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entrevista com Carlos Barros |
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HaD nasceu em 1993 em torno ao I Congreso Internacional Historia a Debate, então celebrado em Santiago de Compostela, no mesmo lugar em que o foram os seguintes. Reunimos na época, entre outros, tudo que restava das escolas dos Annales e de Past and Present, com a idéia de fazer um balanço e lançar algumas perspectivas, após a “grande crise”, sobre questões cruciais de metodologia, historiografia e teoria da história. Esta temática, ampliamos nas edições posteriores alcançando relações da história com a sociedade, ensino da história, História Imediata, problemas de campo de trabalho para os historiadores, etc. Em 1999 houve um salto qualitativo no nosso movimento acadêmico quando ele aterrissou na Internet por ocasião dos preparativos do nosso II Congresso. Foi criada uma web, www.h-debate.com, a qual recebeu 1.576.739 visitas de colegas, além de duas listas de correio eletrônico, HaD e HI, que reúnem neste momento cerca de 3.000 historiadores cadastrados para receber mensagens diárias. Este é um fenômeno excepcional, portanto, desta nova sociabilidade acadêmica, cujo resultado demonstra a percepção da mudança de estratégia de HaD, migrando do eurocentrismo ao novo paradigma global, promovendo uma “reviravolta latina” na historiografia mundial. O I Congresso nos ensinou (ver “La historia que viene” em www.cbarros.com) o imperativo de pensar a história por nós mesmos, sem mimetismos, orientando-nos em busca do futuro da historiografia, construindo alternativas sem que nos afastemos das nossas raízes nacionais, continentais e intercontinentais: procurando, da Europa, os nossos primeiros aliados acadêmicos no mundo ibero-americano. Esta estratégia tornou-se mais visível e autônoma no II Congresso, consolidando-se no III Congresso, em Julho de 2004, que sem dúvida foi o melhor de todos os que realizamos, porque situa com mais limpidez num primeiro plano a reconstrução de um novo consenso (paradigma) historiográfico internacional. É um processo inacabado de reformulação historiográfica que, sem fazer tabula rasa do materialismo histórico, Annales ou do neopositivismo historiográfico, reconhece sem pejo os seus (nossos) erros, incapacidades e fracassos, ao mesmo tempo em que busca coletivamente, em permanente debate, respostas às novas perguntas, ou seja, uma nova forma de escrever a história que responda aos desafios da historiografia e da história depois da crise das “grandes escolas” e das subseqüentes “quedas” do Muro de Berlim e das Torres Gêmeas. Neste sentido, surge como fenômeno fundamental o Manifesto historiográfico de HaD, levado à rede no dia 11 de Setembro de 2001, firmado até o momento por 397 historiadores de 35 países, e cuja revisão coletiva virá com a edição das Atas do III Congresso. 2. O Manifesto de Historia a Debate, ao tratar de uma "Nova erudição", diz ser a favor "de uma nova erudição que amplie conceito de fonte histórica para além da documentação oficial, alcançando (...) as 'não-fontes', como os silêncios, erros e lacunas, que o historiador e a historiadora terão que valorizar". No entanto, uma crítica que se faz ao pós-modernismo é justamente à suposição de que a atenção dada às lacunas e silêncios na documentação levaria a um tamanho grau de subjetividade e imaginação no trabalho do historiador que colocaria em risco o rigor acadêmico da pesquisa. Na sua opinião, como é possível ao historiador utilizar estas "não-fontes" sem recorrer a um extremado subjetivismo? Tenho uma proposta para modificar o título do
ponto II, “Nova erudição”, do Manifesto, na
sua próxima revisão, dado que existe uma contradictio in
terminis, sendo necessário ainda adequar melhor este item sobre
as fontes à nossa redefinição da história
no ponto I como “ciência com sujeito” (sujeito num duplo
sentido: atores históricos e historiadores). A subjetividade das
fontes, tanto social como mental, já foi “descoberta”
há décadas pelas “novas histórias” da
história francesa das mentalidades (Annales foi criada em 1929,
e a sua história das mentalidades difundida nos anos 60 e 70),
e pela história social anglo-saxônica (Past and Present foi
criada em 1952, e a sua antropologia histórica das lutas sociais
difundida nos anos 70 e 80). É portanto uma “velha”
descoberta historiográfica isso de que as lacunas, os silêncios
e os imaginários constituem parte fundamental da subjetividade
humana presente em todo tipo de fontes e na ação histórica
dos diversos sujeitos, e não tem nada que ver, ao menos historiograficamente,
com a influência do pós-modernismo. Isso é inexato,
injusto e normalmente não é nada inocente rebatizar como
pós-moderno a tudo aquilo que pareça novo e, sobretudo,
a tudo aquilo que foi novo décadas atrás. 3. A interdisciplinaridade é uma realidade nos estudos históricos recentes, no entanto, há ainda alguma reticência da parte de alguns historiadores quanto ao diálogo da história com certas disciplinas, por exemplo, a literatura; por outro lado, o Manifesto propõe ainda o intercâmbio com as ciências da natureza, além de disciplinas emergentes que tratam das novas tecnologias. Esta proposta interdisciplinar com áreas tão diferentes não implicaria em uma maior fragmentação, ou mesmo pulverização, dos estudos históricos neste novo século? É isso mesmo. Temos sobre este tema uma
prolongada experiência, boa e má. A interdisciplinaridade
promovida com eficácia no Século XX pelos Annales e por
outras correntes historiográficas, produziu muita renovação
mas também foi o começo da desmedida fragmentação
disciplinar que hoje padecemos. Por isso no ponto IV do Manifesto optamos
por uma “nova interdisciplinaridade” direcionada ao interior
da história com o objetivo de comunicar “o vasto arquipélago
em que se converteu a nossa disciplina nas últimas décadas”,
estabelecendo para isso múltiplas “pontes” entre as
diferentes especialidades históricas por meio de uma “história
mista” e outras metodologias do global. Historia a Debate conseguiu, na sua primeira década
de trabalho, organizar uma comunidade acadêmica de um novo tipo
baseada no “intercâmbio igual”, no debate e no consenso,
entre milhares de historiadores e professores de história de centenas
de universidades dos dois lados do Atlântico, incluídas algumas
brasileiras. Não nos consideramos “subdesenvolvidos”,
ao contrário, e menos ainda consideramos o Brasil como um país
academicamente “subdesenvolvido” que os historiadores europeus
devam “recolonizar”. Somos contrários aos intercâmbios
acadêmicos desiguais, assimétricos, por uma questão
de eficácia: não apenas por razões de ética
acadêmica, cultural e política. O conhecimento novo, também
no campo da historiografia, surge hoje sobretudo pela via da globalidade,
da multilateralidade e da horizontalidade que são permitidas pelas
novas tecnologias da comunicação. O velho sistema centro-periferia
do Século XX não serve no novo século: os focos de
inovação historiográfica situados nos países
“desenvolvidos”, unilaterais e verticais, estão esgotados
há muito anos. O eurocentrismo está morto e as velhas dependências
acadêmicas também. Ao menos em ambientes academicamente avançados,
o que conta agora é a interdependência global. Periferias
do Século XX podem ser centros de novo tipo (não “coloniais”)
no Século XXI. Assim ocorre com Espanha e América Latina
no tocante ao fórum-tendência de HaD, assim ocorre com o
Brasil no referido aos foros sociais da globalização alternativa
(Porto Alegre); outro exemplo está sendo oferecido por Lula, pelo
seu governo, ao promover uma nova aliança política com outros
governos latinos, americanos e europeus (Espanha). 5. O Manifesto diz na parte dedicada à Sociedade: "Os efeitos mais notórios das políticas públicas de desvalorização social da história são a falta de saídas profissionais, o decréscimo de vocações e os obstáculos à continuidade geracional. As comunidades de historiadores devem tomar como seus os problemas trabalhistas dos jovens que estudam e querem ser historiadores, cooperando na busca de soluções que passam pela revalorização do ofício de historiador e de suas condições de trabalho e vida". Aqui no Brasil, com a expansão das instituições de ensino superior, são atualmente milhares os jovens que saem todos os anos das faculdades para ingressar no mercado de trabalho, cuja demanda não corresponde ao número dos recém-formados. Como tem sido conduzida nos congressos a questão da necessidade de articular a preocupação com a formação acadêmica de futuros historiadores e a cada vez mais difícil entrada desses no mercado de trabalho? Resolver esse problema através da abertura de novas possibilidades de atuação profissional do historiador não seria uma maneira de alargar sua participação social e revalorizar sua função ético-social? Fico satisfeito de que a tradução ao português realizada pelo professor Vinci de Morais do Manifesto tenha servido, e vá ser publicada pela primeira vez no seu país na revista amiga Intellectus. Com efeito, preocupa-nos muito como rede, fórum e movimento historiográfico formado majoritariamente por docentes universitários que os nossos alunos não possam trabalhar naquilo para o que foram formados. Concordamos em que haverá que buscar novas possibilidades de atuação profissional. O problema é não cair numa dependência excessiva do mercado, que é o que está gerando precisamente a falta de trabalho dos nossos recém-formados, seria como botar a raposa para vigiar as galinhas. É preciso estar claro que o mundo da empresa, cujo mecenato cultural haveria de ser incentivado, não vai salvar o futuro da história e das humanidades, mas sim é possível que seja o contrário. O futuro da pesquisa, do ensino e da divulgação da história depende antes de mais nada da nossa capacidade coletiva como acadêmicos para defender a universidade como serviço público e “templo do saber”. É por isso que no item sobre Academia Solidária estamos apoiando, ultimamente, as lutas acadêmicas contra o desaparecimento direta ou indiretamente da história em Nuevo León (México), La Matanza (Argentina) e em Espanha (o possível desaparecimento dos cursos de história da arte e de humanidades). Se queremos que haja mais vagas para historiadores no ensino médio, nos arquivos, nas bibliotecas, nos museus, na gestão e no turismo cultural, etc., é preciso lutar a partir da academia para impedir que o livre-mercado e a economia se transformem na principal razão de ser da universidade, da pesquisa e do ensino. O academicismo excessivo, clássico ou pós-moderno, está prejudicando gravemente a universidade e as perspectivas de futuro, mais ainda é prejudicada a história e outras ciências humanas e sociais que necessitam como o ar que respiramos da razão de Estado, do apoio da sociedade civil que o financia, em última instância, para viver e renascer. 6. Ainda sobre o ponto manifesto na questão anterior, o senhor acha que uma possível solução para estas gerações de futuros historiadores passaria pela regulamentação do ofício de historiador pelo Estado? O que o senhor acha da idéia de se criar um Conselho de Historiadores, aos moldes dos conselhos de medicina, onde o ofício de historiador fosse regulado por regras elaboradas pelos próprios profissionais da área onde, por exemplo, fosse estipulado uma quantidade mínima de horas de aula, debatidas as questões salariais, éticas e etc? No nosso segundo macrocongresso de 1999 uma colega propôs,
precisamente, a criação em Espanha de um “colégio
oficial de historiadores pesquisadores”. Essa iniciativa não
obteve ressonância, talvez porque não se veja utilidade ou
porque outras associações já cumpram, ou tentem cumprir,
essa função. É o caso dos sindicatos ou das associações
de professores das diferentes áreas universitárias de conhecimento
histórico. Na universidade espanhola, os professores estamos, desde
a transição, majoritariamente enquadrados nos “sindicatos
de classe” (Comisiones Obreras, Unión General de los Trabajadores,
etc.), o que é em princípio útil para reivindicar
e negociar coletivamente questões salariais e trabalhistas junto
com o resto do professorado universitário. Também são
importantes as sociedades ou associações de historiadores
medievalistas, modernistas, contemporaneístas, da educação,
etc., se bem podem estas inclinar-se ao gremialismo, inclusive a certo
“imperialismo” (presente, há tempos, na área
de História Contemporânea) que favoreceria a rivalidade entre
historiadores, num momento muito sensível para a história
e para as humanidades. 7. O Historia a Debate tem devotado, especialmente em sua última edição, uma especial importância aos processos de luta e negociação nas esferas institucionais, entre sociedade civil e Estado. Ou seja, como os grupos se constituem institucionalmente em Organizações Não-Governamentais, mobilizados pela política de identidades e pelo multiculturalismo atuais, produzindo ações públicas e políticas de afirmação. Reconcilia-se, dessa forma, o cultural, o político e o econômico. No entanto, como é possível pensar uma ação institucionalizada, a partir de grupos identitários organizados (naturalmente, identidades outras que não as de hoje, mas sim construídas historicamente, não havendo assumidamente nenhum sentido em falar de consciência negra na escravidão moderna ou de perseguição aos homossexuais enquanto tais na prática inquisitorial) para formações históricas que não conheceram a sociedade civil hegeliana e contemporânea? Certamente que um dos efeitos benéficos da integração
não “colonial” dos historiadores latino-americanos
na nossa nova historiografia global é a aceitação
crescente, entre os historiadores do chamado “primeiro mundo”,
dos novos movimentos indígenas como uma dimensão fundamental,
histórica e historiográfica, da sociedade civil, global
e emergente, e teve como conseqüência a sua presença
no programa das seções e mesas do nosso III Congresso: “Estado
e sociedade civil na história”, “Retorno da sociedade
civil”, “Povos indígenas, historiografia e atualidade”. 8. O novo paradigma pensado pelo movimento Historia a Debate é, sobretudo, digital. Segundo artigo recente do senhor, tal significa dizer que as inovações da tecnologia informacional permitem introduzir a simultaneidade das evidências escritas, orais e visuais, contribuindo para uma reconstrução global do objeto e para a superação das limitações técnicas e epistemológicas que teriam nos impedido de dar conta da realidade histórica em sua globalidade. Entretanto, apesar destes novos e importantes facilitadores, não seria justamente a antiga falta de uma unidade teórica, subjacente à diversificação do campo e ao distanciamento entre as especializações, o principal obstáculo para a construção de um novo consenso historiográfico comprometido com as bases de uma história total? De que forma o movimento Historia a Debate pode efetivamente contribuir para superar as diversas concepções acerca do que seja em essência a História, cuja função social se perdeu nas sucessivas fragmentações de nosso objeto e nos discursos auto-referenciais? Vocês perceberam muito bem o nosso diagnóstico
sobre a situação da história, a necessidade de um
novo paradigma (consenso disciplinar segundo Kuhn) e a possibilidade que
nos oferecem as novas tecnologias para lograr uma história e uma
historiografia mais globais. 9. A utilização da Internet e outras mídias como forma de acesso inovadora à produção historiográfica, em toda sua diversidade, e às diferentes fontes de construção do conhecimento histórico desde o início da educação escolar seria uma maneira de formar um público novo, ou até de aproximar um possível público já existente, para uma produção científico-intelectual que tende a ser mais voltada para a academia? Até que ponto e de que forma a utilização de novas mídias pode aproximar a academia da sociedade como um todo? O novo paradigma digital das comunicações
está permitindo deixar para trás o academismo no que recaiu
a geração de 68 a partir dos anos 80. Academicismo historiográfico
de raízes tradicionais, ainda que se diga pós-moderno, responsável
do conservadorismo historiográfico de não poucos dos nossos
jovens estudantes e graduados de história. Os efeitos nocivos deste
retorno ao academicismo, que é como dizer do individualismo e da
dissociação do social, se retroalimentam, e por isso haveremos
de superá-los a tempo. De nada vale, pois, o uso individual ou
em pequenos grupos das novas tecnologias da comunicação
“para fora” se não formos capazes de incidir na nossa
disciplina “para dentro” para retirar da minoridade ou da
marginalidade o manejo dos atuais meios. Voltar a conectar com a sociedade
e as instituições está permitindo já a revitalização
de setores importantes da história acadêmica, aqui e ali,
cujo contato com o “exterior” é bilateral, estão
predispostos a aprender, não somente a ensinar, reduzindo assim
a componente elitista que sempre teve a universidade, hoje especialmente
perigosa para umas ciências humanas e sociais que não podem
avançar sem o cordão umbilical com a sociedade. 10. Devido a grande importância atribuída pelo Historia a Debate ao papel da Internet para a produção historiográfica do século XXI, seja como meio de democratização de reflexões sobre a escrita da História, em contraponto ao "colonialismo" de centros tradicionais de produção, seja como forma de romper as amarras impostas pelas exigências do mercado editorial, instituições políticas e grandes meios de comunicação, gostaríamos que o senhor citasse e comentasse exemplos de trabalhos, ou projetos em andamento, que têm utilizado a Internet dentro dessas características. Infelizmente não conhecemos outro exemplo como
Historia a Debate que congregue assim historiografia e Internet, que pesquise,
reflita e debata na rede o imediato com o objetivo de construir uma nova
alternativa historiográfica. Faltam esforços homólogos,
o que limita as nossas alianças a aspectos parciais ao mesmo tempo
em que explica que a nossa expansão acadêmica não
tenha ainda tocado no seu teto. Paralelamente à nossa experiência
latina constituíram-se ou reconstituíram-se, no âmbito
anglo-saxão, interessantes páginas web e listas de discussão
de história (o servidor de listas H-Net, por exemplo, se bem não
é ele mais do que uma página de serviços), os tradicionais
congressos mundiais de história (organizados pelo International
Committee of Historical Sciences, não costumam tratar a temática
historiográfica e utilizam Internet de forma secundária),
redes digitais de historiadores politicamente comprometidos (a mais recente
Historians Against the War, embora não lute de maneira explícita
por uma mudança global de paradigmas na nossa disciplina), revistas
dedicadas à teoria histórica e à metodologia (um
exemplo clássico é History and Theory, se bem usa subsidiariamente
a Internet e não possui um programa claro e integrador de alternativa
historiográfica). |
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