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O conceito de cultura em Raymond Williams e Edward P. Thompson: breve apresentação das idéias de materialismo cultural e experiência

por Raquel Sousa Lima


O artigo tem como objetivo principal fazer uma breve discussão teórica sobre o conceito de cultura, presente no pensamento de Edward P. Thompson e Raymond Williams, expoentes intelectuais do movimento britânico chamado de Nova Esquerda.

O termo cultura suscita muitas interpretações. O velho e reconhecido dicionário Aurélio assim o define:

1. Ato, efeito ou modo de cultivar. 2. Cultivo. 3. O complexo dos padrões de comportamento, das crenças, das instituições e doutros valores espirituais e materiais transmitidos coletivamente e característicos de uma sociedade: civilização. 4. O desenvolvimento de um grupo social, uma nação, etc., que é fruto do esforço coletivo pelo aprimoramento desses valores; civilização, progresso. 5. Apuro, esmero, elegância. 6. Criação de certos animais, em particular os microscópicos”.[1]

 

Os seis grupos de significados que encontramos para definir o que é cultura nos mostra, de imediato, que o termo varia, sugerindo-nos que todas as acepções nele presentes são aceitas. Assim, cultura significa tanto os valores e padrões de comportamento de uma sociedade (3), como civilização, progresso (4) e, ainda, apuro ou elegância (5). Para um leitor descompromissado, tais significados podem ser facilmente utilizados, desde que aplicados a uma determinada situação que o exija. No entanto, para o historiador, a utilização do termo não pode ser feita dessa maneira, já que a adoção de um ou outro, ou de um e outro significado implica necessariamente a tomada de uma posição acadêmico-política. Assim, não podendo usar indiscriminadamente o conceito de cultura, ao historiador cabe abordá-lo dentro de uma perspectiva histórica, ou seja, considerando os contextos sociais dentro dos quais os termos foram elaborados.

Maria Elisa Cevasco, inspirada em Raymond Williams, concorda que o termo cultura, até o século XVIII, significava uma atividade, a cultura de alguma coisa, em geral animais e produtos agrícolas.[2]  A partir do período final do século XVIII, o termo cultura passou a ser utilizado como correspondente ao termo civilização. Civilização então, era aceita como um estado realizado, originado de civitas (ordenado, educado), em oposição, portanto, ao estado natural da barbárie. Mas este estado realizado também era caracterizado pelo seu desenvolvimento, isto é, um estado civil, civilizado, educado, que teve progresso. Williams afirma que, nesse sentido, os termos cultura e civilização eram intercambiáveis.

No discurso iluminista deste período, formulado na França, e que corroborou teoricamente com as transformações sociais capitalistas, a idéia de civilização era sustentada na crença da razão, que levaria o progresso às sociedades. No entanto, o próprio processo histórico de afirmação do capitalismo questionou esta concepção e, segundo Williams, a crítica a esta idéia surgiu neste mesmo país, com o pensamento de Jacques Rousseau. Além disso, a correlação entre cultura e civilização também sofreria um ataque dos intelectuais alemães, preocupados em defender a tradição nacional contra a civilização cosmopolita proposta pelos iluministas franceses. Com o romantismo alemão, então, cultura ou ‘Kultur’ passaria a se relacionar com valores subjetivos e relativos, voltados para emoções, questões do espírito, em contraposição à idéia de civilização, que pressupunha a adoção de valores universais, voltados sobretudo para o uso da razão, como instrumento para se alcançar o progresso.[3] Enfim, o que estava em jogo era, do lado alemão, a tentativa de resgatar os valores morais, costumes e comportamentos tradicionais dos povos germânicos, na tentativa de se criar a idéia de uma cultura nacional que ajudasse na legitimação de um Estado nacional. Para isso, a idéia de civilização proposta pelos franceses em termos universais, como se fosse aplicável a todas as sociedades européias, precisava ser contestada.

Com isso, no século XIX, o termo cultura passou a ser associado ao processo geral de desenvolvimento “íntimo”, em oposição ao “externo”. Cultura passou a ser ligada às artes, religião, instituições, práticas e valores distintos e às vezes até opostos à civilização e à sociedade.[4] No entanto, a velha idéia de cultura relacionada aos cultivos agrícolas, permaneceu.

Essas concepções de cultura, aliadas à noção de cultura como referente ao erudito, iriam ser preponderantes até meados do século XX. No entanto, a partir desta época, após a “civilização européia” ter passado por duas grandes guerras e, ainda, com o desenvolvimento dos meios de comunicação em massa na década de 1960, não era mais plausível pensar em cultura dessa forma, como se uma só cultura fosse comum a toda a sociedade. Como afirma Cevasco, “nesse momento, a Cultura, com letra maiúscula, é substituída por culturas no plural".[5]

Neste contexto, um grupo de intelectuais marxistas britânicos destacou-se por ter a preocupação de tentar reformular o conceito de cultura, de forma que este novo conceito os ajudasse a entender as transformações culturais pelas quais a Europa passava naquela época e, principalmente, a Inglaterra, que enfrentava uma crise política e econômica. Assim, esses pensadores fundaram uma nova disciplina, que ficou conhecida como “estudos culturais”.

Entre estes intelectuais oriundos de diferentes correntes de esquerda havia um grupo que pertencia ao Partido Comunista da Grã-Bretanha e que, por isso, tinha uma forte orientação marxista. Parte desse grupo saiu do Partido, rompendo com a ortodoxia que vinha da então União Soviética, quando as notícias das atrocidades cometidas pelo governo de Stalin vieram à tona e, sobretudo, quando da invasão soviética da Hungria, em 1956. A partir de então, o alinhamento de alguns pensadores marxistas com o Partido Comunista foi rompido. Fazia-se, pois, necessário rever o pensamento marxista, de forma a pensar novas bases para a transformação social.[6] Assim, alguns destes intelectuais, como Raymond Williams, Edward P. Thompson e Richard Hoggart, saíram do partido e formaram o que ficou conhecido como “Nova Esquerda”.  Este movimento posicionou-se ao mesmo tempo contra o elitismo e o conservadorismo da direita e contra o dogmatismo e o reducionismo da esquerda stalinista.

Estes intelectuais também tinham uma inserção nas universidades tradicionais britânicas, onde passaram a desenvolver projetos de intervenção política na sociedade britânica. Assim, tornaram-se professores da Worker’s Educational Association, uma associação voltada para a educação de trabalhadores. Preocupados com uma educação pública que divulgasse e defendesse os valores da cultura comum desses operários, em oposição aos valores gerais defendidos pela elite, eles se propuseram a repensar o conceito de cultura. Passaram, então, a valorizar a cultura dos “de baixo”.[7]

Tentando reformular o conceito de cultura sem, no entanto, abandonar os princípios de Marx que os orientavam, eles passaram a estudar e a traduzir, além de publicar, vários pensadores marxistas europeus na revista The New Reasoner como, por exemplo, a obra do italiano Antonio Gramsci. O objetivo central era analisar o pensamento teórico marxista, tentando rever a questão do economicismo, de forma a incluir neste pensamento a preocupação com a questão da cultura.

Destes estudos, destacamos alguns, sobre os quais discutiremos, de forma sintética, o conceito de cultura: a obra Marxismo e Literatura (1979), de Raymond Williams, e as obras de Edward P. Thompson, entre elas A formação da classe operária inglesa (1987), A miséria da teoria (1981), Costumes em Comum (1998) e A peculiaridade dos ingleses e outros artigos (2001).

 

Raymond Williams (1921-1998) e a elaboração de uma teoria materialista da cultura

         Raymond Williams, apesar de sua origem familiar operária, se formou em Inglês pela Universidade de Cambridge. Foi crítico literário e professor de várias disciplinas de Língua e Literatura nas universidades de Oxford e Cambridge, além de ter trabalhado no projeto de educação de operários. Na obra tomada aqui para análise, ele afirma que seu propósito é levantar uma crítica e uma argumentação, referentes às relações entre Marxismo e Literatura. Essa crítica se fez a partir de seu envolvimento com a Nova Esquerda e do seu contato com o pensamento de Bertold Brecht e George Lukács.

         Preocupado principalmente com a questão do estabelecimento de uma teoria literária marxista, Williams partiu dos conceitos da teoria cultural marxista, como era entendida em sua época. No entanto, fez uma revisão desse conceito e se afirmou não como marxista, mas sim como um teórico do materialismo cultural que, segundo ele, era “uma teoria das especificidades da produção cultural e literária material, dentro do materialismo histórico”.[8]

         Na tentativa de definir o que é cultura, o autor apontou a complexidade em se fixar um determinado conceito, sem antes colocá-lo num contexto histórico específico. Sobretudo no que se refere à cultura, a dificuldade seria maior ainda, dada a amplitude do seu alcance. Assim, tentando marcar a formação histórica do conceito de cultura, tirando-lhe o caráter de ‘entidade percebida’, dada puramente, Williams recuperou a trajetória do termo que, até o século XVI era associado à idéia de cultivar alguma coisa (animais, colheitas, mentes, etc). Ele afirmou que, a partir do século XVIII, seu significado se ampliou, passando a significar também conhecimento erudito, relacionado ao desenvolvimento e progresso sociais. Essa mudança pode ser mais bem percebida se associada às transformações econômicas e sociais pelas quais a Europa passava. Naquele contexto, à idéia de cultura juntou-se a de civilização, fruto do pensamento iluminista francês. Porém, a partir principalmente do século XIX, a relação entre as idéias de cultura e civilização foi questionada, já que uma não levava necessariamente à outra, e que o conceito de civilização se referia a uma situação histórica específica, no caso a dos países Inglaterra e França. Questionado sobretudo pelos românticos alemães, o termo cultura passou a ter um sentido diferente, associado à religião, às artes, família, vida pessoal, significados e valores.

         Essa acepção tomou corpo e o termo, complexo, passou a incorporar questões relacionadas a processos íntimos, como a vida intelectual e as artes, bem como aos processos gerais, relacionados aos diferentes modos de vida.[9] Williams afirma que isto se constituiu em um problema, uma vez que cultura passou a ser encarada como algo dado, distinto e fora da realidade social, como uma categoria estanque, assim como política, economia e sociedade.

         Para se contrapor a essa tradição de pensamento sobre a cultura, o autor fez um resgate de algumas teorias culturais, ou de teorias que permitiam pensar a cultura, entre elas a idealista e a materialista, a fim de rever a idéia de que a cultura era uma instância autônoma e à parte.

         Além de questionar a noção idealista que previa uma separação entre cultura e vida material, Williams atacou o pensamento materialista mecanicista pelo fato de este, tentando criticar os idealistas, reproduzir essa mesma concepção de campos separados. Retomou os escritos de Marx e dos marxistas, que não teriam aprofundado a ênfase no processo social material ao se analisar a cultura. Para isto, levantou as idéias de língua, literatura e ideologia, afirmando que só se pode pensar o que é cultura a partir da reflexão conjunta com esses outros conceitos.

         A análise dessas outras idéias por Williams é importante, pois ele mostra como, em geral, os marxistas e os estruturalistas trabalhavam com a noção de que elas constituíam áreas ou esferas específicas, sem conexão ativa de umas para com as outras.

No capítulo onde discute língua, o autor mostra como, entre o final do século XIX e meados do XX, um tipo de marxismo dominante fez uma redução prática entre tais esferas:

não tanto diretamente na teoria da linguagem, que no todo foi negligenciada, mas habitualmente em suas exposições sobre a consciência e em sua análise das atividades lingüísticas práticas que foram agrupadas sob as categorias de ‘ideologia’ e ‘superestrutura”.[10]

 

         Na crítica a esse tipo de marxismo mecanicista, Williams recuperou os estudos de Mikhail Bakhtin que, segundo ele, seriam originais já que definiram a linguagem como sendo uma atividade social prática, dependente de uma relação social. Bakhtin trabalhou com a idéia de que a linguagem era consciência prática e, como tal, estava saturada por toda atividade social e a saturava, inclusive a atividade produtiva. Nesse sentido, “a linguagem é a articulação dessa experiência ativa e em transformação; uma presença social e dinâmica no mundo”.[11] Bakhtin trabalhou com a idéia de que a consciência era social, mas que deveria ser entendida em um processo dialético, uma vez que ela, em termos práticos, operava na transformação dos seres humanos. Assim, o autor conclui que ela é uma atividade material prática e, portanto, é um meio de produção.

Essa noção tomada de Bakhtin foi importante para Williams repensar sua noção de cultura, no sentido da elaboração de uma teoria materialista da cultura, superando as concepções marxistas reducionistas que colocavam a cultura como superestrutura determinada pela infra-estrutura.

Nesse sentido, Williams ampliou a sua noção de determinação, que no pensamento marxista em geral era associada ao economicismo, e afirmou que ela está na totalidade do processo social:

a sociedade não é apenas a casca morta que limita a realização social e individual. É sempre também um processo constitutivo com pressões muito poderosas, que são internalizadas e se tornam vontades individuais”.[12]

 

Essa idéia da determinação para Williams influenciou também a sua concepção de forças produtivas, que para ele seria “um dos e todos os meios de produção e reprodução da vida real”.[13] A cultura passou a ser vista por Williams como uma força produtiva, essencial na produção “de nós mesmos e nossas sociedades”, como ele afirmou em seguida.

Com isso, Williams também teceu sua crítica à teoria do reflexo, que via na consciência (arte, cultura) um simples reflexo da realidade social. O autor ainda criticou um tipo de posicionamento diferente, que acreditava na possibilidade da mediação entre base e superestrutura. A idéia de mediação se funda na crença de que existe um processo ativo de relação entre sociedade e arte, ou seja, entre infra e superestrutura. No entanto, o autor apontou que, mesmo indicando um processo ativo entre essas duas esferas, a mediação ainda fortalece a concepção dualista de duas instâncias distintas.

Avançando na elaboração de uma teoria materialista da cultura, Williams também resgatou Antonio Gramsci, principalmente sua concepção de hegemonia. A idéia de hegemonia sugere que uma determinada classe domine e subordine significados, valores e crenças a outras classes. No entanto, Gramsci afirmou que apesar da difusão de um pensamento hegemônico por determinada classe, as demais não equacionam tal pensamento com a consciência, ou seja, não reduzem sua consciência à tal pensamento. Assim, Williams afirmou que

 é todo um conjunto de práticas e expectativas, sobre a totalidade da vida: nossos sentidos e distribuição de energia, nossa percepção de nós mesmos e nosso mundo. É um sistema vivido de significados e valores – constitutivo e constituidor – que, ao serem experimentados como práticas, parecem confirmar-se reciprocamente”.[14]

 

Nesse sentido, a hegemonia produz também contra-hegemonia, ou seja, a cultura dominante produz e limita, ao mesmo tempo, suas formas de contracultura.

Analisando outras influências teóricas que contribuíram para a elaboração da idéia de materialismo cultural, Cevasco mostrou que Williams se apropriou também da noção antropológica de cultura como um modo de vida, com o objetivo de mostrar que é algo comum a toda a sociedade.[15] Nesse sentido, ele estaria rompendo com a idéia de que a cultura era cultura de elite, ainda presente no contexto em que escrevia.

Essa concepção apropriada da antropologia ajuda a mostrar como diferentes significados e valores organizam a vida social comum. Nesse sentido, a cultura deixa de ser um resultado ou reflexo de uma determinada base, mas passa a ser encarada como aspecto importante, isto é, ativo na organização social. Ou seja, a cultura se torna elemento constitutivo do processo social e, assim, “é um modo de produção de significados e valores da sociedade”. [16] Cevasco mostrou que, para o autor aqui em questão, as artes e as práticas culturais poderiam até refletir, mas também produziriam significados que mudam a sociedade.

Com o objetivo de sintetizar a concepção da teoria materialista de cultura desenvolvida pelo autor, cremos ser pertinente apresentar as próprias palavras de Williams:

 a inserção das determinações econômicas nos estudos culturais é sem dúvida a contribuição especial do marxismo, e há ocasiões em que sua simples inserção é um progresso evidente. Mas, no fim, não pode ser uma simples inserção, pois o que se faz realmente necessário, além das fórmulas limitadoras, é o restabelecimento de todo o processo social material e, especificamente da produção cultural como social e material”.[17]

        

         Dessa forma, então, Williams contribuiu para a elaboração de uma teoria materialista de cultura, ampliando o conceito no sentido de um processo integral da vida, enfatizando a interdependência das várias esferas da realidade social e a atuação delas como forças produtivas, ou seja, como elementos ativos na transformação social.

 

Edward P. Thompson (1924-1993) e a questão da experiência como fundamental no entendimento do conceito de cultura

         O historiador inglês Edward Thompson é considerado, junto a Raymond Williams e Richard Hoggart, fundador de uma nova disciplina, os estudos culturais. Como eles, Thompson também participou do projeto de educação de trabalhadores. Ex-membro do Partido Comunista, ajudou a formar o movimento da Nova Esquerda, preocupado em romper com o direcionamento político definido pelo partido, em Moscou. Esse rompimento teve implicações políticas que extrapolaram o campo ‘político’ (se é que se pode considerá-lo como específico) e, também teóricas, uma vez que questionou os rumos do pensamento marxista.

         O impacto desse movimento para a historiografia foi grande, uma vez que dele participaram Eric Hobsbawm, Christopher Hill, Perry Anderson, entre outros. Dispostos a reescreverem a história britânica a partir de uma revisão crítica do marxismo presente até então, eles acabaram contribuindo para a revisão da disciplina História, de uma forma geral e, mais especificamente, contribuindo para os estudos de História Social. O engajamento de alguns deles nos programas de educação de trabalhadores teria influenciado, ainda, uma nova forma de interpretação da história, vista a partir dos “de baixo”. Tal influência ficaria visível a partir da publicação do artigo The History from Below, por E. Thompson, em 1966. Desde então, o conceito de história vista de baixo teria entrado na linguagem comum dos historiadores.[18]

No prefácio da Formação da classe operária inglesa, Thompson apresentou sua preocupação com os de baixo:

“Estou procurando resgatar o pobre descalço, o agricultor ultrapassado, o tecelão do tear manual ‘obsoleto’, o artesão ‘utopista’ e até os seguidores enganados de Joanna Southcott, da enorme condescendência da posteridade. Suas habilidades e tradições podem ter-se tornado moribundas. Sua hostilidade ao novo industrialismo pode ter-se tornado retrógrada. Seus ideais comunitários podem ter-se tornado fantasias. Suas conspirações insurrecionais podem ter-se tornado imprudentes. Mas eles viveram nesses períodos de extrema perturbação social, e nós, não”.[19]

 

Esse trecho nos ajuda a entender a preocupação do historiador inglês em reconstruir as experiências das pessoas comuns. Para isso, afirmou que era preciso compreender o passado à luz de sua própria experiência e de suas próprias reações a essa experiência.

         Ao lançar a idéia de se recuperar a experiência das pessoas, Thompson estruturou sua contribuição aos estudos da cultura. No entanto, esta se faria em oposição às velhas concepções marxistas de cultura, sobretudo aquelas mais economicistas, que acreditavam na relação infraestrutura-determinante / superestrutura determinada. No livro A peculiaridade dos ingleses e outros artigos Thompson questionou o emprego dessa ‘fórmula’, afirmando que:

mesmo Marx não se serviu dessa analogia de modo repetido, embora o tenha feito, uma vez, uma síntese sensivelmente importante de sua teoria, a qual se mostrou influente. Mas devemos nos recordar que, em outras ocasiões, ele lançou mão de analogias bem diversas para o processo histórico”.[20]

 

         Entre essas outras ocasiões, segundo o autor, estaria uma passagem dos Grundrisse, onde Marx teria enfatizado a simultaneidade da manifestação de relações produtivas particulares em todos os sistemas e áreas da vida social.

         Resgatando Marx para criticar os marxistas, Thompson colocou em questão a idéia tradicionalmente usada por estes para descrever o modo de produção em termos econômicos, deixando de lado, como secundárias, as normas, os valores, enfim, a cultura, que também são conceitos decisivos sobre os quais, para ele, se organiza um modo de produção. Nesse sentido, Thompson fez uma crítica radical a estes marxistas:

a analogia ‘base e superestrutura’ é radicalmente inadequada. Não tem conserto. Está dotada de uma inerente tendência ao reducionismo ou ao determinismo econômico vulgar, classificando atividades e atributos humanos ao dispor alguns destes na superestrutura (lei, arte, religião, moralidade), outros na base (tecnologia, economia, as ciências aplicadas), e deixando outros ainda a flanar, desgraçadamente, no meio (lingüística, disciplina de trabalho). Nesse  sentido, possui um pendor para aliar-se com o pensamento positivista e utilitarista, isto é, com posições centrais não do marxismo, mas da ideologia burguesa”.[21]

 

         Além de criticar o reducionismo marxista, Thompson também atacou a concepção dos estruturalistas, sobretudo a de Louis Althusser que, com sua ênfase na autonomia relativa e na idéia de determinação em última instância, teria deixado os problemas do materialismo histórico e cultural sem solução.[22]

Em que bases, então, Thompson teria se fundamentado para construir sua idéia da experiência?

A idéia de experiência estava presente já n’A formação da classe operária inglesa onde, visando superar o pensamento base/superestrutura, o historiador centrou sua análise da consciência da classe operária, mais precisamente no processo de sua constituição, considerando a subjetividade, a relação entre as classes, a cultura, bem como os processos formativos e constitutivos da dita classe.  Assim, considerou que a classe social se constituía numa formação econômica, mas também cultural. Nesse sentido, a experiência vivida pelos operários teria dado à classe uma dimensão histórica. Experiência seria, então, uma espécie de solução prática para que se pudesse analisar os comportamentos, os valores, as condutas, os costumes, enfim, a cultura. Ou melhor, as culturas, no sentido de que “cultura” se refere a uma realidade específica.

Thompson repensou a relação marxista tradicional expressa pela frase “o ser social determina a consciência social”, a partir da sua concepção de classe social. Ele afirmou que as classes sociais não eram uma “estrutura”, nem uma “categoria”, mas sim “algo que ocorre efetivamente nas relações humanas”; elas eram um fenômeno histórico e não estático, pois sua noção trazia consigo a noção de relação histórica. Não havia um “exemplar puro de classe”; ela não existia “para ter um interesse ou uma consciência ideal, nem para se estender como um paciente na mesa de operações de ajuste”. Mais ainda, nenhuma formação de classe na história poderia ser considerada mais verdadeira que outra, já que ela se definia a si mesma em seu efetivo acontecer histórico; nenhum modelo conseguia proporcionar o que deveria ser a verdadeira formação de classe em uma determinada etapa do processo histórico; em suma, “a classe é definida pelos homens enquanto vivem sua própria história e, ao final, esta é sua única definição”.

Nesse sentido, para o autor, as classes acontecem, fazem-se,

quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas) sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus”. [23]

 

 Se, por um lado, “a experiência de classe é determinada pelas relações de produção em que os homens nasceram ou entraram voluntariamente”, por outro lado, “a consciência de classe é a forma como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, idéias e formas institucionais” – a primeira é determinada.[24] Assim, a formação das classes teria origem no cruzamento da determinação e da auto-atividade; ela seria um processo de fazer-se, embora sob condições que são dadas – um processo ativo, que se deve tanto à ação humana como aos condicionamentos: as classes fazem-se a si  mesmas, tanto quanto são feitas. Não se deve, então, colocar classe e consciência de classe, bem como luta de classes como entidades separadas, uma vindo depois da outra, já que as três devem ser consideradas conjuntamente: as formações de classe e a consciência de classe se desenvolvem num processo inacabado de relação, de luta contra outras classes, no tempo.[25]

A determinação seria feita, então, de forma direta sobre a experiência, e não sobre a consciência social. Esta, uma vez tratada pelo sistema de idéias, valores, instituições e tradições próprias de um determinado grupo social, daria uma nova experiência que, então, passaria a determinar, exercendo limites e pressões, a consciência social.[26]

N’A peculiaridade dos ingleses e outros artigos o historiador retomou a questão da determinação e afirmou que ela,

‘em última instância’, pode abrir seu caminho igualmente tanto por formas culturais como por econômicas. O que muda, assim que o modo de produção e as relações produtivas mudam, é a experiência de homens e mulheres existentes. E essa experiência adquire feições classistas, na vida social e na consciência, no consenso, na resistência e nas escolhas de homens e mulheres”.[27]

 

Em seguida, o historiador apontou estas questões como difíceis e sugeriu que

as relações entre o ser social e a consciência social seguem agora: em qualquer sociedade cujas relações sociais foram delineadas em termos classistas, há uma organização cognitiva da vida correspondente ao modo de produção e às formações de classe historicamente transcorridas. Esse é o senso comum do poder ... Contudo, há um sem número de contextos em que homens e mulheres, ao se confrontarem com as necessidades de sua existência, formulam seus próprios valores e criam sua cultura própria, intrínsecos ao seu modo de vida. Nesses contextos, não se pode conceber o ser social à parte da consciência social e das normas. Não há sentido algum em atribuir o prevalecimento de um sobre outro”.[28]

 

A utilização dessas idéias por Thompson e o reconhecimento que ele fazia das contribuições dos folcloristas e da antropologia social para a história, sobretudo em sociedades em que predominava o costume[29], fez com que o historiador fosse criticado por alguns estudiosos marxistas como sendo culturalista. Diante desse desafio, Thompson teria respondido com A miséria da teoria, defendendo o materialismo histórico nos termos escritos na juventude de Marx, que eram textos mais humanistas e que possibilitavam a Thompson resgatar a questão da experiência.[30]

Nos anos 1980, com os desafios impostos pela antropologia, pela lingüística e pelo pós-estruturalismo, Thompson sofreria a acusação de que carecia de teoria e fazia uma história social ultrapassada. Para responder a essa crítica, em Costumes em comum o historiador acusou os antropólogos de usarem o conceito de cultura popular acriticamente, de forma consensual. Nesse sentido, afirmou que é preciso contextualizar a cultura popular.

Thompson ainda teria enfrentado outras críticas, vindas tanto de feministas questionando a falta de preocupação do autor com a participação das mulheres na formação da classe operária inglesa, quanto de alguns pensadores que acusariam o conceito de experiência como totalizante e essencialista. Críticas à parte, Thompson permitiu a introdução de novos conceitos e preocupações no interior da história social.

Mas a idéia da experiência continuou a ser defendida pelo historiador, que assim concluiu seu texto “Folclore, antropologia e história social”, presente n’A peculiaridade dos ingleses e outros artigos:

a  transformação histórica acontece não por uma dada ‘base’ ter dado vida a uma ‘superestrutura’ correspondente, mas pelo fato de as alterações nas relações produtivas serem vivenciadas na vida social e cultural, de repercutirem nas idéias e valores humanos e de serem questionados nas ações, escolhas e crenças humanas”.[31]

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

         O movimento da New Left, ao qual os intelectuais discutidos acima pertenciam, teria atuado mais na esfera da cultura, segundo Cevasco. Ela afirma que, com ele, o marxismo se viu historicamente obrigado a explicar um mundo onde as alianças com os movimentos de massa ficavam mais complicadas.[32] A cultura, neste contexto, deixou de ser uma esfera do espiritual, como se fosse separada da realidade social, para entrar no cotidiano das pessoas. Daí ser necessário repensá-la.

         A idéia marxista comum de que “o ser social determina a consciência social” precisava ser revista, a fim de se acabar com o reducionismo de se dissociar cultura ou consciência social da idéia de ser social, como se fossem campos separados. Aos membros da New Left coube esta tarefa. Cevasco aponta que, a partir deles, a cultura deixou de ser encarada como uma esfera separada da social e passou a ser designada como um processo central e uma arena de luta social e política.

         Segundo a autora, a idéia de uma teoria e análise da cultura como um modo de luta foi de suma importância naquele contexto em que surgiram os estudos culturais, quando os meios de comunicação em massa cresciam e ampliavam o alcance de sua influência, sem que os estados ou os governos os controlassem. Além disso, neste contexto, tais meios de comunicação ainda foram essenciais para movimentar o funcionamento e a propagação dos sistemas políticos.

         Nesse sentido, questionando o marxismo ortodoxo, os primeiros intelectuais dos estudos culturais iram se posicionar fundando uma relação constante e conflituosa com o marxismo. No entanto, essa relação foi fundamental para a transformação do conceito de cultura. Seja no sentido em que Raymond Williams operou, contribuindo para uma teoria materialista da cultura, o materialismo cultural, seja no sentido de Edward Thompson, para quem a ênfase na agência humana era determinante, a partir das experiências de homens e mulheres.

         Recuperar as idéias desses dois intelectuais é de vital importância para o pensamento político e suas conseqüentes ações nesta virada para o século XXI, frente, sobretudo, ao ‘modismo’ intelectual em voga nesse contexto denominado por alguns e aceito por muitos pensadores como ‘pós-moderno’.       

         Os ‘pós-modernos’ se interessam por linguagem, cultura e ‘discurso’. Para alguns, a linguagem é tudo o que podemos conhecer do mundo e, assim, não temos acesso a qualquer outra realidade. Nesse sentido, a sociedade é semelhante à língua; ela é a língua.[33]

         Estas e outras idéias que se ancoram no ‘pós-modernismo’, como a questão das diferenças e identidades, com suas lutas distintas, particulares e variadas e os conhecimentos particulares são cruciais para a questão da cultura. Nesse sentido, a cultura volta a ter um significado estanque e reducionista, já que passaram a existir várias culturas. Este seria o mundo da pluralidade cultural.

         Nesse contexto, o marxismo é apresentado pelos pós-modernos como ultrapassado, já que não oferece subsídios teóricos para dar conta da explicação de tantas “culturas de minorias”, sobretudo por causa da ênfase na determinação econômica.  A implicação desse pensamento é fatal para a ação política comum, que passa a ser desencorajada quanto à sua capacidade de transformação. Mais ainda e, aliada a esse desencorajamento, percebe-se uma influência direta desse discurso ‘pós-moderno’ no pensamento acadêmico, sobretudo na historiografia ocidental.

         Diante disto, pegamos emprestadas as palavras de Ellen Wood, nas quais ela afirma que “este é o momento certo para se revitalizar a crítica marxista”.[34] Nesse sentido, acreditamos que as idéias de Raymond Williams e Edward P. Thompson, sobretudo no que tange à questão da cultura, são de grande valia para se entender os des–caminhos traçados pelo pensamento ‘pós-moderno’ e para se estabelecer uma crítica bem fundamentada sobre eles. Não no sentido de fazer elocubrações teóricas, mas no de se resgatar a crença na possibilidade de luta e transformação social que passa, a nosso ver, necessariamente pela concepção de cultura, com a “experiência” de homens e mulheres e em sua relação dialética e de produção material/cultural.


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·  Trabalho de aproveitamento do Curso Literatura e Sociedade, oferecido pela professora Dra. Adriana Facina, no Mestrado em História Social da Universidade Federal Fluminense, no primeiro semestre letivo de 2004.

[1] FERREIRA, Aurélio B. de H. Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1980, p. 512.

[2] CEVASCO, Maria E. Dez lições sobre estudos culturais. São Paulo: Boitempo, 2003, p. 9 e WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 19.

[3] KUPER, Adam. Cultura: a visão dos antropólogos. Bauru: Edusc, 2002. p. 27.

[4] WILLIAMS, R. op. cit., p. 23.

[5] CEVASCO, M. E. op. cit., p. 24.

[6] Idem, p. 8.

[7] Idem, p. 62.

[8] WILLIAMS, R. op. cit., p. 11.

[9] Idem, p. 24.

[10] Ibidem, p. 36.

[11] Ibidem, p. 43.

[12] Ibidem, p. 91.

[13] Ibidem, p. 94.

[14] Ibidem, p. 113

[15] CEVASCO, M. E, op. cit., p. 110.

[16] Idem, p. 112.

[17] WILLIAMS, R. op. cit., p. 140.

 

[18] BURKE, P. (org.). A Escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992, p.41.

[19] Idem, p. 42.

[20] THOMPSON, Edward P. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Ed. Unicamp, 2001, p. 253.

[21] Idem, p. 256.

[22] Ibidem.

[23] THOMPSON, Edward. P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, pp.  9-14.

[24] Idem, p. 10.

[25] THOMPSON, Edward P. A miséria da teoria. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, pp. 189-194.

[26] FERRERAS, Norberto O. Culturalismo e experiência: leitura dos debates em torno da obra de E. P. Thompson. In: Revista Diálogos. Departamento de História da Universidade Estadual de Maringá. Vol. 03, p. 2.

[27] THOMPSON, E. P. op. cit., 2001, p. 260.

[28] Idem, p. 261.

[29] ABREU, Martha. & SOIHET, Rachel Ensino de história: conceitos, temáticas e metodologia. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003, p. 8.

[30]FERRERAS, N. op. cit., p. 4.

[31] THOMPSON, E. P. op. cit., 2001, p. 263.

[32] CEVASCO, M. E. op. cit., p. 87.

[33] WOOD, Ellen M. & FOSTER, John B. (orgs). Em defesa da história: marxismo e pós-modernismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999, p. 11.

[34] Idem, p. 22.

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