Pés Descalços, São Paulo: Conrad Editora, 2002, 3 volumes.

[10] Marshall Berman, Tudo que é Sólido Desmancha no Ar: a Aventura da Modernidade, São Paulo: Companhia das Letras, 1986, pp. 271 – 330.

[11] Para uma interessante análise da historicidade da esquerda e dos intelectuais, Michel Foucault, “Os Intelectuais e o Poder” in: Microfísica do Poder, 16ª edição, Rio de Janeiro, Edições Graal, 1979, pp. 69 – 78.

[12] Baseio-me nas considerações de Elton Mitio Yoshimoto, que tem buscado demonstrar, do ponto de vista comparativo, a recorrência da temática apocalíptica na obra do quadrinista norte-americano Frank Miller e do próprio Otomo.

[13] Walter Benjamin, “A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica” in: Magia e Técnica, Arte e Política., São Paulo: Brasiliense, 1993.

[14] Bronislaw Baczko, Op. Cit. Para uma aplicação destes conceitos analíticos sobre o imaginário brasileiro republicano, ver José Murilo de Carvalho, A Formação das Almas: o Imaginário da República no Brasil, São Paulo: Companhia das Letras, 1990. Segundo o cientista político, a falta de uma comunidade de imaginação em relação aos símbolos produzidos pela República justificou seu relativo fracasso, motivo pelo qual foram buscados indícios das tradições imperiais.

[15] No recente “Memories”, composto de três episódios independentes, Otomo explora, no capítulo “Cannon Fodder”, a questão do imaginário criado em torno de um inimigo invisível, legitimando o investimento maciço em armamentos numa cidade, voltada para a construção de imensos canhões. É uma excelente metáfora do período da Guerra Fria, principalmente no tocante ao posicionamento da URSS. Sobre a fragilização da economia soviética, Eric Hobsbawm, Era dos Extremos: o Breve Século XX (1914 – 1991), 2ª edição, trad. Marcos Santarrita, São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

[16] Baseio-me em José Murilo de Carvalho,. Op Cit., p. 10.