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entrevista com Carlos Barros

por Alexandre Camargo, Fernando G. P. Vieira, Mauro Amoroso e Richard N. de Paula
tradução de Júlio César Barreto Rocha – UNIR


1. Gostaríamos que o senhor traçasse um panorama das iniciativas e atividades promovidas pelo Historia a Debate, bem como os motivos e incentivos que levaram à sua reunião. Gostaríamos, também, que o senhor apresentasse os planos e estimativas futuras para o Historia a Debate.

HaD nasceu em 1993 em torno ao I Congreso Internacional Historia a Debate, então celebrado em Santiago de Compostela, no mesmo lugar em que o foram os seguintes. Reunimos na época, entre outros, tudo que restava das escolas dos Annales e de Past and Present, com a idéia de fazer um balanço e lançar algumas perspectivas, após a “grande crise”, sobre questões cruciais de metodologia, historiografia e teoria da história. Esta temática, ampliamos nas edições posteriores alcançando relações da história com a sociedade, ensino da história, História Imediata, problemas de campo de trabalho para os historiadores, etc. Em 1999 houve um salto qualitativo no nosso movimento acadêmico quando ele aterrissou na Internet por ocasião dos preparativos do nosso II Congresso. Foi criada uma web, www.h-debate.com, a qual recebeu 1.576.739 visitas de colegas, além de duas listas de correio eletrônico, HaD e HI, que reúnem neste momento cerca de 3.000 historiadores cadastrados para receber mensagens diárias. Este é um fenômeno excepcional, portanto, desta nova sociabilidade acadêmica, cujo resultado demonstra a percepção da mudança de estratégia de HaD, migrando do eurocentrismo ao novo paradigma global, promovendo uma “reviravolta latina” na historiografia mundial. O I Congresso nos ensinou (ver “La historia que viene” em www.cbarros.com) o imperativo de pensar a história por nós mesmos, sem mimetismos, orientando-nos em busca do futuro da historiografia, construindo alternativas sem que nos afastemos das nossas raízes nacionais, continentais e intercontinentais: procurando, da Europa, os nossos primeiros aliados acadêmicos no mundo ibero-americano. Esta estratégia tornou-se mais visível e autônoma no II Congresso, consolidando-se no III Congresso, em Julho de 2004, que sem dúvida foi o melhor de todos os que realizamos, porque situa com mais limpidez num primeiro plano a reconstrução de um novo consenso (paradigma) historiográfico internacional. É um processo inacabado de reformulação historiográfica que, sem fazer tabula rasa do materialismo histórico, Annales ou do neopositivismo historiográfico, reconhece sem pejo os seus (nossos) erros, incapacidades e fracassos, ao mesmo tempo em que busca coletivamente, em permanente debate, respostas às novas perguntas, ou seja, uma nova forma de escrever a história que responda aos desafios da historiografia e da história depois da crise das “grandes escolas” e das subseqüentes “quedas” do Muro de Berlim e das Torres Gêmeas. Neste sentido, surge como fenômeno fundamental o Manifesto historiográfico de HaD, levado à rede no dia 11 de Setembro de 2001, firmado até o momento por 397 historiadores de 35 países, e cuja revisão coletiva virá com a edição das Atas do III Congresso.

2. O Manifesto de Historia a Debate, ao tratar de uma "Nova erudição", diz ser a favor "de uma nova erudição que amplie conceito de fonte histórica para além da documentação oficial, alcançando (...) as 'não-fontes', como os silêncios, erros e lacunas, que o historiador e a historiadora terão que valorizar". No entanto, uma crítica que se faz ao pós-modernismo é justamente à suposição de que a atenção dada às lacunas e silêncios na documentação levaria a um tamanho grau de subjetividade e imaginação no trabalho do historiador que colocaria em risco o rigor acadêmico da pesquisa. Na sua opinião, como é possível ao historiador utilizar estas "não-fontes" sem recorrer a um extremado subjetivismo?

Tenho uma proposta para modificar o título do ponto II, “Nova erudição”, do Manifesto, na sua próxima revisão, dado que existe uma contradictio in terminis, sendo necessário ainda adequar melhor este item sobre as fontes à nossa redefinição da história no ponto I como “ciência com sujeito” (sujeito num duplo sentido: atores históricos e historiadores). A subjetividade das fontes, tanto social como mental, já foi “descoberta” há décadas pelas “novas histórias” da história francesa das mentalidades (Annales foi criada em 1929, e a sua história das mentalidades difundida nos anos 60 e 70), e pela história social anglo-saxônica (Past and Present foi criada em 1952, e a sua antropologia histórica das lutas sociais difundida nos anos 70 e 80). É portanto uma “velha” descoberta historiográfica isso de que as lacunas, os silêncios e os imaginários constituem parte fundamental da subjetividade humana presente em todo tipo de fontes e na ação histórica dos diversos sujeitos, e não tem nada que ver, ao menos historiograficamente, com a influência do pós-modernismo. Isso é inexato, injusto e normalmente não é nada inocente rebatizar como pós-moderno a tudo aquilo que pareça novo e, sobretudo, a tudo aquilo que foi novo décadas atrás.
O pós-modernismo é uma proposta filosófica de origem européia (Feyerabend, Lyotard, Vatimo) que postula o fracasso irreversível da modernidade e da Ilustração (não confundir com a crítica construtiva da Escola de Frankfurt) e o “vale-tudo” metodológico da fragmentação. Admitida como “giro lingüístico” nos Estados Unidos, foi divulgada por meio do mundo acadêmico anglófono como uma clara negação da história como ciência, inclusive da história como profissão e como disciplina acadêmica diferenciada, como quando nos propuseram H. White e os seus seguidores a volta da escritura da história à escritura em geral, à literatura. A tardia e surpreendente recepção acadêmica da novidade pós-moderna em países como o Brasil ou a Venezuela é o típico processo residual de certas historiografias dependentes (diga-se respeitosamente, a historiografia espanhola também assim o é, para o bem e para o mal, há décadas) que recebem como “o último grito” propostas intelectuais quando já não o são nos seus lugares de origem. Na Europa o pós-modernismo não chegou a decolar (exceto na Grã-Bretanha), e nos Estados Unidos deixou de estar de moda há muitos anos.
Para Historia a Debate o pós-modernismo continua sendo contudo um significativo interlocutor no debate internacional historiográfico e teórico, dentro e fora da nossa rede, mas não serve muito na reconstrução de um novo paradigma válido para a história, devido à sua incapacidade congênita para originar alternativas epistemológicas factíveis, que levem em conta a nossa realidade acadêmica e profissional, e sejam coadjuvantes na busca coletiva de novas e atualizadas modernidades por parte dos povos, etnias e nações, menos favorecidos pela globalização. Assumimos, decerto, a contribuição inicial do pós-modernismo à crítica dos “grandes relatos”, do dogmatismo e do sectarismo na historiografia e nas ciências sociais, mas não estamos dispostos a desprezar a história e as disciplinas afins; a criança junto com a água do banho pelo ralo, isso não nos podemos permitir.
De meados dos anos 90, o pós-modernismo, na América Latina e em outros lugares, está-se convertendo, por outro lado, num complemento ou “álibi perfeito” de certo neoconservadorismo acadêmico, tanto historiográfico como ideológico, reagindo ao retorno que estamos vivendo na Europa, América e globalmente, de novos e potentes sujeitos sociais. Haveria de convencer aos colegas pós-modernos bem-intencionados e “críticos” (porque também existem) de que a reivindicação do discurso na história, ou a redescoberta dos estudos culturais, não compensam o suicídio epistemológico que nos é proposto, nem uma nova cisão entre academia e sociedade, quando necessitamos na realidade do contrário disso.
De todos os modos, trata-se de um debate do século passado. Com o Século XXI entramos, felizmente, numa nova etapa histórica pós-pós-moderna que necessita ser preenchida de conteúdo intelectual (sem retornar ao Século XIX seja com Ranke ou seja com a história-ficção) cumprindo a tarefa inadiável de reconstrução radical da idéia de progresso e de racionalidade, do conceito de modernidade e de ilustração, tendo em conta a crítica pós-moderna, entre outras (leia-se a este respeito o preâmbulo de La historia que viene, 1994, assim como o ponto XIV do Manifesto historiográfico de HaD, 2001).

3. A interdisciplinaridade é uma realidade nos estudos históricos recentes, no entanto, há ainda alguma reticência da parte de alguns historiadores quanto ao diálogo da história com certas disciplinas, por exemplo, a literatura; por outro lado, o Manifesto propõe ainda o intercâmbio com as ciências da natureza, além de disciplinas emergentes que tratam das novas tecnologias. Esta proposta interdisciplinar com áreas tão diferentes não implicaria em uma maior fragmentação, ou mesmo pulverização, dos estudos históricos neste novo século?

É isso mesmo. Temos sobre este tema uma prolongada experiência, boa e má. A interdisciplinaridade promovida com eficácia no Século XX pelos Annales e por outras correntes historiográficas, produziu muita renovação mas também foi o começo da desmedida fragmentação disciplinar que hoje padecemos. Por isso no ponto IV do Manifesto optamos por uma “nova interdisciplinaridade” direcionada ao interior da história com o objetivo de comunicar “o vasto arquipélago em que se converteu a nossa disciplina nas últimas décadas”, estabelecendo para isso múltiplas “pontes” entre as diferentes especialidades históricas por meio de uma “história mista” e outras metodologias do global.
Talvez tenhamos de insistir mais na radical novidade desta parte fundamental da nossa plataforma historiográfica: sem INTRAdisciplinariedade não haverá boa INTERdisciplinariedade com as velhas e novas ciências sociais, com as humanidades, com as “ciências duras”. Se não reconstruímos a unidade perdida da nossa disciplina (em parte pelo seu próprio crescimento) a cooperação com outras disciplinas seguirá nos debilitando e fragmentando mais e mais, condenando-nos a uma posição subalterna entre as ciências humanas e sociais, e a uma situação pusilânime frente aos poderes políticos, mediáticos e editoriais.


4. Aqui no Brasil, pelo menos na nossa experiência recente de estudantes universitários, ainda é bem maior o contato dos alunos de graduação com os trabalhos de historiadores europeus (além dos nacionais), havendo pouco diálogo, excetuando uma ou outra disciplina mais específica, com a produção dos nossos vizinhos latino-americanos, por exemplo. Pelo que o senhor pode perceber na Europa, na Espanha pelo menos, como está o contato dos historiadores do Velho Continente, incluindo aí as leituras dos estudantes de graduação, com a produção oriunda de países subdesenvolvidos?

Historia a Debate conseguiu, na sua primeira década de trabalho, organizar uma comunidade acadêmica de um novo tipo baseada no “intercâmbio igual”, no debate e no consenso, entre milhares de historiadores e professores de história de centenas de universidades dos dois lados do Atlântico, incluídas algumas brasileiras. Não nos consideramos “subdesenvolvidos”, ao contrário, e menos ainda consideramos o Brasil como um país academicamente “subdesenvolvido” que os historiadores europeus devam “recolonizar”. Somos contrários aos intercâmbios acadêmicos desiguais, assimétricos, por uma questão de eficácia: não apenas por razões de ética acadêmica, cultural e política. O conhecimento novo, também no campo da historiografia, surge hoje sobretudo pela via da globalidade, da multilateralidade e da horizontalidade que são permitidas pelas novas tecnologias da comunicação. O velho sistema centro-periferia do Século XX não serve no novo século: os focos de inovação historiográfica situados nos países “desenvolvidos”, unilaterais e verticais, estão esgotados há muito anos. O eurocentrismo está morto e as velhas dependências acadêmicas também. Ao menos em ambientes academicamente avançados, o que conta agora é a interdependência global. Periferias do Século XX podem ser centros de novo tipo (não “coloniais”) no Século XXI. Assim ocorre com Espanha e América Latina no tocante ao fórum-tendência de HaD, assim ocorre com o Brasil no referido aos foros sociais da globalização alternativa (Porto Alegre); outro exemplo está sendo oferecido por Lula, pelo seu governo, ao promover uma nova aliança política com outros governos latinos, americanos e europeus (Espanha).
Por que a historiografia brasileira não tem mais relações com o resto das historiografias latinas, incluída Espanha? Gostaríamos a partir de Historia a Debate de debater com vocês para compreender, e contribuir a resolver este e outros paradoxos da historiografia brasileira, que reflete talvez melhor que outras historiografias nacionais a encruzilhada Norte–Sul em que se encontra hoje a universidade, a história imediata e a globalização. Às vezes perguntamos por que a academia brasileira participa menos nas nossas atividades digitais e presenciais que, por exemplo, o México ou a Argentina: salvo por notórias exceções como o Ciro F. Cardoso da UFF, José Geraldo Vinci de Morais da USP, Jorge Nóvoa da UFB, entre outros e outras colegas. No começo pensávamos no problema da diferença idiomática, mas não parece ser fundamental, não é? E menos ainda se considerarmos que HaD está sendo coordenada a partir da Galiza. Vamos compreendendo em parte as razões de fundo. Como dizes na pergunta, o Brasil não conecta academicamente com o resto da América Latina, e, temos de acrescentar, tampouco com Espanha existe uma grande tradição de intercâmbio: queremos ajudar a resolver esta anormal situação, é preciso que a historiografia brasileira se incorpore mais à globalização historiográfica alternativa que está sendo construída por todos nós.

5. O Manifesto diz na parte dedicada à Sociedade: "Os efeitos mais notórios das políticas públicas de desvalorização social da história são a falta de saídas profissionais, o decréscimo de vocações e os obstáculos à continuidade geracional. As comunidades de historiadores devem tomar como seus os problemas trabalhistas dos jovens que estudam e querem ser historiadores, cooperando na busca de soluções que passam pela revalorização do ofício de historiador e de suas condições de trabalho e vida". Aqui no Brasil, com a expansão das instituições de ensino superior, são atualmente milhares os jovens que saem todos os anos das faculdades para ingressar no mercado de trabalho, cuja demanda não corresponde ao número dos recém-formados. Como tem sido conduzida nos congressos a questão da necessidade de articular a preocupação com a formação acadêmica de futuros historiadores e a cada vez mais difícil entrada desses no mercado de trabalho? Resolver esse problema através da abertura de novas possibilidades de atuação profissional do historiador não seria uma maneira de alargar sua participação social e revalorizar sua função ético-social?

Fico satisfeito de que a tradução ao português realizada pelo professor Vinci de Morais do Manifesto tenha servido, e vá ser publicada pela primeira vez no seu país na revista amiga Intellectus. Com efeito, preocupa-nos muito como rede, fórum e movimento historiográfico formado majoritariamente por docentes universitários que os nossos alunos não possam trabalhar naquilo para o que foram formados. Concordamos em que haverá que buscar novas possibilidades de atuação profissional. O problema é não cair numa dependência excessiva do mercado, que é o que está gerando precisamente a falta de trabalho dos nossos recém-formados, seria como botar a raposa para vigiar as galinhas. É preciso estar claro que o mundo da empresa, cujo mecenato cultural haveria de ser incentivado, não vai salvar o futuro da história e das humanidades, mas sim é possível que seja o contrário. O futuro da pesquisa, do ensino e da divulgação da história depende antes de mais nada da nossa capacidade coletiva como acadêmicos para defender a universidade como serviço público e “templo do saber”. É por isso que no item sobre Academia Solidária estamos apoiando, ultimamente, as lutas acadêmicas contra o desaparecimento direta ou indiretamente da história em Nuevo León (México), La Matanza (Argentina) e em Espanha (o possível desaparecimento dos cursos de história da arte e de humanidades). Se queremos que haja mais vagas para historiadores no ensino médio, nos arquivos, nas bibliotecas, nos museus, na gestão e no turismo cultural, etc., é preciso lutar a partir da academia para impedir que o livre-mercado e a economia se transformem na principal razão de ser da universidade, da pesquisa e do ensino. O academicismo excessivo, clássico ou pós-moderno, está prejudicando gravemente a universidade e as perspectivas de futuro, mais ainda é prejudicada a história e outras ciências humanas e sociais que necessitam como o ar que respiramos da razão de Estado, do apoio da sociedade civil que o financia, em última instância, para viver e renascer.

6. Ainda sobre o ponto manifesto na questão anterior, o senhor acha que uma possível solução para estas gerações de futuros historiadores passaria pela regulamentação do ofício de historiador pelo Estado? O que o senhor acha da idéia de se criar um Conselho de Historiadores, aos moldes dos conselhos de medicina, onde o ofício de historiador fosse regulado por regras elaboradas pelos próprios profissionais da área onde, por exemplo, fosse estipulado uma quantidade mínima de horas de aula, debatidas as questões salariais, éticas e etc?

No nosso segundo macrocongresso de 1999 uma colega propôs, precisamente, a criação em Espanha de um “colégio oficial de historiadores pesquisadores”. Essa iniciativa não obteve ressonância, talvez porque não se veja utilidade ou porque outras associações já cumpram, ou tentem cumprir, essa função. É o caso dos sindicatos ou das associações de professores das diferentes áreas universitárias de conhecimento histórico. Na universidade espanhola, os professores estamos, desde a transição, majoritariamente enquadrados nos “sindicatos de classe” (Comisiones Obreras, Unión General de los Trabajadores, etc.), o que é em princípio útil para reivindicar e negociar coletivamente questões salariais e trabalhistas junto com o resto do professorado universitário. Também são importantes as sociedades ou associações de historiadores medievalistas, modernistas, contemporaneístas, da educação, etc., se bem podem estas inclinar-se ao gremialismo, inclusive a certo “imperialismo” (presente, há tempos, na área de História Contemporânea) que favoreceria a rivalidade entre historiadores, num momento muito sensível para a história e para as humanidades.
Este perigo corporativo que sempre ameaça o associacionismo profissional pode enfraquecer essa idéia de um colégio de historiadores que propões, ainda que tudo dependeria da orientação que lhe fosse dada. Na Bolívia existe, por exemplo, um Colegio de Historiadores conectado com a Universidade, com o qual HaD possui boas relações precisamente pelas suas posições abertas… No Brasil vocês já têm, por outro lado, a Associação Nacional de História, com uma importante implantação regional, fruto de quatro décadas de atividade, a participação de professores das diferentes áreas e especialidades e uma dupla orientação de organização de simpósios (nacionais e regionais) e uma interlocução reivindicativa com o Governo em temas de história, educação e universidade. Não é pouco. Talvez o futuro da ANPUH dependa da sua capacidade para resolver o problema comum das historiografias nacionais na era global: o desinteresse quanto às relações exteriores, o reduzido e secundarizado uso da rede de redes. No mesmo estágio está a American Historical Association, apesar das suas virtudes federativas e integradoras em direção ao interior dos Estados Unidos. Na Europa a situação talvez seja pior, ou melhor, conforme o ponto de vista, pois o associacionismo dos historiadores, e em geral dos acadêmicos, costuma estar organizado por áreas de especialidades cronológicas ou temáticas, como eu já disse.
Como se poderá perceber facilmente, estamos contra à idéia de que seja o Estado o responsável por regular unilateralmente as regras trabalhistas e profissionais do nosso ofício, e menos ainda se o vem a fazer em conluio com as “oligarquias” de raiz corporativa e/ou política que existem em todas as disciplinas acadêmicas e atividades profissionais. Disciplinas e atividades precisam para o seu bom funcionamento de contrapesos democráticos, para dentro e para fora, fluídas relações horizontais e transversais, o que hoje é possível, além de necessário, com Internet, nem preciso repetir.
Na origem de HaD pensou-se, decerto, na idéia de criar uma associação de colegas interessados pela historiografia e por temáticas afins, mas felizmente não seguimos esta direção. Optamos rapidamente por um novo tipo de associacionismo acadêmico através da Internet que permitisse a mais de 6.000 historiadores, pesquisadores, professores e estudantes de história, estarmos em contato diariamente, dentro ou fora de cada historiografia nacional, para debater sem hierarquias institucionais nem (auto) censuras prévias sobre o ofício, com o fim de favorecer, na universidade e na sociedade, a melhor escritura da história para o Século XXI.
Associacionismo digital não implica, no nosso caso, a renúncia a importantes atividades presenciais como são os nossos macrocongressos em Compostela a cada cinco ou seis anos. No caso das novas sociedades de historiadores aconselhamos, em conclusão, valer-se preferencialmente da Internet sempre em combinação com outras formas de intercâmbios mais convencionais (e mais caros). Se quisermos ir preparando a nossa disciplina para o futuro que vem, será que não devemos ir transformando e democratizando as formas de organização profissional?

7. O Historia a Debate tem devotado, especialmente em sua última edição, uma especial importância aos processos de luta e negociação nas esferas institucionais, entre sociedade civil e Estado. Ou seja, como os grupos se constituem institucionalmente em Organizações Não-Governamentais, mobilizados pela política de identidades e pelo multiculturalismo atuais, produzindo ações públicas e políticas de afirmação. Reconcilia-se, dessa forma, o cultural, o político e o econômico. No entanto, como é possível pensar uma ação institucionalizada, a partir de grupos identitários organizados (naturalmente, identidades outras que não as de hoje, mas sim construídas historicamente, não havendo assumidamente nenhum sentido em falar de consciência negra na escravidão moderna ou de perseguição aos homossexuais enquanto tais na prática inquisitorial) para formações históricas que não conheceram a sociedade civil hegeliana e contemporânea?

Certamente que um dos efeitos benéficos da integração não “colonial” dos historiadores latino-americanos na nossa nova historiografia global é a aceitação crescente, entre os historiadores do chamado “primeiro mundo”, dos novos movimentos indígenas como uma dimensão fundamental, histórica e historiográfica, da sociedade civil, global e emergente, e teve como conseqüência a sua presença no programa das seções e mesas do nosso III Congresso: “Estado e sociedade civil na história”, “Retorno da sociedade civil”, “Povos indígenas, historiografia e atualidade”.
A auto-identificação como “sociedade civil” dos novos movimentos sociais no México e em outros países latino-americanos, e do próprio movimento “antiglobalização”, cuja origem remota nos conduziu ao 1.º de Janeiro de 1994 em Chiapas, nos atirou no caminho da última evolução desse velho conceito hegeliano, desenvolvido depois pelo marxismo de maneira irreversível. A relativa confusão de Hegel entre sociedade civil e sociedade política (Estado) se aclarou posteriormente com Marx, a partir de A ideologia alemã; a relação dialética entre ambas “sociedades” foi afinada por Gramsci nos seus Cadernos da prisão. O mais importante para nós é, portanto, a “apropriação” atual étnico-identitária e global, por parte dos novos movimentos sociais do Século XXI, deste quase esquecido conceito de filosofia, de história e de ciências sociais.
Em HaD partimos da base de que, para estar atualizados cientificamente, é imprescindível praticar uma história e uma historiografia do imediato, impregnarmo-nos de tudo o que acontece à nossa volta, assim como evitar apagar da memória historiográfica as revolucionárias contribuições das ciências humanas e sociais do século passado, perante a história tradicional, por muito que exijam agora um severo balanço (auto) crítico. A partir desta dupla ótica combinaria, somente para levar a debate, uma afirmação e uma pergunta que você faz na sua pergunta sobre a sociedade civil hegeliana: 1) Seria na minha opinião errôneo –e injusto– localizar as ONGs num âmbito institucional, político e estatal, pois as mais importantes fazem parte da nova sociedade civil, nacional e internacionalmente, teórica e praticamente. 2) Os “grupos identitários organizados” na América Latina (inclusive no Brasil) são obviamente mais que “grupos”, são verdadeiros e potentes movimentos sociais e parte importante de algumas sociedades civis nacionais (neste momento: Bolívia e Equador) com crescente influência sobre a sociedade política. Movimentos comunitários de prolongada ação histórica que sobreviveram, nas épocas colonial e contemporânea, como sociedade civil em resistência e que têm, por conseguinte, uma prolongada memória histórica que evocar e que recuperar, com a nossa ajuda, incluindo os vastos Estados e civilizações destruídos pelas conquistas e colonizações européias.
Porém não queria terminar esta resposta escrita à pergunta 7 da sua revista Cantareira sem lhes dar os parabéns por esses “processos de luta e negociação nas esferas institucionais, entre sociedade civil e Estado” que, segundo dizes, existem no Brasil de Lula, porque em outros países ibero-americanos as instituições políticas e o Estado estão mais é fechados à sociedade civil. E tampouco acreditem que na Europa as coisas estão maravilhosamente bem, percebam por exemplo os resultados dos referendos sobre o tratado constitucional europeu em França e Holanda, onde houve verdadeiras “insurreições eleitorais” da sociedade civil contra uma sociedade política, nacional e européia, que subordinava mais do que deveria –na opinião da maioria dos eleitores– a Europa social e cultural à Europa dos comerciantes, o que vaticina também, se esta orientação não mudar, o surgimento de um rosário de conflitos com as universidades no processo de unificação da educação superior em toda Europa (Declaração de Bolonha).

8. O novo paradigma pensado pelo movimento Historia a Debate é, sobretudo, digital. Segundo artigo recente do senhor, tal significa dizer que as inovações da tecnologia informacional permitem introduzir a simultaneidade das evidências escritas, orais e visuais, contribuindo para uma reconstrução global do objeto e para a superação das limitações técnicas e epistemológicas que teriam nos impedido de dar conta da realidade histórica em sua globalidade. Entretanto, apesar destes novos e importantes facilitadores, não seria justamente a antiga falta de uma unidade teórica, subjacente à diversificação do campo e ao distanciamento entre as especializações, o principal obstáculo para a construção de um novo consenso historiográfico comprometido com as bases de uma história total? De que forma o movimento Historia a Debate pode efetivamente contribuir para superar as diversas concepções acerca do que seja em essência a História, cuja função social se perdeu nas sucessivas fragmentações de nosso objeto e nos discursos auto-referenciais?

Vocês perceberam muito bem o nosso diagnóstico sobre a situação da história, a necessidade de um novo paradigma (consenso disciplinar segundo Kuhn) e a possibilidade que nos oferecem as novas tecnologias para lograr uma história e uma historiografia mais globais.
O obstáculo principal para o avanço do ofício da história no novo século está, sem dúvida, na galopante fragmentação das áreas e das especialidades, os temas, os métodos e os enfoques, o que coloca objetivamente a história acadêmica à margem dos tempos globais que vivemos, signo evidente de decadência.
O maior desafio historiográfico do Século XXI é substituir com vantagem a hegemonia conjunta e plural nos passados anos 60 e 70, na Europa e América Latina, das tendências dos Annales, materialismo histórico e neopositivismo (história quantitativa), por um novo consenso / paradigma que responda aos desafios históricos e historiográficos da mudança de século. Tanto na sua prática como na sua teoria Historia a Debate é já uma conseqüência (relativa) deste novo paradigma em construção. Em doze anos de trabalho conjunto euro-americano conseguimos –novamente graças à Internet– deixar atrás numa medida insuficiente mas significativa a fragmentação disciplinar, voltar a sentir o ofício como algo coletivo, debatendo e obtendo consensos, refletindo e pesquisando juntos sobre uma temática de interesse comum de vanguardas historiográficas de ontem, de hoje e de sempre: metodologia, historiografia, teoria, academia / sociedade, atualidade.
Queremos aplicar em maior medida este avançado processo de reconstrução historiográfica sobre o terreno da pesquisa histórica “concreta”, experimentando com uma “história mista” –também multimídia– e outros enfoques globais. Pretendemos também incrementar a participação de âmbitos acadêmicos não hispânicos, anglófonos e francófonos, mas não só, importantes em todas as nossas atividades congressuais, desde o princípio de HaD, embora insuficientemente representativos e ativos na nossa rede acadêmica digital por questões idiomáticas e de outro tipo. Contamos com vocês.

9. A utilização da Internet e outras mídias como forma de acesso inovadora à produção historiográfica, em toda sua diversidade, e às diferentes fontes de construção do conhecimento histórico desde o início da educação escolar seria uma maneira de formar um público novo, ou até de aproximar um possível público já existente, para uma produção científico-intelectual que tende a ser mais voltada para a academia? Até que ponto e de que forma a utilização de novas mídias pode aproximar a academia da sociedade como um todo?

O novo paradigma digital das comunicações está permitindo deixar para trás o academismo no que recaiu a geração de 68 a partir dos anos 80. Academicismo historiográfico de raízes tradicionais, ainda que se diga pós-moderno, responsável do conservadorismo historiográfico de não poucos dos nossos jovens estudantes e graduados de história. Os efeitos nocivos deste retorno ao academicismo, que é como dizer do individualismo e da dissociação do social, se retroalimentam, e por isso haveremos de superá-los a tempo. De nada vale, pois, o uso individual ou em pequenos grupos das novas tecnologias da comunicação “para fora” se não formos capazes de incidir na nossa disciplina “para dentro” para retirar da minoridade ou da marginalidade o manejo dos atuais meios. Voltar a conectar com a sociedade e as instituições está permitindo já a revitalização de setores importantes da história acadêmica, aqui e ali, cujo contato com o “exterior” é bilateral, estão predispostos a aprender, não somente a ensinar, reduzindo assim a componente elitista que sempre teve a universidade, hoje especialmente perigosa para umas ciências humanas e sociais que não podem avançar sem o cordão umbilical com a sociedade.
Dito de outro modo, apesar de ser importante, a conexão digital não é suficiente, inclusive é completamente insuficiente para restabelecer relações fluídas do ofício de historiador com a sociedade “como um todo”, toda vez que o desigual desenvolvimento da Internet implicar um novo tipo de separação entre a academia e a sociedade. A Internet nasceu nas universidades que têm, e sempre terão, melhores condições de acesso que o resto da sociedade. A falha digital e social agrava-se, como é sabido, em países da América, África e Ásia, onde amplos setores da população não possuem ainda satisfeitas as suas necessidades econômico-sociais e nem os direitos humanos mais elementares. Por este e por outros motivos, estamos obrigados a combinar os novos e os velhos modos de comunicação social a fim de restaurar o vínculo natural entre historiografia, sociedade e política. Na realidade, o novo paradigma (consenso) que HaD propõe e pratica quanto à sociabilidade historiográfica reside na mescla do digital com o convencional (viagens de intercâmbio, apresentações, congressos a cada cinco ou seis anos), sempre dentro do que é a nossa dedicação prioritária a auto-reflexão, a investigação e a discussão sobre o método, a historiografia e a teoria: dirigimos o nosso esforço ao interior da disciplina com o objeto de projetar “extramuros” uma escritura, uma divulgação e ensino da história mais adequadas nos seus enfoques e compromissos coletivos com as necessidades presentes.
A inovação (tecnológica) e o compromisso (interior e exterior) devem seguir juntos se queremos de verdade uma nova historiografia para uma nova sociedade da informação que incorpore os últimos sujeitos históricos. É um erro crasso pensar simplesmente que o digital é o “futuro” e o compromisso da universidade com a sociedade civil é o “passado”, porque os mais recentes agentes acadêmicos e sociais estão retornando, na prática e na teoria, utilizando intensivamente a rede, a velha idéia contemporânea do compromisso intelectual (nascida em França em 1898 com o J’accuse de Émile Zola) com novos modos e conteúdos, baseados na diversidade, na pluralidade e nos grandes “valores universais de educação e saúde, justiça e igualdade, paz e democracia” (ponto XVI do nosso Manifesto historiográfico) que a globalização está, paradoxalmente, promovendo como nunca na história.
Historia a Debate é, neste sentido, um laboratório de experimentação que já deu bons resultados conectando criativamente universidade com sociedade, história com atualidade, preparando a comunidade internacional de historiadores para a história, o mundo e a universidade que vêm, demonstrando pelo caminho dos fatos, em suma, que “outra história é possível”.

10. Devido a grande importância atribuída pelo Historia a Debate ao papel da Internet para a produção historiográfica do século XXI, seja como meio de democratização de reflexões sobre a escrita da História, em contraponto ao "colonialismo" de centros tradicionais de produção, seja como forma de romper as amarras impostas pelas exigências do mercado editorial, instituições políticas e grandes meios de comunicação, gostaríamos que o senhor citasse e comentasse exemplos de trabalhos, ou projetos em andamento, que têm utilizado a Internet dentro dessas características.

Infelizmente não conhecemos outro exemplo como Historia a Debate que congregue assim historiografia e Internet, que pesquise, reflita e debata na rede o imediato com o objetivo de construir uma nova alternativa historiográfica. Faltam esforços homólogos, o que limita as nossas alianças a aspectos parciais ao mesmo tempo em que explica que a nossa expansão acadêmica não tenha ainda tocado no seu teto. Paralelamente à nossa experiência latina constituíram-se ou reconstituíram-se, no âmbito anglo-saxão, interessantes páginas web e listas de discussão de história (o servidor de listas H-Net, por exemplo, se bem não é ele mais do que uma página de serviços), os tradicionais congressos mundiais de história (organizados pelo International Committee of Historical Sciences, não costumam tratar a temática historiográfica e utilizam Internet de forma secundária), redes digitais de historiadores politicamente comprometidos (a mais recente Historians Against the War, embora não lute de maneira explícita por uma mudança global de paradigmas na nossa disciplina), revistas dedicadas à teoria histórica e à metodologia (um exemplo clássico é History and Theory, se bem usa subsidiariamente a Internet e não possui um programa claro e integrador de alternativa historiográfica).
A semelhança parcial de cada um destes projetos com HaD, todos com influência e origem norte-americanos (salvo o CISH-ICHS) e desenvolvidos também na última década, confirma o caráter universal e sintético da nossa aposta acadêmica, as possibilidades inéditas que são oferecidas ao mundo acadêmico latino e à superioridade da nossa estratégia historiográfica de síntese de futuro entre (A) o melhor da experiência, em organização e em conteúdos, das vanguardas historiográficas do século passado, e (B) as novas tecnologias da comunicação acadêmica e social. Desconhecemos em outras disciplinas, seja humanidades seja ciências sociais, um exemplo tão claro e organizado como o nosso, de paradigma disciplinar misto e global nos âmbitos (local / nacional / mundial), nos meios (digital / presencial) e nos conteúdos (histórico / historiográfico, passado / presente, debate / consenso, inovação / compromisso).
Alentamos, portanto, os colegas interessados a acompanhar o nosso trabalho, a seguir conosco, dentro e fora do âmbito acadêmico latino, dentro e fora da história como disciplina, completando com novas dimensões as experiências isoladas de sucesso nos campos da Internet e das ciências humanas, para as quais é preciso desprender-se definitiva e claramente dos anacrônicos resíduos da mentalidade “dependente” ou “colonial” imperante durante décadas nas nossas relações internacionais acadêmicas. A Internet já está sendo um lugar de encontro multilateral das melhores experiências internacionais da historiografia e das ciências sociais. Pode-se dizer que o novo academicamente se não está na rede é porque não é realmente novo. Aproveitemos, pois, a possibilidade democratizadora implicada pela rede de redes para mudar juntos a face da nossa profissão no mundo através de alianças historiográficas, intra e inter disciplinares, cimentadas no respeito mútuo, no debate e no consenso, sabendo que com isso contribuímos a um mundo melhor para todos.
Como você bem sugere na sua pergunta, a nova sociabilidade digital torna possível, na medida em que sigamos além da oferta acadêmica de novos serviços e lugares para publicar, uma democratização da historiografia e da academia assim como a recuperação da autonomia dos historiadores relativamente à influência –fragmentadora e às vezes inclusive mercenária– dos poderes políticos, dos meios de comunicação social, das grandes editoras. Haveremos de refletir mais sobre isso e de experimentar tudo, também a partir do Brasil. Estão todos convidados, vamos lá, e muito obrigado.

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